sexta-feira, 7 de agosto de 2020

"O narcisismo dos políticos. E o nosso", por Theodore Dalrymple

 A cultura narcísica e o novo pacto social: eu finjo estar interessado em suas trivialidades se você fingir estar interessado nas minhas


Recentemente vi uma foto do presidente Bolsonaro usando uma máscara em que havia uma imagem… do senhor Bolsonaro.

Confesso que pensei no título de um poema de Ernesto Cardenal, o poeta-sacerdote da Nicarágua com quem, em outras situações, não estou sempre de acordo: “Somoza desveliza la estatua de Somoza en el estadio Somoza”. Lembrei também da minha chegada a Puerto Stroessner — a atual Ciudad del Este, no Paraguai — em um barco chamado Presidente Stroessner, ao som da melodia, saindo pelo sistema de alto-falante, da polca “General Stroessner”. Comprei o disco, mas acabei perdendo-o: Cantos a Mi General.

Claro, no que diz respeito aos seres humanos, nenhuma grande descoberta, o narcisismo não é uma característica nova: faz muito tempo que Narciso olhou para dentro do lago e se apaixonou pela própria imagem refletida. Mas minha impressão — que, admito, não tem embasamento científico — é que o narcisismo em figuras públicas está aumentando.

Outra de suas características é um vazio interno que pode ser preenchido apenas pela aparição constante para e diante do público — o que também não é, em absoluto, algo inédito. A John Maynard Keynes (1883-1946), o grande economista, certa vez perguntaram o que ele achava que David Lloyd George (1863-1945), um primeiro-ministro demagogo do Reino Unido, pensava quando estava sozinho.

“Quando Lloyd George está sozinho”, respondeu Keynes, “não tem ninguém ali.”

Se não deixar rastros nas redes sociais, você é como o zumbi do folclore haitiano. Não está vivo nem morto, e sim algo no meio do caminho


Parece haver um número e proporção ainda maiores de pessoas sobre quem essa resposta seria verdade, e não, infelizmente, apenas entre figuras públicas. É uma característica comum na população. A tendência ao narcisismo e ao vazio interno que é só aliviada com a exposição pública foi intensamente reforçada pelas chamadas mídias sociais, claro. É quase como se as pessoas acreditassem que não tomaram café da manhã de fato, a menos que todos os seus amigos fiquem sabendo não só que elas tomaram café da manhã, mas o que comeram. Ninguém pegou o ônibus, ninguém comprou nada de fato, ninguém chegou ao trabalho, a menos que todos os amigos fiquem sabendo; e, claro, eles se comportam exatamente da mesma forma. A maneira de ser um tédio, disse Voltaire, é dizer tudo: mas isso foi no século 18. A forma de existir de verdade no século 21 é postar tudo no Facebook. Se não deixar um rastro ali, você é como o zumbi do folclore haitiano, ou seja, você não está vivo nem morto, e sim algo no meio do caminho.

O fato de que a vida é cada vez mais vivida e registrada para o público convence muitas pessoas de que elas e sua vida têm um significado que não teriam se vividas totalmente no privado. O simples fato de publicar dá, digamos, ao café da manhã uma importância que ele, e a vasta maioria dos outros eventos da vida, não teria se ninguém ficasse sabendo, ou pudesse ficar sabendo. A publicação da pequena mudança em nossa vida nos alivia da necessidade de comparar a insignificância de nossa própria existência com a importância ou as conquistas óbvias das outras pessoas. Existe um falso silogismo em ação:

O que é importante é publicado.

Eu publico o que faço para mim.

Logo, o que faço é importante.

Claro, o que acontece com alguém, e o que essa pessoa faz, lhe é importante. Nesse sentido, todos os homens são iguais. Mas ser existencialmente igual não é mais suficiente para um grande número de pessoas na era das celebridades. Ser é ser notado, disse o filósofo idealista Bishop Berkeley (1685-1753). Em outras palavras, a própria existência de qualquer coisa depende de haver um sujeito que a perceba para fazê-la existir. Quando o sujeito que o percebe desvia o olhar ou vira as costas, o objeto deixa de existir. Cada vez mais, eu deduzo, as pessoas sentem a mesma coisa sobre si mesmas. E, quanto mais são notadas, mais sentem que verdadeiramente existem. Quando estão a sós, como Keynes disse de Lloyd George, não tem ninguém ali, mesmo para si mesmas.

A era das mídias sociais é a era do narcisismo, e o narcisismo é incompatível com a sociabilidade


E, no entanto, ninguém consegue acreditar de fato na filosofia de Bishop Berkeley, para quem como as coisas só são conhecidas pela percepção elas deixam de existir quando não são notadas. Ninguém acredita de verdade que, se fechar os olhos, as coisas em volta deixarão de existir, só para voltar a existir quando os olhos forem abertos. Da mesma forma, ninguém pode realmente achar que os detalhes do próprio café da manhã são importantes se relatados nas redes sociais. Portanto, para manter o fingimento, existe um novo pacto social: eu finjo estar interessado em suas trivialidades se você fingir estar interessado nas minhas. E, se essa farsa prossegue por tempo suficiente, ela ganha certa realidade. Se você fingir ser algo por tempo suficiente, é o que você se tornará. Assim, se fingir ter interesse nas banalidades da existência cotidiana, você de fato ficará interessado nelas, à exclusão de todo o resto, e sua mente se atrofiará.

A era das mídias sociais é a era do narcisismo, e o narcisismo é incompatível com a sociabilidade. Antes que a covid-19 pusesse fim ao turismo de massa, pelo menos temporariamente — um de seus poucos benefícios inquestionáveis —, você via as pessoas em toda parte tirando fotos de si mesmas com seus celulares com “paus de selfie” criados especialmente para esse propósito: eu e a Mona Lisa, eu e David, de Michelangelo, com ênfase no eu. Elas não se dariam ao trabalho se não fosse possível mandar a foto como uma espécie de resposta a alguém que tivesse enviado “eu e o Taj Mahal”, ou “eu e eu e o Angkor Wat”.

Então, a máscara do presidente Bolsonaro — eu e o vírus da covid-19 — sem dúvida é ridícula. Mas não mais ridícula, nem muito diferente, que o comportamento de milhões de nós — exceto, claro, pelo fato de ele ser o líder de um país. Mas, como o político radical francês do século 19 Ledru-Rollin supostamente disse: “Preciso seguir as pessoas porque sou o líder delas”.


Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New CriterionThe Spectator e City Journal.


Revista Oeste