sexta-feira, 21 de agosto de 2020

"Os Correios entre um futuro e o vale-peru", por Dagomir Marquezi

 Bônus natalino de R$ 1 mil e vale-refeição durante as férias estão na lista de “direitos” dos servidores da estatal ineficiente — uma lista maior que a da Amazon


Oprimeiro sistema postal conhecido transportou mensagens no Egito 2 mil anos antes de Cristo. Os romanos tinham um sistema tão perfeito para a época (segundo a Enciclopédia Britânica) que uma mensagem transportada pelos cursus publicus chegava a viajar 270 quilômetros num único dia por meio de um sistema de carruagens leves puxadas a cavalo.

No século 17, os monarcas ingleses e franceses criaram o monopólio estatal dos correios. Em 1840, os correios britânicos introduziram o conceito do selo pré-pago (e barato) colado num envelope. Logo os serviços postais deram um salto de velocidade e eficiência com a expansão das ferrovias. Em 1875, a União Postal Universal uniu os serviços nacionais no primeiro sistema global de comunicação e transferência de riquezas. No meio do século 19, a invenção do telégrafo tornou as distâncias quase irrelevantes.

No Brasil, a história começou em 1663, quando foi criado o Correio-Mor no Rio de Janeiro — já um monopólio estatal. Com o correr dos séculos, desenvolvemos uma relação sentimental com o serviço postal. O carteiro se tornou o profissional que conectava pessoas distantes enfrentando sol, chuva e cães bravios para que a mensagem fosse entregue ao destinatário. Os Correios eram fundamentais; o carteiro, aguardado com ansiedade e simpatia.

Getúlio Vargas criou, em 1931, o Departamento de Correios e Telégrafos, depois transformado pelo regime militar, em 1969, na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Com algumas modernizações (como o Sedex), os Correios cresceram para se tornar um gigante de 109 mil empregados (em 2008), presente em todos os municípios do país.


O aparelhamento político e a má gestão destruíram os Correios


Seria uma bela história de conquista e orgulho nacional. Mas o e-mail foi inventado em 1971. Com a expansão e a popularização da internet, cartas e telegramas foram se tornando peças de museu. E isso só se acelerou com as redes sociais e serviços de comunicação instantânea como o WattsApp. Empresas começaram a trocar seus extratos e boletos de papel por versões eletrônicas.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos poderia ter enfrentado essas novidades com adaptações inteligentes aos novos tempos. Poderia ter compreendido que seu sistema de administração estava parado no tempo num momento de mudanças radicais. Mas tomou o pior caminho.

A situação dos Correios no século 21 é trágica. Segundo uma reportagem da revista Época Negócios (2018), a empresa fechou quatro anos seguidos com prejuízos milionários (entre 2013 e 2016) e perdeu um volume expressivo de encomendas de 2010 a 2016 por causa de “anos de má-gestão, corrupção e uso político da companhia”.

O primeiro sinal do escândalo do mensalão aconteceu naquele célebre vídeo que mostrava um dos diretores dos Correios ligado ao PTB recebendo propina em maços de notas. Em 2012, reportagem de O Estado de S. Paulo denunciava: “Uma das fontes do escândalo do mensalão, o aparelhamento político na estatal Correios continua, sete anos depois. Após passar pelas mãos do PTB e do PMDB, desalojados do comando em meio a denúncias de corrupção, a empresa virou feudo do PT, cujos líderes indicaram nomes para os principais cargos de direção”.


Como reagirá o Congresso? Vai optar pela eficiência do serviço ou preservará as negociatas?


O panorama já seria triste se fosse limitado aos Correios. Mas existe também o Postalis. O Postalis é o gigantesco fundo de aposentadoria dos funcionários dos Correios, criado em 1981. Lá, a conta nunca fecha. Em 2015 (segundo a Folha de S.Paulo), a Polícia Federal apurou desvios de até R$ 180 milhões no Postalis. Em 2017, o Tribunal de Contas da União identificou operações suspeitas com fundos de investimentos que causaram R$ 1 bilhão de prejuízo ao fundo.

Trezentas agências dos Correios foram fechadas entre 2017 e 2018. O prejuízo acumulado entre 2016 e 2017 foi de US$ 4 bilhões. A pergunta está no ar: por que ainda não se privatizou essa empresa em frangalhos? Por que esse ralo de recursos continua com o monopólio dos serviços postais do país?

Martha Seillier, secretária especial do Programa de Parceria de Investimentos, divulgou na última terça, dia 18, que o governo federal pretende encaminhar ao Congresso “nas próximas semanas” um projeto de lei que regulamenta a atuação do setor privado na prestação de serviços postais. É o primeiro passo para iniciar a batalha contra o monopólio.

O governo Jair Bolsonaro vai até o fim nesse processo? Como reagirá o Congresso? Vai optar pela eficiência de um serviço vital para a população? Ou vai preservar negociatas, cargos ocupados por políticos, incompetência, prejuízos abissais e corrupção sistêmica?


Os partidos de esquerda repetem os velhos clichês contra a “privatização de um patrimônio nacional”


A Federação dos Trabalhadores da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (da CUT) fez o que costuma fazer sempre que um monopólio estatal é ameaçado. Declarou greve geral, mantendo a população brasileira refém da “categoria” numa época de pandemia e profunda crise econômica. 

Os partidos de esquerda — PT, Psol, PCdoB — apoiaram imediatamente a greve, repetindo os velhos clichês contra a “privatização de um patrimônio nacional” e na defesa da “conquista de décadas dos trabalhadores e trabalhadoras dos Correios”.

Os sindicalistas listaram sem o menor pudor os “direitos” ameaçados que serviram como pretexto para a greve. E ficamos sabendo que os quase 100 mil funcionários dos Correios têm direito a licença-maternidade de 180 dias, adicional noturno, auxílio-creche para dependentes até 7 anos, subsídio de 70% em planos de saúde, vale-cultura, anuênios, adicionais em atividades como distribuição de cartas e guichê, pagamento de 100% da hora extra, pagamento de 70% das férias, garantia de pagamento durante afastamento pelo INSS, garantias para o empregado estudante, adicional de 200% para trabalho em dia de repouso, estabilidade de emprego para delegados sindicais, licença-adoção, jornada de 40 horas, bônus de R$ 1 mil no Natal (o “vale-peru”) e vale-refeição durante as férias.

Essa lista de “direitos” não deve existir nem na Amazon, que vale US$ 415 bilhões e só dá lucro. Pois os Correios oferecem o paraíso a seus funcionários, mesmo emplacando prejuízos abissais, e um serviço tão ruim que já provocou revoltas abertas da população em cidades do interior de São Paulo.

Matéria do jornal O Globo mostrou que foi aberto um processo pelo Procon do Rio de Janeiro diante do “aumento de 374% das reclamações sobre os serviços da empresa, entre 27 de fevereiro e 4 de agosto deste ano, frente ao mesmo período de 2019. […] Não entrega de produto, descumprimento de prazo, falta de um canal para tratamento dessas reclamações assim como falta de informação do prazo de devolução do dinheiro no caso de produto extraviado estão entre as principais queixas feitas ao Procon”. Os Correios estão em segundo lugar na lista das “piores empresas dos últimos 30 dias” do site Reclame Aqui.

Os direitos oferecidos por uma estatal como a ECT a seus funcionários são um deboche para trabalhadores informais, que já representam 40% no mercado e não têm NENHUM direito. Ganham o dinheiro que trocam por trabalho ou prestação de serviço, dia e noite, sete dias por semana. E pagam cinco meses por ano de impostos que sustentam empresas como os Correios.


A situação vexaminosa expõe a vulnerabilidade das empresas controladas pelo governo


“Os problemas estruturais [dos Correios] vêm de longe e se agravaram muito na gestão Dilma Rousseff”, escreveu a consultora Zeina Latif para o jornal O Estado de S. Paulo. “Má gestão, controle de tarifas e repasses excessivos de dividendos ao Tesouro comprometeram seu patrimônio e investimentos, além dos prejuízos obtidos entre 2013 e 2016. A experiência ilustra a vulnerabilidade das empresas controladas pelo governo.”

Zeina, doutora em Economia pela USP, acha que a privatização pura e simples pode ser um caminho difícil. E o saneamento financeiro, limitado. “Vale mencionar que, para o Supremo Tribunal Federal, as estatais precisam apresentar motivação para demitir, pois os empregados são concursados.” Ela acha mais viável a quebra do monopólio no segmento de correspondência e malotes. Dá como exemplo a Correos de Chile: “A empresa estatal é autônoma, não conta com recursos governamentais, tem auditoria independente e avaliação de crédito feita pelas agências de rating. Não há monopólio estatal, mas sim a regulação do setor”.

Até quando a população será prejudicada por essa greve? Em qual das próximas semanas a secretária Martha Seillier vai encaminhar o projeto de lei que regulamenta a atuação do setor privado na prestação de serviços postais? Como reagirão os senhores congressistas ao projeto? O Supremo Tribunal Federal vai interferir para proibir qualquer mudança na atual situação?

O serviço postal brasileiro vai evoluir, se tornar mais eficiente, mais transparente? Ou continuaremos trabalhando cinco meses por ano para pagar os impostos que sustentam o vale-peru e serviços inferiores aos dos cursus publicus do Império Romano?


Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direitos dos animais e tecnologia.

Revista Oeste