Decisão de juíza de Sâo Paulo derrubou especial de comédia de Léo Lins, que somava 3,3 milhões de acessos, e impôs censura prévia, proibindo novas piadas.| Foto: Reprodução Instagram
No Brasil contemporâneo, não basta que a liberdade de expressão seja frequentemente agredida pelo estabelecimento de novos tabus, vedando o debate sério sobre uma vasta gama de assuntos, que incluem a crítica a comportamentos e passam por questionamentos a “consensos” forjados ou impostos. Agora, também o humor convive com a mordaça, graças a uma lei por si só bastante controversa, e que agora é interpretada de forma extremamente rigorista, contrariando toda a doutrina e a jurisprudência construídas em torno desse tipo de manifestação artística.
Por decisão da Justiça paulista, o humorista Léo Lins foi obrigado a retirar inúmeros conteúdos de seu canal do YouTube, principalmente um especial que foi ao ar no fim de 2022 e já contava com milhões de visualizações. Lins não pode publicar, transmitir, e nem sequer manter privadamente em seus aparelhos arquivos “com conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável”, de acordo com a juíza Gina Correa. Como se não bastasse, em um caso evidente de censura prévia, o humorista fica proibido de mencionar esses grupos em novas apresentações de stand-up comedy e, no que também pode ser visto como uma restrição indevida ao direito de ir e vir, não pode se ausentar de São Paulo por mais de dez dias sem autorização judicial – ou seja, a Justiça pode muito bem impedir a realização de turnês, atividade que faz parte do cotidiano de qualquer artista.
Léo Lins foi a primeira (ou ao menos a mais notória até o momento) vítima de uma legislação cujos efeitos foram amplamente antecipados; seria questão de tempo para que MP e Judiciário começassem a passar por cima da doutrina e da jurisprudência
A condenação ocorreu a pedido do Ministério Público paulista, que invocou a Lei 14.532/2023, aprovada pelo Congresso e sancionada por Lula. Ela acrescenta novos itens à Lei 7.716/89, equiparando a injúria racial ao racismo, na linha do que já havia feito o Supremo Tribunal Federal – no entanto, a legislação não trata apenas do preconceito racial, mas abrange também a discriminação por etnia, religião, procedência nacional e, graças a outra decisão do STF, orientação sexual. À época, a Lei 14.532 foi apelidada “lei antipiada” não sem motivo, pois afirmava que “os crimes previstos nesta lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. Ou seja, Léo Lins foi a primeira (ou ao menos a mais notória até o momento) vítima de uma legislação cujos efeitos foram amplamente antecipados; seria questão de tempo para que MP e Judiciário começassem a passar por cima da doutrina e da jurisprudência, com base em leituras isoladas e arbitrárias de trechos da lei.
Afinal, não faria sentido nenhum – ao menos para quem tem um compromisso mínimo com a liberdade de expressão – pretender que a legislação viesse coibir e punir toda e qualquer piada que envolvesse grupos étnicos, religiosos ou o que quer que fosse. O que as leis 14.532/23 e 7.716/89, frutos de uma discussão válida sobre formas de combater o preconceito, criminalizam são os atos claramente discriminatórios (por exemplo, negar o acesso a certos locais ou o exercício de direitos), a injúria (artigo 2.º-A, incluído pela nova lei) e a indução à “discriminação ou preconceito” (artigo 20). Uma vez configurados esses crimes, só então verifica-se a existência de outras circunstâncias que não são o crime em si, mas agravantes. É aqui que se analisa se houve “contexto ou intuito de descontração, diversão ou recreação”.
Em outras palavras, é preciso analisar o que a doutrina chama de animus. O animus caluniandi, por exemplo, é a intenção clara de imputar a alguém um crime concreto que não foi cometido. Da mesma forma, existe o animus injuriandi, a intenção expressa de insultar e ofender alguém em sua honra. Mas existem, também – e citamos apenas alguns exemplos –, o animus narrandi (a intenção de narrar um fato), o animus corrigendi (a intenção de corrigir alguém) e o animus jocandi (a intenção de brincar). Sobre este último, exatamente o que está em jogo no caso de Léo Lins, existe extensa jurisprudência a protegê-lo, seja quando exercido de forma corriqueira, seja como atividade profissional, no caso dos humoristas.
A primeira das teses do Superior Tribunal de Justiça relativas aos crimes contra a honra afirma que “para a configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi”. Ainda que a Lei 7.716 não se refira textualmente a “crimes contra a honra”, mencionando apenas a injúria racial (que tem características específicas, sem deixar de ser injúria), o raciocínio exposto na tese do STJ se aplica tranquilamente: sem a intenção criminosa, não há crime – piada ou não. Tanto é assim que há inúmeras decisões judiciais que rejeitam a existência de crime quando se trata de analisar afirmações feitas em tom humorístico, o animus jocandi, porque a acusação foi incapaz de comprovar que havia essa intenção criminosa, como a de injuriar ou caluniar, para a qual a piada seria apenas um veículo. Portanto, ainda que a linguagem empregada seja ácida, inadequada, excessiva ou insensata, nada disso é crime se não houver o objetivo explícito de injuriar, de humilhar, de desumanizar, de diminuir alguém por pertencer a um grupo específico. O mero chiste, portanto, deveria ser compreendido pela Justiça como o que é, uma expressão do animus jocandi sem outras intenções.
O que o MP e a Justiça paulista fizeram, assim, foi inverter a ordem da análise. Não se tratou de primeiro atestar o animus injuriandi para, depois, aplicar as penas previstas com a agravante do caráter humorístico das afirmações. Bastou, para a imposição das medidas restritivas, constatar que houve piadas a respeito de certos grupos, sem que se comprovasse qualquer animus criminoso da parte de Léo Lins. A própria aplicação da censura prévia evidencia que o crime passou a ser a piada em si, não uma suposta intenção preconceituosa ou desumanizante que eventualmente movesse o humorista.
A piada feita sem a intenção de injuriar, desumanizar, humilhar ou incitar preconceito é nada mais que isso: piada. O humor e a sátira jamais pouparam ninguém
Isso não significa, evidentemente, que qualquer expressão artística, incluído aí o humorismo, recebe carta branca. Uma afirmação racista ou uma incitação ao crime não se tornam legais apenas porque transformadas em música ou poesia; a Justiça pode e deve agir contra tais manifestações. O mesmo poderia ocorrer com o humor, mas para isso, como afirmamos acima, seria imprescindível atestar, antes, um animus diverso da mera intenção de divertir, ou que o conteúdo da piada fosse inequivocamente criminoso. Onde não se comprova nada disso, não há crime ou ilícito, e não se justifica nenhum tipo de intervenção judicial. Não é à toa que a decisão da Justiça paulista contra Léo Lins tenha despertado reação firme até mesmo de humoristas sem nenhum tipo de credencial “conservadora”, como Fábio Porchat e Antônio Tabet, membros do grupo Porta dos Fundos.
Se o entendimento da Justiça paulista prevalecer, a liberdade de expressão terá sofrido outro duríssimo golpe. Sob o pretexto de um necessário combate ao preconceito, fica severamente coibido o exercício de um dos elementos que nos distinguem como humanos, a capacidade de rir (de si mesmo, inclusive) e fazer rir. A piada feita sem a intenção de injuriar, desumanizar, humilhar ou incitar preconceito é nada mais que isso: piada. O humor e a sátira jamais pouparam ninguém, é da sua natureza que assim seja, e é assim que deve permanecer.
Gazeta do Povo