domingo, 14 de fevereiro de 2021

"Castas", por J.R. Guzzo




O Brasil oferece todos os dias lições espetaculares em matéria de concentração de renda – e na demonstração permanente de que é governado, cada vez mais, por um sistema de castas que se coloca acima de qualquer possibilidade de reforma. 

Funciona assim: a cada vez que o poder público toma alguma decisão que vai afetar a vida de todos, as prioridades de 1 a 100 vão para quem está nos galhos de cima da árvore, os únicos que realmente contam. 

Quanto a quem está nos galhos de baixo – bem, quem é mesmo essa gente? 

Eles não existem para quem decide as coisas, e, se existirem, podem ir todos para o raio que os parta.

Não muda nunca. 

As castas superiores recebem tudo, o tempo todo; as castas inferiores não recebem nada, em tempo algum. 

É claro que você ouve falar o contrário, dia e noite – mas, na vida real, e na hora de resolver, ninguém que manda de fato em alguma coisa neste país pensa no preço que 80% da população brasileira, ou mais, vai pagar por suas decisões. 

Não é que os viajantes da primeira classe não gostem dos demais; é que eles não são capazes, simplesmente, de considerar que existem pessoas em outros mundos que não seja o seu. 

O “distanciamento social”, que há um ano se tornou a ideia fixa das castas mais elevadas, é com certeza um dos grandes clássicos de todos os tempos dessa onda de selvageria social.

Nada serve para entender isso tão bem quanto a devoção religiosa ao “#fique em casa” e, ao mesmo tempo, a absoluta impossibilidade de se aplicar as regras do confinamento à imensa maioria da população. 

É simples: esse povo não pode ficar em casa porque precisa sair todos os dias para se manter vivo. 

Também precisa, por este mesmo detalhe, aglomerar-se no metrô, em ônibus e em trens – só em São Paulo, são cerca de 8 milhões de pessoas por dia – para ir ao trabalho e para suprir suas necessidades. 

Moram em fins de mundo que a casta superior só vê na janela dos seus SUVs. 

Levam de duas a até três horas e meia para ir de casa ao trabalho, e outro tanto para voltar, todos os dias. 

Em seu mundo não há serviços. 

Não há delivery, nem “trabalho remoto”, nem possibilidade de se manter distância do vizinho. 

Fazer apenas o “essencial”, como ordenam os militantes da quarentena, significa fazer tudo o que está proibido. 

Pior – ignorar as regras é indispensável para manter intocado o padrão de vida e o bem-estar dos gestores do distanciamento; sem “aglomeração” não há delivery.

Os médicos e “cientistas” que prestam serviços de marketing aos governos, os marqueses da alta burocracia e o restante da turma que toma as decisões não entendem que há milhões de pessoas, a maioria disparada da população, que não podem cumprir as suas ordens e sobreviver. 

“Protocolos” da Prefeitura de São Paulo, como relata a repórter Priscila Mengue, do Estadão, recomendam “mobilidade a pé”, ou por bicicleta, e desaconselham entrar em ônibus cheios. 

Maria Antonieta não faria melhor com os seus brioches. 

Se onde o povo mora não existe nem calçada, como é que alguém vai pensar em ciclovia?

O mundo do “distanciamento social” é, no fundo, o mesmo dos salários extravagantes de juízes, promotores e outros ases do funcionalismo público. 

É o mundo que vai da canonização das empresas estatais às “imunidades parlamentares”, das aposentarias com vencimentos integrais à ausência de ricos nas penitenciárias. 

É o mundo onde as empreiteiras recebem cinco vezes mais pelas obras que constroem – e às vezes nem constroem. 

É tudo pinga da mesma pipa; para as castas de cima, entrega-se a renda, para as castas de baixo, o serviço de motoboy.

Que ouçam as pregações pela igualdade – e façam a próxima entrega.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 14 de fevereiro de 2021

Revista Oeste