Depois de décadas, o Brasil assiste a uma nova tentativa de silenciar o Congresso Nacional — desta vez, não por meio dos militares, mas pelo Supremo Tribunal Federal, com o uso da força policial
N o dia 2 de setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves (MDB) subiu à tribuna da Câmara e conclamou a população a boicotar o regime militar em curso no país. Às vésperas do feriado do Dia da Independência, o governo entendeu que a provocação era inadmissível e pediu licença ao Congresso Nacional para cassá-lo. Uma sessão foi marcada para o dia 12 de dezembro. Durou seis horas. Na abertura, é possível ouvir a chamada para que o deputado se defendesse da acusação do Ministério da Justiça. Alves fez um dos discursos mais memoráveis em defesa da liberdade na história do Parlamento brasileiro (leia trechos abaixo).
A Câmara protegeu seu mandato por 216 votos. A democracia foi saudada com o Hino Nacional. Ao final da sessão, o líder da Arena, Geraldo Freire, cumprimentou o adversário político, Mário Covas (MDB). Os dois partidos votaram juntos. Era uma quinta-feira. No dia seguinte, o general Artur da Costa e Silva convocou o Conselho de Segurança Nacional e editou o Ato Institucional nº 5, que lhe concedia poderes para fechar o Congresso. Foi o início do período mais duro da repressão no país. 06/12/
O filme de 1968 é daqueles que o Brasil não deveria reviver depois de décadas de democracia reconquistada, com uma Constituição em vigor e 30 partidos políticos em pleno funcionamento. Mas ele parece estar cada vez mais próximo. O motivo é uma sanha autoritária que avança sem rédeas pelas mãos do consórcio de poder formado pelo Supremo Tribunal Federal, com o uso da Polícia Federal do governo Lula da Silva.
O exemplo mais simbólico da atual truculência contra o Legislativo é o do deputado gaúcho Marcel van Hattem, do Partido Novo. Ele foi indiciado pela Polícia Federal. É acusado de atacar a honra do delegado Fábio Shor, responsável pelos inquéritos contra “bolsonaristas” — embora o deputado nem sequer seja um “bolsonarista”.
O delegado também cuidou da chamada Vaza Jato — o hackeamento de mensagens usado para dinamitar a Lava Jato em Cortes Superiores. Outras possíveis explicações sobre por que Van Hattem se tornou um alvo preferencial são narradas no artigo de Ana Paula Henkel nesta edição. Van Hattem exibiu uma foto do delegado na tribuna e disse que ele “cria relatórios fraudulentos para manter preso” Filipe Martins, exassessor de Bolsonaro. “É uma prisão ilegal e sem fundamentação”, disse. Martins passou seis meses encarcerado, acusado de viajar para os Estados Unidos na virada de 2023 e escrever um discurso de golpe para o ex-chefe. Detalhe: nem a viagem nem a quartelada ocorreram, e o discurso nunca foi lido.
O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), repudiou “as investidas da Polícia Federal para investigar parlamentares por discursos proferidos em tribuna”. A advocacia-geral da Câmara foi acionada. É um bom sinal: aparentemente, desta vez, a Câmara aprendeu a lição e ficou ao lado de Van Hattem, o que não aconteceu com Daniel Silveira há três anos — ele segue preso até hoje por vontade do ministro Alexandre de Moraes. “A imunidade material é um direito inalienável de cada parlamentar e ela há de ser absoluta para manifestações feitas na sagrada tribuna desta Câmara”, afirmou Lira.
Trata-se do artigo 53 da Constituição, que diz: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. O parágrafo acaba assim, sem enxertos. A redação é talvez uma das mais claras e diretas da enorme Carta de 1988, justamente porque foi ajustada em 2001 para que não houvesse dúvidas.
Ocorre que defensores da censura em Brasília afirmam que esse trecho não vale mais depois da passagem de Jair Bolsonaro pelo poder. Foi o que verbalizou o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, durante audiência no Congresso, na quarta-feira, 3. Ele disse que a imunidade parlamentar agora é relativa quando se trata de crimes contra a honra — Van Hattem, por exemplo, foi indiciado por calúnia e difamação pela Polícia Federal. Outro deputado, Cabo Gilberto Silva (PL-PB), está na mesma situação.
Lewandowski usou os seguintes termos nesta semana: “Vi uma guinada de gênero na jurisprudência, interpretando o artigo 53 da Carta Magna”. Não é verdade que há jurisprudência para mudar o artigo da Constituição no Supremo, e a insegurança jurídica decorre justamente dessas “guinadas”. Na audiência, deputados perguntaram ao ministro: cite a página, o acórdão, a data em que isso ocorreu? O próprio Lewandowski votou em defesa da imunidade parlamentar em 2017, quando era ministro do STF, num processo por injúria e difamação contra o então senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). O acórdão da petição nº 6.587, uma queixa-crime julgada na Segunda Turma, tem 27 páginas. O acesso ao voto de Lewandowski é público no site do STF.
Há outros julgamentos com desfechos idênticos envolvendo políticos das diferentes esferas do Poder. O que terá mudado desde então? O advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, afirmou que o ministro sugere que a imunidade deixe de existir. “A jurisprudência entende que a fala é coberta se feita da tribuna e tiver relação com o mandato”, disse. “Segundo interpretação do STF e de Lewandowski, a imunidade parlamentar serve apenas para casos em que a imunidade parlamentar não é necessária.”
Que o discurso do deputado gaúcho foi feito dentro da Câmara não há dúvidas. Tudo foi filmado. É evidente também que está relacionado ao mandato porque ele abordava um tema que há dois anos inunda o noticiário do país, nutrido por inquéritos do próprio Supremo e da PF: o tumulto do 8 de janeiro de 2023. Não foi uma briga de rua. Van Hattem retomou a carga contra as arbitrariedades nesta semana, desta vez cara a cara com o diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. “A minha fala não é para me defender, é para defender o Parlamento”, disse. Ele desafiou o chefe da PF a prendê-lo em flagrante e, se não o fizesse, seria um “prevaricador”. Qual foi o resultado? Andrei Rodrigues abrirá um novo inquérito contra o parlamentar porque diz ter sido insultado. O vídeo abaixo resume toda a audiência pública. É válido também pelas expressões faciais e as reações das autoridades presentes.
Clique AQUI para ouvir a íntegra do discurso histórico de Márcio Moreira Alves, disponível nos arquivos do Senado. Perseguição Algumas vozes se levantaram na sociedade em defesa da liberdade. Uma delas foi a do vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes. Ele mencionou o caso do deputado e, em seguida, foi além. “Perdemos a liberdade do Parlamento”, disse. “Parlamento vigiado, Parlamento com liberdade autorizada, não é Parlamento. Povo sem Parlamento é povo escravo.” “Justiça fora da lei, julgamento fora da lei, julgamento fora do Estado de Direito, julgamento por juiz incompetente, julgamento por juiz que é vítima, julgamento por juiz que é investigador, julgamento por juiz que é relator, vítima e acusador. Não é Justiça, é vingança. É justiçamento.”
Também nesta semana, 200 congressistas assinaram a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão. Normalmente, quando se fala em frente parlamentar, a tendência do brasileiro é achar que isso não serve para nada, além do microcosmo da Câmara. A intenção, contudo, parece boa: copiar e usar o modelo dos deputados que atuam na frente da agropecuária — tem mais de 300 integrantes. O bloco do agronegócio é ativo e organizado. Promove almoços semanais com governadores e empresários, escolhe bem as pautas que valem a pena levar adiante e vence no voto, independentemente dos partidos. No caso da defesa da liberdade, quem vai liderar a frente é a deputada catarinense Júlia Zanatta. Uma lista de projetos será entregue a Arthur Lira.
Ninguém esconde o objetivo: tentar frear o avanço do Supremo em temas como mordaça nas redes sociais, punição a provedores de internet e controle do uso de inteligência artificial. Representantes de big techs apoiaram a ideia. Outra novidade recente é o aumento, ainda que tímido, de publicações contra o cerceamento de liberdade na mídia. A Folha de S.Paulo decidiu firmar posição. O primeiro parágrafo do editorial de quarta-feira diz: “O Supremo Tribunal Federal prepara-se para mais uma invasão das competências do Congresso Nacional. Desta vez o alvo específico são dispositivos do Marco Civil da Internet, mas a mira geral aponta para a liberdade de expressão”.
“Ao mau hábito recente de interferir, por vias ortodoxas e heterodoxas, nas prerrogativas de expressão dos cidadãos, os supremos magistrados somaram um outro costume pernicioso, que têm adotado com frequência — o de meter-se em questões típicas de um outro Poder”, disse o jornal. Há um nítido desconforto do Supremo e da cúpula da Polícia Federal com reportagens da Folha de S.Paulo, desde que o jornal revelou trocas de mensagens de integrantes do gabinete do ministro Alexandre de Moraes para perseguir perfis de direita durante as eleições de 2022.
A Oeste foi um dos alvos do gabinete, com a recomendação explícita para que fosse usada “a criatividade” para punir a revista. A Folha foi excluída de uma entrevista coletiva com o diretor da PF nesta quarta-feira. A redação questionou o motivo horas depois, em outro evento com a presença do chefe da PF. Diante da pergunta do repórter, a resposta de Andrei Rodrigues foi: “Vocês mandaram e-mail lá, né [com pedido de posicionamento]? Não vou comentar”, disse. Não foi informado o conteúdo do e-mail enviado pela Folha. Sabe-se apenas que a coletiva mencionada durou duas horas e o tema foi o relatório de 884 páginas sobre a confusão do 8 de janeiro. Oeste jamais foi chamada para essas entrevistas — os veículos são selecionados pela assessoria de imprensa da instituição.
Paralelamente, causou espanto nesta semana a decisão da Procuradoria-Geral da República de encaminhar ao chamado Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos, vinculado ao Supremo, um pedido para extinguir o Partido Liberal (PL). O pedido foi apresentado pelo deputado André Janones (Avante-MG), usando uma carteirinha vencida da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Não só o teor da reclamação é esdrúxulo, como fica a pergunta: ninguém na cúpula do Ministério Público se deu ao trabalho de checar a validade do documento? Além disso, a própria História mostra que ações desse tipo não prosperaram nem quando se descobriu um esquema de compra de votos — o Mensalão.
O PT não teve o registro cancelado. À época, o principal argumento foi não repetir o Ato Institucional nº 2, que eliminou partidos em 1965, uma das medidas mais drásticas do regime militar. O Legislativo brasileiro foi fechado 18 vezes desde a primeira experiência parlamentar, em 1823: a Assembleia Geral para a Constituição imperial. De Dom Pedro aos militares, passando pela Era Getúlio Vargas, esses períodos sem a presença do Parlamento aberto jamais foram bons para a liberdade. É isso que está em jogo agora. Num flagrante retrocesso, os ministros do Supremo, com o uso da força policial, ameaçam a democracia com o argumento de que querem protegê-la
Sílvio Navarro , Revista Oeste