sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

'A hecatombe das Lojas Americanas', por Bruno Meyer - Alguém se surpreende com o fato de Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann, maiores acionistas da Americanas, apoiarem o ex-presidiário à presidência da Repúnlica?



 Alguém se surpreende com o fato de Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann, maiores acionistas da Americanas, terem apoiado a candidatura do ex-presidiário à presidência da República? 


A descoberta do rombo que ultrapassou R$ 40 bilhões leva a uma reflexão sobre o setor inteiro de varejo


No domingo 15, apenas três dias depois do escândalo virar assunto nacional, a Americanas era uma das únicas lojas abertas do centro de Rio Branco, capital de Roraima, extremo norte do Brasil. O painel velho e descuidado, com o logotipo vermelho já desbotado, antecipava o que se veria internamente: corredores amplos, mas com escassas opções de produtos e funcionários, cujos grandes destaques eram a água gelada num calor que beirava os 36 graus e um pocket de “pague 3, leve 2” dos chocolates KitKat.



Corte rápido para outra cena, menos de três meses antes. No maior centro de distribuição do Mercado Livre, em Cajamar, a uma hora de São Paulo, mais de 1,5 mil funcionários davam uma verdadeira aula de como uma varejista deve funcionar para atender aos anseios e aos desejos de uma clientela cada vez mais exigente. Com o auxílio de uma automação eficiente, um dos destinos dos R$ 17 bilhões investidos pela empresa no Brasil em 2022, a unidade é a engrenagem de uma operação responsável pela entrega de 450 mil pacotes diários do maior comércio eletrônico da América Latina. São 32 vendas a cada segundo, boa parte delas com entrega no mesmo dia da compra.

Chega a ser cruel fazer tal comparação. Mas ela é válida por estarmos diante do mesmíssimo setor: o bom e velho (e novo) varejo. De um lado, a loja grande, física, com ares de abandono no norte do país. Do outro, um lugar imerso em três palavrinhas: eficiência, agilidade e tecnologia. Mas o contraste exemplifica sobretudo o que muitos especialistas do varejo já diziam bem antes de a Americanas estar no centro do maior escândalo corporativo do Brasil: o varejo vai se concentrar em poucos players globais. Empresas como Americanas e Magazine Luiza perderam o bonde do tempo diante do gigantismo daquelas que pensam à frente do consumidor, como Amazon, Alibaba e Mercado Livre. “As varejistas que ganham cada vez mais espaço são digitais por excelência, investem pesado em tecnologia e focam em logística”, diz o economista VanDyck Silveira, sócio-fundador da EducPay e Mind Academy. “O varejo do século 21 não permite muitas empresas. Será um mercado concentrado e que entende o cliente profundamente, através de dados, mais até do que ele próprio.”

Fachada das Lojas Americanas, na zona sul do Recife | Foto: Fernando de Castro/Revista Oeste

A hecatombe

O terremoto da Americanas começou na noite de quarta-feira 11 de janeiro, quando o executivo Sérgio Rial anunciou que deixaria o cargo de CEO da varejista apenas nove dias depois de assumir a posição máxima do organograma. Ele substituíra Miguel Gutierrez, com 29 anos de empresa. A entrega de bastão era o começo de uma jornada que prometia e tinha gerado expectativa por parte dos investidores — Rial, oriundo da presidência do banco Santander, modernizaria uma empresa vista como acomodada — e até por funcionários.

No dia 3 de janeiro, Rial era o centro de uma transmissão ao vivo pela internet esbanjando otimismo. A cena era o oposto do que se veria na manhã da quinta-feira 12 de janeiro, horas depois de um comunicado anunciar seu afastamento e o encontro de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões no balanço da empresa. A hecatombe foi imediata dentro e fora do mercado financeiro: fundos de investimentos com a Americanas na carteira perderam R$ 4,2 bilhões em apenas um dia. Em uma semana, as ações da empresa despencaram 80%, vendo sumirem de seu valor cerca de R$ 9,6 bilhões. E o pior ainda estava por vir: os R$ 20 bilhões, anunciados por Rial, se somaram a uma dívida bruta de R$ 19,3 bilhões, acrescidos de outros R$ 3 bilhões. Total: o rombo passou para mais de R$ 40 bilhões.

A situação culminou num pedido de recuperação judicial, aceito pela Justiça, o que a protege de pagar credores durante 180 dias. Para ter noção do valor do rombo da Americanas, ela é a soma do valor de mercado de empresas nacionais, como GOL, Via, Marfrig, Fleury, Sanepar e Taesa. Quer piorar? Na noite da quarta-feira 1°, a equipe de administração judicial do processo de recuperação verificou que a dívida total do grupo é ainda maior: R$ 47,9 bilhões. A diferença de R$ 6,6 bilhões foi encontrada pela equipe que fez um pente-fino na lista de dívidas e credores.

Miguel Gutierrez, ex-CEO da Americanas, por 29 anos | Foto: Reprodução

O desmoronamento

O escândalo Americanas impressiona pelo tamanho do rombo, pelas variadas perguntas ainda sem resposta e pelos estragos que provocou nos mais variados setores da economia: dos bancos (só o Bradesco tem R$ 4,8 bilhões a receber) aos gigantes de tecnologia (Apple, com R$ 98 milhões), dos fabricantes de chocolates (Nestlé, com R$ 259 milhões) aos de eletrônicos (Samsung, com R$ 1,2 bilhão). Também chama atenção a velocidade do aparente desmoronamento. Só nos últimos dias, a varejista cortou contratos de terceiros e encerrou as televendas. Dois dos fornecedores de setores diferentes confirmaram à reportagem como anda a relação com a marca: para sair com caminhões cheios de mercadorias, empresas agora exigem pagamento no ato, e com valor exato da nota fiscal. Acabou a história dos 180 dias para pagar — fatura que era paga, na maioria das vezes, pelos bancos.

Como os mecanismos de controle do mercado de capitais brasileiro e sobretudo a auditoria independente não foram capazes de identificar o rombo monumental? Quem são os verdadeiros vilões da história?

Isso exige agora da Americanas dinheiro robusto no caixa, o chamado capital de giro, para arcar com todas as despesas de mercadorias, para não gerar outro problema, apontado por especialistas como provável: de operação, com produtos em falta nas gôndolas da empresa. “É uma situação muito difícil, que beira o irrecuperável”, analisa Junior Borneli, fundador da escola internacional de negócios StartSe e especialista na análise de companhias nacionais e estrangeiras. “Uma empresa, para se manter de pé, precisa de três pontos: a credibilidade, a venda e o fluxo de caixa”. Tudo o que a Americanas não tem mais. Faz um mês que a credibilidade da Americanas evaporou, e o fluxo de caixa virou miragem com a saída dos bancos. Consequência: queda das vendas. Afinal, quem vai comprar pelo site uma bicicleta para o filho sem a certeza da entrega?

A origem

Fundada em 1929, em Niterói, a Americanas passou a ser controlada em 1982 por Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, quando o trio fazia parte do Banco Garantia. A Americanas foi o ponto de partida para construir um império poderoso: a partir da holding 3G, os três empresários passaram a controlar marcas que são a personificação do consumo global, como a rede de fast-food Burger King, a Kraft Heinz (foram eles que juntaram as duas marcas, em sociedade com Warren Buffet, o investidor mais celebrado do mundo) e a maior cervejeira do planeta, a AB Inbev, dona de mais de 50 rótulos, sendo a mais famosa, a norte-americana Budweiser. O sonho inconfessável de Lemann era transformar a Americanas numa espécie de Target, a rede de lojas de varejo dos Estados Unidos que vende de barras de chocolate a roupas. Basta dar uma andada no andar principal do Iguatemi, um dos shoppings mais tradicionais e sofisticados de São Paulo, para ver que a tese não parava em pé: a unidade não consegue atender ao gosto do perfil do público do lugar.

Sérgio Rial | Foto: Divulgação

Assim que o caso tomou a manchete dos veículos de mídia, o trio Lemann, Telles e Sicupira permaneceu em silêncio por 11 dias, até escrever uma carta anódina e pouco convincente. O documento, redigido por um recém-contratado escritório de gestão de crise, é formado por oito pontos. Os três afirmam que jamais tiveram conhecimento da fraude e nunca admitiriam “quaisquer manobras ou dissimulações contábeis na companhia”. O sétimo ponto da carta virou motivo de piada na Avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo: nela, os empresários lamentam as perdas de investidores e credores e, assim como todos, anunciam que também tiveram prejuízo, como acionistas majoritários.

A trinca

Não chega a ser uma mentira, embora estejamos diante dos três homens mais ricos do Brasil: em 2021, Lemann, Telles e Sicupira deixaram o posto de controladores da Americanas para se tornar acionistas de referência, com 31% do negócio. Até o fim de 2022, a fortuna de Lemann era estimada em R$ 72 bilhões, segundo a Forbes. Nessas horas, de grandes escândalos e crises corporativas, é preciso olhar para a ponta mais fraca, os maiores perdedores de toda essa história: o investidor minoritário. O sujeito que tinha R$ 120 mil de ações da Americanas há menos de um mês se vê agora com menos de R$ 20 mil. No dia 10 de janeiro, a ação da varejista estava cotada a R$ 12. Dias depois, chegou a valer centavos, com cotações a R$ 0,66. É ainda imensurável o real tamanho do prejuízo causado para acionistas, investidores e para todo o mercado em geral. Na última semana, um grupo de 20 acionistas minoritários deu entrada em um pedido na área criminal contra a empresa, com duas demandas: o afastamento imediato de Lemann, Sicupira e Telles e a reparação de R$ 5 milhões.

Ainda há uma série de perguntas a serem respondidas: como os mecanismos de controle do mercado de capitais brasileiro e sobretudo a auditoria independente — a britânica PWC — não foram capazes de identificar o rombo monumental? Quem são os verdadeiros vilões da história? Qual o papel do trio 3G na história, do espanhol Miguel Gutierrez, ex-CEO da empresa, que voltou a morar no país de origem, e dos diretores da antiga gestão? Para ter noção da desconexão com a realidade, 2022 ficou marcado como o maior pagamento de dividendos da história da empresa: mais de R$ 330 milhões, até o terceiro trimestre, sendo R$ 100 milhões apenas para Lemann, Telles e Sicupira (tido como o cérebro da varejista e maior entusiasta da marca dentre os três).

Um movimento suspeitíssimo foi a venda de R$ 100 milhões em ações por executivos da empresa em 2022. Nas apostas do mercado, sobra até para Sérgio Rial. “Houve um claro conflito de interesse, pois ele era presidente do Santander, um dos maiores credores da Americanas, e certamente deveria saber o que acontecia na relação com o banco e a varejista”, questiona um economista, que pediu para não ser identificado. “Só não devia saber a magnitude da fraude nem que a relação com o banco era o modus operandi com todas as empresas e pediu para sair ao ver o tamanho do buraco.”

O holofote sobre o escândalo da Americanas leva a uma reflexão sobre o setor inteiro do varejo, como abordado no início da reportagem. Amazon, Alibaba, Mercado Livre, Shopee vieram para arrasar os varejistas locais. Com a inteligência artificial e o uso correto dos dados, a Amazon, por exemplo, consegue identificar produtos que caem em desuso numa região da cidade, e que passam a ter mais valor em outra, antecipando assim a demanda de encomendas, o que facilita inclusive o trato com fornecedores. A inteligência da Amazon de certa forma chega a antecipar o comportamento de uma sociedade.

 

Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann Telles são os maiores acionistas da Americanas - Foto: Divulgação/3G Capital

O futuro

O filtro de água em casa precisa ser trocado? Não tem problema. Um e-mail da companhia avisa, antes mesmo de um botão ser acionado no filtro. Além do mais, o gigante do comércio eletrônico fundado por Jeff Bezos se expandiu para todas as áreas: através de um serviço premium, com uma assinatura anual, o cliente tem acesso a serviços de TV a um plano com entrega grátis de 80 medicamentos no valor de US$ 5, ainda apenas nos Estados Unidos. “O futuro vai ser das empresas de plataforma, que conseguem manter as pessoas dentro de um ecossistema, algo que a Amazon faz”, diz Junior Borneli. No Mercado Livre, cem cidades brasileiras recebem no mesmo dia da compra. A Amazon, além de um exército de 1,5 milhão de funcionários, possui 370 mil robôs, alocados sobretudo no armazenamento e nos centros de distribuição.

Como competir com esse mundo novo, se a concorrência ainda fala em “carnezinho gostoso”? Em julho do ano passado, a empresária Luiza Helena Trajano virou notícia ao fazer um apelo aos clientes para irem às suas lojas, lembrando do “carnezinho gostoso”, sem citar — é claro — que os juros do tal carnê poderiam fazer uma geladeira custar o dobro no Magazine Luiza. “Esse mundo acabou. O cara hoje quer pagar parcelado, e no Pix”, diz VanDyck Silveira. “Compra on-line e busca pessoalmente é o que varejistas locais propõem. De onde surgiu isso?” Com a avalanche de notícias que aparecem do caso Americanas, da suspensão do canal de televendas ao aumento da dívida em R$ 6,6 bilhões, a palavra falência tem sido uma das mais usadas por quem acompanha o mercado financeiro e o setor de varejo atualmente. Além a suspenção da cobrança das dívidas por 180 dias, a recuperação judicial fixa prazo de cerca de dois meses para que a empresa apresente um plano detalhado de como vai pagar todo mundo. Plano este que precisa da aprovação dos credores.

Lastimável o prejuízo bilionário para um infindável número de empresas e pessoas, e para os mais de 40 mil funcionários da empresa. O caso de fraude na Americanas também é mais um claro sinal de que o varejo nacional está numa enrascada. A turma do “carnezinho gostoso” precisará se reinventar para conseguir enfrentar os gigantes que entendem mais do cliente do que ele mesmo.


Com Revista Oeste