A prisão de uma ex-presidente de Tribunal de Justiça, sob suspeita de participação em um esquema de venda de sentenças e grilagem, desdobrou-se em uma disputa de bastidores que envolve um delator de outro caso, uma cobrança de R$ 120 mil e a exposição de trocas de mensagens particulares.
O conflito foi parar na Justiça do Distrito Federal e também na polícia, com dois boletins de ocorrência. O primeiro com pedido de medidas restritivas com base na Lei Maria da Penha, que foi negado pela Justiça, e o segundo por calúnia.
O caso começou em novembro passado com a prisão da desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, do TJ da Bahia, no âmbito da Operação Faroeste. Meses depois, em março deste ano, sua filha Luciana conheceu o advogado Renato Araújo Júnior.
Durante o governo de Michel Temer (MDB), Renato foi coordenador de Registro Sindical do Ministério do Trabalho e chegou a ficar preso por quase cinco meses em 2018, após a Operação Registro Espúrio, que apurou suspeitas de fraudes na pasta. Ele assinou acordo de delação premiada com a Polícia Federal e foi solto.
Renato e Luciana começaram a trocar mensagens sobre a situação jurídica de Maria do Socorro, e o escritório do advogado passou a trabalhar na defesa da desembargadora, com pedidos de liberdade protocolados em tribunais superiores.
Por causa do passado de Renato na Registro Espúrio, quem assinava as peças era a sua sócia, a advogada Naiara Mendes Pinheiro. Mas a tentativa de discrição caiu por terra em 22 de maio. Nesse dia, Renato e Naiara apresentaram uma ação de cobrança na Justiça do Distrito Federal afirmando que prestaram serviços no valor de R$ 120 mil a Maria do Socorro e a Luciana e nunca foram pagos.
Na ação, são expostas trocas de mensagens por WhatsApp entre Luciana e Renato, nas quais ela se compromete a fazer o pagamento por serviços do advogado e diz que espera ajuda financeira de um tio seu.
"No dia 10.abr foi formalizada a proposta de honorários e os respectivos serviços que seriam prestados pelo valor de R$ 120 mil", diz a ação dos advogados. "Todavia, devido o caso ser de repercussão nacional consignou-se que não deveria aparecer o nome do dr. Renato, por estar envolvido em outros processos abordados pela mídia."
Ainda na ação, são listadas as vezes em que Luciana enviou mensagens com promessas de pagamento, em frases como: “Não se preocupe que acertaremos tudo” (9.abr), “Eu não vou ser sacana com você. Confie” (11.abr) e “De qualquer modo posso vender meu carro” (13.abr).
À Justiça, porém, a defesa de Maria do Socorro e Luciana apresentou outra versão. Segundo o advogado das duas, Breno Valadares dos Anjos, Renato e Luciana mantiveram "relacionamento amoroso (...) durante todo o período narrado".
São apresentadas outras capturas de telas de mensagens, que não estavam na ação inicial, com indícios de que havia um flerte entre os dois. Nelas, Renato responde, quando Luciana informa que pretendia pagar o serviço, frases como "desconta no 'dote' quando casarmos" e "estou sendo fofo com minha sogra".
“Em suma, toda e qualquer ação desenvolvida pelo sr. Renato seria gratuita e sem compromisso, pelo simples fato de que foi feita por mera liberalidade e na base da confiança”, diz a defesa de Luciana e da mãe desembargadora.
“As partes acionadas nunca pediram qualquer prestação de serviço ao autor ou autores, nunca concordaram em pagar valores, nunca assinaram contrato. A verdade é que a relação sempre foi pessoal, nunca profissional. Toda e qualquer atitude no sentido de ajudar Luciana, com a liberdade de sua mãe, foi voluntária e gratuita."
A defesa da desembargadora e da filha também informa que elas não assinaram contrato e que só haveria pagamento pelos serviços prestados se resultasse na “liberdade da ré Maria do Socorro, sendo claríssima a condição e não havendo qualquer determinação de valor”.
Em meio a essa situação, Luciana registrou um boletim de ocorrência contra Renato, com pedido de medida protetiva com base na Lei Maria da Penha, no qual ela afirmava ter medo que o advogado forjasse “uma situação para prejudicá-la”.
O pedido foi rejeitado pela Justiça. Em seguida, Renato registrou outro BO contra ela, com acusação de calúnia.
Procurado, Renato diz que nunca existiu namoro e que vive um relacionamento estável há três anos. Ainda diz que não mantém nenhum contato com Luciana e que ela está bloqueada em suas redes sociais e aplicativos de conversa. Ele afirma que irá ingressar com uma ação de danos morais contra a filha da desembargadora.
“Luciana se utilizou de inverdades para subverter processo judicial de cobrança em trâmite regular”, diz Renato. Ele diz acreditar que ela “procedeu desta forma para eximir-se de pagar os honorários advocatícios” em “uma tentativa desesperada de subverter a verdade dos fatos”.
Diz ainda que desde que saiu da situação da Registro Espúrio tem “tentado tocar a vida advogando” e sofre constantes ataques da turma do ex-deputado Roberto Jefferson, que preside o PTB, partido que comandava o Ministério do Trabalho.
“Metade da minha advocacia é pra baixa renda pro bono e metade tento pegar casos melhores. Foi o primeiro caso que tive problema”, afirma.
A desembargadora Maria do Socorro ainda tenta obter a liberdade na Justiça. No último dia 4, o ministro Og Fernandes, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), negou a sua liberdade.
Após denúncia do Ministério Público Federal, a desembargadora se tornou ré sob acusação de integrar organização criminosa e promover lavagem. A defesa da desembargadora tem negado as acusações contra ela.
José Marques, Folha de São Paulo