Pelo menos 163 estudantes foram expulsos de universidades federais desde 2017 por fraudes em cotas raciais. As 26 universidades que compartilharam informações com a reportagem receberam 1.188 denúncias, que culminaram em 729 processos administrativos no período.
Cada denúncia e processo administrativo pode tratar de um ou mais estudantes a depender da universidade. Isso porque cada instituição cataloga os casos a sua própria maneira.
A UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), por exemplo, recebeu 30 denúncias, mas instaurou apenas dois processos administrativos coletivos, dividindo os estudantes suspeitos de fraudar o sistema entre os que ainda são alunos e os que já se formaram. A UFRRJ não expulsou nenhum aluno até o momento.
A campeã em número de expulsões, entre as instituições que responderam às demandas, é a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), com 33 pessoas desmatriculadas. As expulsões são fruto de 44 denúncias, que se tornaram 44 processos administrativos individuais.
A quantidade de denúncias e de expulsões por fraudes em cotas raciais nas federais pode ser ainda maior, uma vez que os dados se referem a informações de apenas 26 das 69 universidades federais consultadas. As demais não enviaram os dados solicitados até a conclusão desta reportagem.
No dia 13 de julho, a UnB (Universidade de Brasília) cassou os diplomas de dois alunos e expulsou outros 15 por suspeita de fraudes em cotas raciais. A cassação de diplomas pela instituição é pioneira no Brasil e, segundo o advogado da ONG Educafro, Irapuã Santana, pode indicar mudança na jurisprudência sobre responsabilização de fraudadores.
"Eu acho que foi um precedente muito importante e que caminha para a posição correta de cancelar os créditos cursados indevidamente. Isso, junto com as comissões de heteroidentificação, podem levar a responsabilização efetiva e inibir pessoas de tentarem a sorte por meio da fraude", disse.
Para o advogado, uma das razões que explicariam a quantidade de fraudes no sistema de cotas em universidades é o baixo custo do risco-benefício, ou seja, não há consequências legais contra o fraudador que for descoberto.
É possível, segundo Santana, que fraudadores sejam processados penalmente pelo crime de falsidade ideológica, que consiste na criação ou adulteração de documentos particulares ou públicos com a finalidade de obter vantagem indevida —crime cuja pena é de um a cinco anos de prisão.
No entanto, não há casos em que fraudadores de cotas em universidades tenham sido penalmente responsáveis, segundo Santana.
Apesar de cada universidade ter sistema próprio para investigar fraudes em cotas, o trâmite para apurar irregularidades segue um padrão. Após a instituição receber a denúncia, há uma apuração prévia. Caso ainda exista dúvida sobre se houve fraude, é instaurada uma comissão responsável por investigar o caso e ouvir o acusado. Se a comissão concluir que houve fraude, o estudante é desligado da universidade. Caso contrário, o processo é encerrado.
As fraudes em universidades voltaram ao debate público com intensidade após um perfil no Twitter expor dezenas de pessoas que supostamente teriam burlado o sistema para conseguir uma vaga em uma universidade pública. O perfil expunha jovens sem considerar o direito ao contraditório e a ampla defesa do acusado.
O resultado não poderia ser diferente: uma jovem indígena foi acusada de ser fraudadora quando, na verdade, tinha direito à cota por meio da qual ingressou no curso de medicina na UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Após o erro, o perfil que reunia as denúncias foi excluído.
Para evitar que as universidades se tornassem tribunais raciais, a pioneira na adoção de cotas, a UnB, passou a criar comitês de heteroidentificação para conferir se os vestibulandos autodeclarados pretos ou pardos tinham direito à política de cotas.
Essas comissões são bancas que analisam características fenotípicas (físicas) para aferir se o candidato pode ter sido prejudicado social e estruturalmente por ser negro. O grande gargalo das cotas, segundo especialistas é a autodeclaração sem confirmação de fenótipo de pessoas pardas.
Os pardos vivem no limbo provocado pela miscigenação, pois podem ser escuros demais para serem brancos ou claros demais para serem pretos. É possível que um pardo de pele clara jamais sofra racismo e outro de pele escura sofra cotidianamente.
Aqueles que são contrários às cotas afirmam que os membros das comissões seriam juízes da raça por tentarem apontar quais pardos são negros.
Jefferson Mariano, economista, professor universitário e analista socioeconômico do IBGE, afirma que o Brasil é um país que tem dificuldade de lidar com o racismo por não o reconhecer como um problema estrutural. O próprio censo do IBGE aponta como negros os pretos e pardos, não havendo uma categoria que unifique, oficialmente, a população negra.
“O negro é uma construção política que é difícil no Brasil porque usamos pretos e pardos por não temos o negro nas estatísticas oficiais. O indivíduo pardo, na verdade, era aquele que não era branco e não se identificava como preto. Chegou-se até a incluir os indígenas como pardos nos censos. Só na década de 1990 que passaram a ter um termo próprio. A carga do racismo acaba sendo mais pesada em função da cor de pele mais escura. Isso gera um problema de autodeterminação, de identidade", afirma Mariano.
A intensa mistura das raças no Brasil deriva de processos que vão da escravidão à política de Estado para o embranquecimento. Com o fim da escravidão, o Brasil optou por integrar à sociedade imigrantes europeus em vez de mão de obra negra. A vinda de imigrantes agradava aos eugenistas, adeptos da teoria de uma raça superior (a branca) que precisa ser preservada.
Em 1911, João Batista Lacerda, então presidente da Associação Nacional de Medicina, defendeu durante o Congresso Universal das Raças, em Londres, a mestiçagem para que o povo brasileiro embranquecesse no intervalo de duas ou três gerações —mais de cem anos depois a população brasileira é majoritariamente negra.
Os negros brasileiros nadam contra a corrente desde a chegada do primeiro de seus ancestrais ao país, já escravizado. Em 2020, contrariando as estatísticas, são maioria da população brasileira, 56,2%, de acordo com dados do IBGE de 2019 —ano em que, pela primeira vez, negros se tornaram maioria nas universidades públicas.
As cotas raciais têm papel determinante nesse marco educacional. Graças ao sistema que busca facilitar o acesso de negros à universidade em face das dificuldades que enfrentam por causa do racismo estrutural, 50,3% dos estudantes no ensino superior público são negros.
Para Mariano, quando observado o panorama de indicadores sociais, é possível dizer que a chamada necropolítica —conjunto de políticas de uma sociedade que determina quem sobrevive e quem morre, segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe— substitui a eugenia como política de discriminação. É uma herança das ideias de Sílvio Romero, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que temia que a imigração europeia e o fim da escravidão trouxessem o fim da raça negra no país.
"A ação da polícia no Brasil é praticamente declarada. Já tivemos documentos da polícia explicando como abordar a população negra. As pessoas ficam confusas e dizem que os policiais são negros, mas esses policias não são a cadeia de comando. A questão é estrutural, são as instituições que trancam para fora os negros. Incluindo as universidades", afirma Mariano.
A primeira vez que uma universidade instituiu cotas raciais foi em 2004. Era possível se inscrever para prestar o vestibular como cotista. Caso a inscrição fosse negada por não atender aos critérios de cotas raciais, o candidato só poderia disputar a concorrência ampla.
Em 2007, dois irmãos gêmeos univitelinos (idênticos), Alex e Alan Teixeira, que se inscreveram como cotistas na UnB, tiveram uma surpresa: apenas um foi considerado negro. O imbróglio levou a universidade em Brasília a buscar maneiras de aprimorar a confirmação autodeclaração dos cotistas. A lei de cotas só foi consolidada em 2012.
"Acredito que temos que esclarecer que esse é um processo de mudança cultural, é um processo que está em andamento e tem a ver com pessoas que há muito tempo foram excluídas do ensino superior", diz Ruy Alberto Caetano Corrêa Filho, pró-reitor de graduação da UnB.
"São louváveis as atitudes das universidades que estão agindo. O processo foi melhorando, a medida que fizemos as bancas nós aprimoramos o olhar. Hoje estamos muito seguros para fazer a heteroidentificação.
Matheus Moreira, Folha de São Paulo