Nicolás Maduro e o presidente iraniano Ebrahim Raisi, durante viagem do presidente venezuelano a Teerã | Foto: Reprodução/Twitter
A relação estreita da Venezuela com ditaduras ao redor do mundo é um fato conhecido. Ainda sob Hugo Chávez, o país vizinho nunca escondeu o elo político e comercial com o Irã e a Rússia. Agora, porém, essa proximidade ganha contornos ainda mais amplos. A suspeita é de que o ditador Nicolás Maduro tenha autorizado a ajuda direta à Rússia contra alvos civis ucranianos. Analistas internacionais afirmam que a Venezuela pode estar construindo drones usados para bombardear a Ucrânia ou pelo menos fazendo o transporte desses materiais até Moscou.
Desde 2021, há voos regulares entre Caracas e Moscou e, há quase um ano, em junho de 2022, Maduro anunciou, a pretexto de promover o turismo, o retorno dos voos quinzenais entre Caracas e Teerã. Entre março de 2022 e fevereiro de 2023, um voo entre Caracas e Moscou fazia uma parada estratégica em Teerã. Seria por meio dessas aeronaves que a Venezuela poderia estar levando drones de fabricação iraniana para Moscou.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, acusou o Irã, mais de uma vez, de conivência com Vladimir Putin. O governo iraniano alega que seus drones — Mohajer-2 e Shahed-171 — foram vendidos antes da invasão russa. A Venezuela produz armamentos semelhantes, com tecnologia iraniana, mas renomeados. Porém, até agora, não se tem clareza sobre o envolvimento de Maduro com a guerra na Rússia. As suspeitas, entretanto, são crescentes.
“Sempre ouvimos histórias sobre isso, mas nunca há confirmação”, lembrou o analista de relações internacionais Pedro Rafael Roja Mariano de Azevedo, autor do livro A Venezuela e o chavismo em perspectiva, em parceria com Paulo Afonso Velasco Júnior. Ele citou uma suposta fábrica de bicicletas construídas ainda na época de Chávez no Forte Tiuna, sede das Forças Armadas da Venezuela. “Foi dito oficialmente que era uma fábrica de bicicletas. Nesse regime, as coisas são vendadas e não se sabe a verdade e a realidade”, comentou.
Julio Borges, membro do Primeiro Partido da Justiça da Oposição da Venezuela, disse ter muita preocupação com a relação com o Irã. “É uma relação que começou durante o governo do presidente Hugo Chávez. E começou como algo de que as pessoas faziam piadas, porque o Irã estabeleceu uma fábrica para produzir bicicletas iranianas na país latino-americano. Mas essa brincadeirinha vem crescendo e crescendo. De acordo com nossa pesquisa, o Irã e a Venezuela desenvolveram uma relação muito sólida que, a meu ver, é muito negativa para a democracia, os direitos humanos e os valores ocidentais”, criticou, em entrevista ao site Voanews.
Tanto os voos para Teerã quanto para Moscou são operados pela Conviasa Airlines, a estatal venezuelana criada por Chávez em 2004. A companhia tem uma espécie de parceria com a Mahan Air, uma empresa aérea iraniana responsável pela logística da Guarda Revolucionária Islâmica (GRI).
Caracas é a única capital latino-americana com voos diretos para a capital iraniana. A rota para o Oriente Médio estava suspensa desde 2015 — provavelmente em razão das sanções impostas pelos Estados Unidos à Venezuela pela proximidade com o governo dos aiatolás.
A Conviasa, a Mahan e o terrorismo
A Mahan sempre teve como tática usar voos de passageiros para transportar armas e munições para aliados, como o regime de Assad na Síria e o Hezbollah no Líbano. Exatamente por isso, a Mahan está sob sanções dos EUA desde 2011.
A suspeita é que a Conviasa tenha adotado exatamente essa tática agora com a Rússia. Há mais de 10 anos, em 2012 o Congresso dos EUA e o Departamento de Estado já expressavam preocupação de que Teerã estivesse usando os voos semanais Caracas-Damasco-Teerã da Conviasa para transportar armas e munições para terroristas da Síria.
No relatório da audiência conjunta entre as duas instituições, os participantes deixam claro quais as razões da preocupação do estreitamento da relação entre Irã e Venezuela, parceiros desde 1960 com a fundação da Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep): “É especialmente preocupante por causa de atividade potencialmente prejudicial realizada sob o disfarce de relações diplomáticas. Um exemplo é a ausência de fiscalização aduaneira. Em voos semanais de Caracas a Teerã via companhia aérea venezuelana Conviasa, não está claro quem ou o que está sendo transportado, mas os relatórios indicaram que os voos carregam armas para terroristas.”
Os participantes da reunião também mencionaram que “em 2009, o presidente venezuelano Hugo Chávez expressou seu apoio ao desenvolvimento da energia nuclear do Irã e houve relatos mistos sinalizando uma possível incursão iraniana à Venezuela em busca de jazidas de urânio”.
Segundo Emanuele Ottolenghi, membro sênior da Foundation for Defense of Democracies, uma instituição de pesquisa apartidária com sede em Washington, esses voos da Conviasa para o Irã, entre 2007 e 2010, “nunca foram verdadeiramente comerciais”. “Somente passageiros autorizados pelo governo, incluindo terroristas procurados, já percorreram a rota, que ganhou o apelido de ‘aeroterror’”, escreveu ele, em artigo publicado em abril.
“O que dizem sobre esses voos é que nenhum passageiro passa pela imigração, que passam direito. Isso é uma coisa muito grave: podem estar vindo terroristas para a América Latina e a gente não sabe”, lamentou Pedro Azevedo.
Sobre a reativação da linha, há poucas informações, além da propaganda oficial do governo. Essa rota vai permitir “o intercâmbio comercial e laços estratégicos entre duas nações”, informa um vídeo institucional.
Aeronave apreendida em Buenos Aires
Um dos aviões da Emtrasur, subsidiária da Conviada criada em janeiro de 2022 a partir de um parceria com a Mahan Air, foi apreendido em junho do ano passado em Buenos Aires. Operando a partir da Base Aérea El Libertador, a aeronave não pôde ser reabastecida na capital argentina porque o governo norte-americano informou aos fornecedores de combustível que eles estariam violando as sanções. “Em seguida, o Departamento de Justiça emitiu um mandado de apreensão”, lembrou Ottolenghi.
A informação era de que transportava peças de automóveis. A tripulação, considerada excessiva, era de 19 pessoas, incluindo venezuelanos e iranianos. Entre eles, estavam Gholamreza Ghasemi Abbasi, general aposentado da Força Aeroespacial do GRI e atual diretor-gerente da Qeshm Fars Air, outra companhia aérea que opera em nome do Guarda Revolucionária do Irã.
Segundo a BBC, Abbasi é conhecido como o mentor dos esforços do Irã para armar seus representantes usando aviões civis. Os tripulantes detidos no incidente de junho foram libertados recentemente; a Emtrasur alegou que os iranianos treinavam os venezuelanos. Os EUA pediram a Caracas para extraditar o avião para um exame mais aprofundado.
Os drones fabricados na Venezuela
Essa base de operação da Emtrasur, El Libertador, também abriga uma fábrica de serviços de aviação pertencente à Eansa, uma joint venture entre a Conviasa e a estatal Compania Anonima Venezolana de Industrias Militares (Cavim).
A Eansa mantém drones operados pelas forças armadas venezuelanas, incluindo o iraniano Mohajer-2 (conhecido localmente como Arpia ou ANSU-100) e o recentemente revelado ANSU-200, projeto de asa voadora, que é muito semelhante ao Shahed-171 da GRI e é supostamente em desenvolvimento na Venezuela usando especialistas treinados no Irã.
Nas comemorações da Independência da Venezuela em 5 de julho do ano passado, esses dois protótipos foram apresentados ao público. O locutor informa (a partir de 1h42) que foram desenvolvidos pelo Poder Aeroespacial encabeçado pelo Grupo Aéreo de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento Eletrônico Generalíssimo Francisco de Miranda 8. “Observação, reconhecimento e ataque, com capacidade antitanque e antipessoal”, foram alguns dos atributos do Antonio José de Sucre 100 (ANSU-100) descritos durante o desfile.
Sobre o segundo modelo (ANSU-200), fabricados com design indígena venezuelano e apoio iraniano, o locutor os descreve como uma aeronave não tripulada que possui “asa voadora, velocidade, alta furtividade e observação, reconhecimento, ataque, caça anti-drone e supressão da defesa aérea inimiga”.
Os voos para Moscou
Os voos diretos entre Caracas e Moscou começaram em 2021, mas algo inusitado aconteceu depois que as tropas russas invadiram a Ucrânia no ano seguinte: os voos que seguiam de Caracas para Moscou começaram a fazer escala em Teerã. A primeira ocorrência desse tipo ocorreu em 5 de março de 2022, menos de duas semanas depois da invasão da Rússia, e esse padrão de voo continuou até pelo menos o início de fevereiro de 2023.
Desde então, a maioria dos voos entre Caracas e Moscou voa direto, mas faz uma rota tortuosa sobre o Atlântico Norte, contornando a Islândia, antes de seguir para o sul da capital russa, como se quisesse evitar entrar no espaço aéreo de qualquer país da Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan).
Dados de sites de rastreamento, com o Flight Radar 24, revelam, por exemplo, que uma aeronave da Conviasa decolou de Caracas para sua rota direta em Moscou em 30 de setembro, mas, no meio do voo, depois desviou para Teerã e desligou seu sistema de rastreamento. Na parada na capital iraniana, esse voo de 30 de setembro ficou no setor de cargas (e não de passageiros) e, duas horas depois, decolou para o Aeroporto Internacional de Moscou.
O mesmo procedimento ocorreu em vários outros voos, revelou Farzin Nadimi, membro sênior do The Washington Institute. “Essa prática permite que os voos não apareçam na lista de chegadas programadas do Aeroporto Internacional de Teerã”, explicou.
Também analisando os mesmos dados do Flight Radar 24, Ottolenghi considera “curioso” e “suspeito” que a rota tenha sido desviada com tanta frequência. “Mais curioso ainda, no trecho de volta, o voo Moscou-Caracas faria escala em Teerã e pousou em Porlamar, aeroporto da Isla Margarita, antes de retornar a Caracas. Esse padrão, ocorrendo quase invariavelmente por quase um ano, sugere que, em vez de transportar turistas russos de volta a Moscou, a Conviasa pode estar transportando cargas entre as três nações rebeldes.”
Azevedo também lembra que a parceria entre Venezuela e Rússia não é nova. “Eu estive em dezembro de 2006 na Venezuela e estavam fazendo entrega de caças e armamentos russos na Venezuela. Chávez pagava com petróleo. Esses protótipos já vinham sendo testados e criados”, comentou.
Não há clareza sobre quem poderia investigar as suspeitas que recaem sobre a Venezuela. Analistas acreditam que os Estados Unidos deveriam impor novas sanções à Conviasa e autoridades venezuelanas. Também se cogita a possibilidade de que o Azerbaijão e o Turquemenistão fechem seu espaço aéreo para voos diretos de Teerã a Moscou pelo Mar Cáspio, como explicou Nadimi.
Pedro Azevedo não acredita que esse enlace será investigado na Venezuela porque o risco de ser “atropelado” pela ditadura é muito grande. Tampouco os Estados Unidos parecem interessados em levar uma investigação adiante. “Sob Biden, uma petroleira norte-americana [Chevron] já foi autorizada a voltar a explorar petróleo na Venezuela”, lembrou. “Não vejo que os EUA queiram investigar. Talvez até saibam, mas não trazem isso à tona”.
Revista Oeste