ALei do Gás que está prestes a ser votada na Câmara dos Deputados visa a permitir que a expansão do mercado passe a ser direcionada pelas leis econômicas, de modo que o desenvolvimento setorial se dê com base nos usos mais eficientes do combustível. Mas é necessária atenção ao risco de contradições no processo legislativo, uma vez que condições contrárias a tal desenvolvimento estão sendo apresentadas sob o disfarce da eficiência e modernidade.
As tentativas nesse sentido têm sido verificadas por meio da defesa, por alguns agentes, de questões aparentemente simpáticas à sociedade ou com simulada coerência técnica: a proposta de universalização do acesso ao gás natural e a implantação de térmicas a gás na base no sistema elétrico nacional. Complementa esse cenário contrário à liberalização prometida pela Lei do Gás a recente aprovação do Fundo de Expansão dos Gasodutos de Transporte e de Escoamento da Produção (Brasduto) no Senado, que prevê a destinação de 20% dos recursos do Fundo Social para financiar a construção de gasodutos.
A principal transformação proporcionada pela nova Lei do Gás diz respeito à adoção de um modelo de competição no setor que permita ao Brasil superar o monopólio estatal na área, abrindo caminho para que o combustível realmente seja disponibilizado em condições mais competitivas para a indústria brasileira. Vale lembrar que, enquanto as fábricas nacionais ainda pagam em torno de US$ 14 por milhão de BTU (medida de gás natural), suas concorrentes no exterior dispõem do insumo a um custo médio da ordem de menos da metade desse valor. Pior, na Argentina, o custo fica em cerca de um terço do pago por aqui.
Esse movimento proporcionado pela nova legislação está em linha com as mudanças mais amplas em curso no setor, que têm sua base no crescimento da produção de gás a partir das reservas do Pré-Sal –a projeção indicada no Cenário de Referência do Plano Decenal de Energia 2029 é que a produção líquida do combustível passe dos atuais 83 milhões de metros cúbicos por dia para 138 milhões no final desta década.
Completam o quadro as determinações do Termo de Cessação de Conduta (TCC), assinado no ano passado pela Petrobras e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) definindo as condições para o fim do monopólio da estatal no setor, e o estabelecimento de mercados livres de gás natural nos estados, por meio dos quais produtores e consumidores podem negociar diretamente a contratação do insumo.
Nesse contexto, a substituição do modelo jurídico de concessão pelo de autorização para novos gasodutos facilita a instalação da infraestrutura necessária para os investimentos decorrentes dos acordos no mercado livre e a expansão da produção. Preços competitivos alinhados aos valores praticados no mercado internacional e o livre acesso de terceiros às infraestruturas de transporte –inclusive de escoamento, para a costa, do gás produzido nas plataformas offshore– completam o cenário, abrindo espaço para negociações entre agentes sem a necessidade de tutela estatal. Não faz sentido, portanto, a tentativa de se inserir, na nova legislação, obrigatoriedades relativas ao uso do gás para operação de térmicas na base.
Na realidade, o Brasil já demonstrou, na prática, o insucesso do uso desse tipo de usina como vetor da expansão do consumo de gás natural. Mesmo com a Térmica de Cuiabá (480 MW), da Âmbar Energia, e as do Complexo Parnaíba (1,4 GW), da Eneva, Mato Grosso e Maranhão permanecem com consumos industriais nulos de gás natural, conforme informações da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás). No caso do Paraná, a usina de Araucária (469 MW), da Copel, tampouco auxiliou na expansão gasífera no estado, limitada a 16 dos 399 municípios paranaenses.
Mais, a obrigatoriedade da destinação do gás a esses projetos vai na contramão de toda a proposta liberalizante por trás da nova Lei do Gás. Uma eventual destinação do insumo a esse tipo de térmica tem de levar em conta o planejamento do setor elétrico combinado à viabilidade econômico-financeira dessas plantas, traduzido no interesse de empreendedores pelo investimento e propostas vitoriosas nos leilões de contratação de energia. Nesse contexto, uma vez estruturado um projeto, a infraestrutura para fornecimento de gás natural seria mera consequência.
Tampouco tem cabimento a tentativa de se estabelecerem amarras legislativas em favor da “universalização” do acesso ao gás natural. O fato é que o consumidor residencial praticamente não vê diferença técnica no uso do gás liquefeito de petróleo (GLP) e do gás natural no fogão doméstico ou no aquecedor de água. Pelo contrário, o custo do gás canalizado pode ser superior ao do gás de botijão devido à exigência de pagamento mensal por um volume mínimo.
Diante dessas condições, os esforços pela inserção dessas teses na Lei do Gás deixam dúvidas sobre quem seriam os reais beneficiados por essas propostas. Certamente não seriam os consumidores, que se veriam obrigados a pagar tanto pelas obras dos gasodutos como pela energia de usinas contratadas por decreto, e não por sua real competitividade. Não seria de estranhar, portanto, que o resultado prático de tais ações fosse justamente em direção contrária ao planejado, com o gás e a energia elétrica mais caros, e uma intensificação do movimento de busca por alternativas como caldeiras a lenha nas operações industriais.
Por fim, a criação do Brasduto não faz sentido diante da discussão liberalizante em curso e tem de ser vetada pela Presidência da República. Seus defensores alegam que os recursos voltariam ao fundo à medida que os novos gasodutos ficassem cheios, o que é um total contrassenso. O financiamento dos novos gasodutos deve ser feito via mercado de capitais, com base na viabilidade econômico-financeira dos projetos e numa regulação robusta que a sustente.
Essas propostas, que se disfarçam em meio a elogios à lei liberalizante, alegando que ela é “tímida”, nada mais são do que tentativas de se aplicar a lição do escritor Lampedusa: “Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude”. A fórmula valeu para a unificação italiana no século 19 e tem sido usada em inúmeras decisões políticas no Brasil contemporâneo. Não podemos deixar que ameace o futuro do gás natural no país.
Lucien Belmonte
Lucien Belmonte é presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro).
Poder360