sexta-feira, 7 de abril de 2023

'Buenos Aires definha', por Cristyan Costa

 

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, e a vice-presidente, Cristina Fernández de Kirchner, em Buenos Aires, Argentina | Foto: Matías Baglietto/NurPhoto/Shutterstock


A capital do tango sofre nas mãos de Alberto Fernández e Cristina Kirchner com a inflação disparada e o aumento do desemprego e da pobreza 


Próspera e segura. Essa é a Buenos Aires hospedada na memória da advogada Laura Noailles, nascida e criada na capital do tango. Aos 70 anos, ela conta que, em sua juventude, a capital da Argentina era um centro econômico pujante, com diminutas taxas de desemprego e confiante no futuro. Passeava-se também durante a noite, sem medo, pelas calçadas bem cuidadas e limpas. Casas, prédios e muros eram poupados de pichações, não havia moradores de rua. Essa Buenos Aires adorável foi dramaticamente afetada pela sucessão de governantes militares ou populistas, eleitos pelo voto popular ou pelos quartéis, todos nivelados pelo acasalamento da incompetência com a arrogância, do mau gosto com a idiotia, do autoritarismo com a frouxidão.

“Como o restante da Argentina, hoje Buenos Aires definha”, resume Laura. “Nossa economia está à deriva, porque os políticos estão mais preocupados com seus cargos que com a crise gerada por eles mesmos. Os jovens crescem aprendendo a viver do que o Estado dá e não se preocupam em trabalhar. Os que estudam vão embora do país à procura de oportunidades no exterior.” 

Em escala nacional, o cenário é deprimente. Com 45 milhões de habitantes concentrados em Buenos Aires, Córdoba e Mendoza, a Argentina tem 20 milhões de pessoas na pobreza e 1 milhão de desempregados. Esse contingente tem de sobreviver com uma inflação anual que ultrapassa 100%. Para os peronistas Alberto Fernández e Cristina Kirchner, a eleição de Lula tornou-se o bote salva-vidas de um governo à deriva. Menos de dois meses depois da vitória do petista, a secretária de Energia da Argentina, Flavia Royón, anunciou que obtivera, dias antes do resultado do segundo turno, um empréstimo camarada de R$ 4 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. 

O processo de degradação de Buenos Aires, que durante a primeira metade do século 20 impressionou o mundo pela arquitetura elegante e pela opulência das famílias ricas, é especialmente visível em alguns pontos turísticos e bairros que insistem em zelar pelo patrimônio público-privado. Nos arredores da sede do Congresso Nacional, por exemplo, a sensação de insegurança é permanentemente aflitiva — sobretudo para quem caminha pela Plaza Mariano Monteiro, em frente do Parlamento. À caça de “la plata”, mendigos que se multiplicam no gramado abordam quem circula por lá. O lixo se espalha nos arredores, e cartazes em frangalhos seguem pendurados nas grades do edifício em estilo neoclássico.

Fachada do Congresso Nacional da Argentina, com muito lixo e moradores de rua na região  (23/11/2022) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Região turística por excelência de Buenos Aires, o bairro La Boca encontra-se em avançado estado de decomposição. Ali, ficam o Caminito e La Bombonera, duas referências muito procuradas por turistas em busca de lembrancinhas e obras de arte coloridas, além do clássico tango de rua argentino. O bairro de imigrantes italianos e espanhóis, onde atualmente vivem cerca de 50 mil pessoas, sempre foi pobre, mas, em razão do descaso da gestão peronista, a situação tende a piorar cada vez mais, sem perspectiva de melhora. Um mural feito com grafite traduz o sentimento dos moradores do bairro: “La Boca resiste y propone” (La Boca resiste e propõe, em português).

Mural no bairro La Boca, em Buenos Aires (23/11/2022) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Um dos poucos pontos que lembram a Argentina do passado descrita por Laura é a Plaza de Mayo, que abriga a Casa Rosada, sede do governo federal, localizada no centro da cidade. Não há lixo na rua nem mendigos transitando de um lado para o outro, porque garis estão permanentemente ali, acompanhados da polícia. As calçadas bem preservadas parecem ter sido feitas recentemente. Bem lavados, os bancos ficam posicionados perto de um gramado verde, como de campos de futebol. Cercado por grades de ferro grosso e cinzento, o imponente palácio presidencial é o que mais chama a atenção de quem passa ali. Os vidros das janelas são quase transparentes de tão limpos e as madeiras envernizadas reluzem com o brilho do sol.

Plaza de Mayo, onde fica a sede do governo federal, ao fundo, e sem lixo na rua (22/11/2022) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Limpa, arborizada e organizada. Assim é a Plaza de Mayo, onde fica a sede do governo federal (22/11/2022) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

A poucos metros, em frente à Casa Rosada, fica a Pirâmide de Mayo, um obelisco de quase 20 metros de altura em homenagem ao primeiro aniversário da Revolução de Maio, que derrubou o vice-rei espanhol e colocou em seu lugar um governante local. O monumento é um ponto de referência para manifestações populares e onde parentes dos desaparecidos da ditadura colocam fitas nas grades que o rodeiam, em memória dos entes queridos.

A Argentina do passado

Entre o último quarto do século 19 e o começo da década de 1950, a Argentina foi um dos países mais ricos do planeta. Em 1895, tinha o maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, acima do alcançado pelos Estados Unidos. O país prosperou extraordinariamente de 1860 a 1930, graças sobretudo à exploração das terras férteis dos pampas, da exportação de bovinos e de investimentos externos. A educação também ia bem. Em 1950, apenas 14% da população era analfabeta. Para termos de comparação, os brasileiros que não sabiam ler nem escrever na metade do século 20 eram quase 50%.

“Viver na Argentina é um desafio. Não se sabe quanto uma compra de supermercado vai custar amanhã. As coisas sobem todos os dias”

O dinheiro aplicado por países como a França, a Alemanha, a Bélgica e, principalmente, a Grã-Bretanha resultou na proliferação de indústrias e ferrovias. Os altos salários atraíram várias centenas de milhares de imigrantes italianos, espanhóis, alemães e franceses. De 1900 a 1930, somaram-se aos investimentos outros acontecimentos, só existentes nas economias em expansão. Por exemplo, a mítica cadeia de lojas Harrods, com sede em Londres, contemplou Buenos Aires com a inauguração da primeira filial fora da Inglaterra.

O primeiro metrô da América Latina começou a percorrer os subterrâneos de Buenos Aires em 1913 (55 anos antes que o de São Paulo). Um argentino era, em média, 30% mais rico que um francês, 15% mais rico que um alemão, três vezes mais rico que um japonês e cinco vezes mais rico que um brasileiro. Em 1946, a Argentina tinha o oitavo PIB per capita do mundo. Alcançava o dobro do mexicano. E a inflação anual mal chegava 1,5%. Tal cenário contrasta dolorosamente com a dilacerada Argentina da terceira década do terceiro milênio.

A cultura do país tem traços peculiares. Em virtude da matança de indígenas locais pelos espanhóis e da devoção ao mundo europeu, os argentinos não desenvolveram um sentimento patriótico de amor à terra natal, como os brasileiros. Quando há crises econômicas, a maioria deixa o país facilmente, sem data para voltar, a caminho da Espanha e da Itália. Durante uma entrevista coletiva, em junho de 2021, o presidente Alberto Fernández resumiu bem esse pensamento: “Octavio Paz escreveu uma vez que os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos em barcos que vinham da Europa”.

A maioria das referências históricas cultuadas hoje é recente e data dos séculos 19 e 20. No campo da política, os argentinos citam à exaustão o ex-presidente Juan Perón e sua primeira mulher, Evita, como figuras quase únicas do panteão de heróis nacionais. Na música, o centenário tango é o mais famoso, com destaque ao cantor Carlos Gardel.

“Viva Perón”

O apocalipse econômico argentino tem uma gênese: Juan Domingo Perón, que chegou à Presidência em 1946. Secretário do Trabalho e Previdência durante o governo militar que o antecedeu, Perón aproximou-se dos sindicatos e construiu uma forte base de apoio no meio dos trabalhadores, relação que ganhou musculatura quando acumulou o cargo de vice-presidente. O apoio foi essencial para manter Perón na Casa Rosada por três mandatos (de 1946 a 1951, de 1952 a 1955 e de 1973 a 1974).

Perón fez uma gestão populista, que, gradualmente, levou o país à bancarrota. Durante o primeiro mandato, o presidente estatizou setores da economia, como ferrovias, empresas de eletricidade e até bancos. Um dos maiores monstrengos criados foi a “Justiça do Trabalho”, responsável pelos “direitos sociais” e por parir tribunais recheados de cabides de emprego, com magistrados recebendo altos salários. Além disso, Perón quebrou o antigo modelo previdenciário do país.

Antes de Perón chegar ao poder, a Argentina tinha fundos de pensão administrados por empresas e bancos, em parceria com sindicatos, que garantiam as aposentadorias. Aos desempregados e pobres, o governo dava benefícios sociais. Quando assumiu o governo, Perón “nacionalizou” os fundos e apoderou-se deles, inclusive usando-os para conceder empréstimos para obras e empresas. O governo também incentivou a criação de novos fundos de pensão, para as categorias de trabalho que iam surgindo. Para isso, usava recursos dos fundos antigos. 

Em pouco tempo, o formato tornou-se insustentável, em virtude dos gastos excessivos do Estado, que começaram a prejudicar os aposentados, e de empréstimos malsucedidos. Criou-se, então, um “INSS” com padrões europeus, que também não deu muito certo nos primeiros anos. Paralelamente a isso, Perón permitiu a existência de uma previdência privada, que terminou em 2008, quando foi nacionalizada pela então presidente, Cristina Kirchner. Ao longo do tempo, o sistema previdenciário argentino foi se tornando parecido com o do Brasil.

A era que sucedeu a Perón também não foi das melhores. O regime militar que veio na sequência, entre as décadas de 1970 e 1980, apesar de abrir um pouco a economia, manteve práticas populistas, como o aumento de salários e de aposentadorias e a intervenção na indústria. Em momentos de agravamento da crise econômica, a ditadura recorreu ao congelamento de preços, para tentar controlar a inflação galopante.

Garrafas de óleo são vistas em um supermercado, em meio à inflação de mais de 60% nos últimos 12 meses, em Buenos Aires, Argentina (12/7/2022) | Foto: Matías Baglietto/NurPhoto/Shutterstock

A receita para o fracasso continuou a ser aplicada pelo primeiro presidente pós-redemocratização, Raúl Alfonsín, que tentou estabelecer até uma nova moeda — plano que serviu de inspiração ao Cruzado. O plano de Alfonsín cortou zeros, congelou preços das tarifas públicas e da cesta básica e controlou rigidamente os salários do setor privado. O resultado já é conhecido.

Sob Carlos Menem, sucessor de Alfonsín, a economia respirou um pouco, por causa de algumas privatizações, descongelamento de preços, maior abertura econômica e as reformas tributária e monetária. Mesmo assim, as medidas, consideradas tímidas demais, derrubaram o presidente, que não conseguiu conter o aumento do desemprego e da inflação. O cenário piorou com Fernando de la Rúa, responsável por um pedido de empréstimo bilionário ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O chefe do Executivo permaneceu apenas dois anos no governo. 

O sucessor de De la Rúa, Eduardo Duhalde, ficou pouco mais de um ano em uma espécie de governo de transição e pouco fez para melhorar o cenário, dando lugar a Néstor Kirchner, que venceu a eleição, em 2003. Durante sua administração, Kirchner conseguiu reduzir um pouco a inflação e criar mais empregos que seus antecessores, beneficiado com o boom das commodities na América Latina, que durou até meados de 2010. 

Eleita dois anos antes do fim do “milagre econômico”, Cristina Kirchner continuou expandindo gastos públicos, para manter a penca de programas sociais criados na gestão do marido e a política de compadrio da esquerda latino-americana. Ao deixar o governo, em 2015, entregou ao sucessor, Mauricio Macri, um país com 30% de pobres, 31% de inflação e quase 15% de desempregados. 

Tampouco o liberalismo prometido por Macri conseguiu resolver os problemas e entregou uma Argentina mais pobre para Alberto Fernández, cuja eleição representou a volta da era Kirchner ao país, com métodos econômicos erráticos.

O preço do populismo

Depois de muitos anos de peronismo, ditaduras e, sobretudo, dos últimos anos do kirchnerismo, o país começou a caminhar para o abismo. Os dados econômicos mais recentes mostram que a pobreza chegou a cerca de 50% da população. Quase 70% das crianças menores de 13 anos são pobres e têm comprometido o desenvolvimento cognitivo. 

Em 2001, o país tinha 2,5 milhões de pessoas trabalhando para o Estado (nos Três Poderes e nas três esferas). Dois milhões de pessoas recebiam ajuda social, e o país tinha 6 milhões de trabalhadores com registro em carteira. Pouco mais de 20 anos depois, os números só pioraram: 4,5 milhões de pessoas trabalham para o Estado, 22 milhões recebem alguma ajuda social e apenas 5,8 milhões trabalham com registro em carteira. 

“A conta não fecha: o salário mínimo é de U$S 191 (AR$ 51,2 mil, em setembro de 2022), e, para não estar abaixo da linha de pobreza, uma família precisa de pelo menos AR$ 100 mil (equivalente a U$S 374)”, constatou o analista político Gustavo Segré, em um artigo publicado na Revista Oeste. Em outras palavras, é necessário ter dois salários mínimos (pelo menos) por família para não ser pobre. 

Kleber Thibes, 48 anos, é gerente do Hotel Pestana, na região central de Buenos Aires. “Viver na Argentina é um desafio”, desabafou. “Não se sabe quanto uma compra de supermercado vai custar amanhã. As coisas sobem todos os dias.” Segundo Kleber, há momentos em que faltam produtos nas prateleiras, o que é desesperador para ele, que sustenta uma família. “O argentino médio tem de ter jogo de cintura para sobreviver”, disse. 

“A Argentina tem um desgoverno”, resumiu a analista de sistemas Silvia Fernández, 52 anos. “É completamente inoperante.” Silvia disse estar cansada de tantos anos de governos peronistas e poucos intervalos de gestões diferentes, como a do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019). “Este governo não soube manejar a pandemia de covid-19, foi incapaz de reverter os índices de insegurança, que só sobem, e destruiu a economia. Espero uma mudança real em nosso país.”

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