sexta-feira, 3 de julho de 2020

Damares é pop

A pastora evangélica defensora de pautas conservadoras acumulou um grande capital de popularidade e tornou-se nome-chave do governo entre eleitores de baixa renda

De todos os integrantes do primeiro escalão do governo federal, a ministra Damares Alves é quem mais se parece com o brasileiro comum. Damares conhece mães solteiras com filhos de diferentes pais. Tem contato com mulheres cujo marido foi tragado pelo tráfico de drogas e, uma vez convertido em fiel de igreja evangélica, algum nível de normalidade familiar pôde se restabelecer. As ruas das periferias nas quais o esgoto corre a céu aberto não são para ela um ambiente estranho.
Damares tornou-se alvo de críticas e anedotas por parte do Brasil culto — um país pequeno, mas capaz de fazer muito barulho. Foi injustamente acusada de ter sequestrado uma criança indígena — sua filha adotiva, Lulu Kamayurá — e ridicularizada por dar um testemunho de fé após narrar o episódio de abuso sexual do qual foi vítima.
Habilidosa, Damares viu arrefecerem-se os comentários depreciativos e passou a tocar conforme seus critérios o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Segundo um desses critérios, convênios desnecessários firmados no passado, para os quais deveriam ser destinados determinado volume de recursos, simplesmente têm a autorização de repasse de verbas engavetada. Uma vez que a extinção de muitos desses contratos implica longos trâmites, Damares serve-se da burocracia em favor do uso racional do dinheiro do pagador de impostos. Não assina os documentos, e pronto.
Nascida em 1964, em Paranaguá (PR), Damares Cristina Alves é pastora da Igreja Batista, advogada e trabalhou como assessora jurídica no Congresso Nacional por 20 anos. Sempre nos bastidores, atuou ao lado de parlamentares como o ex-senador Magno Malta (PL-ES). Uma vez no governo, revelou-se capaz de assumir protagonismo e tornou-se o nome mais popular do ministério de Bolsonaro entre eleitores de baixa renda, depois da saída de Sergio Moro.
A popularidade é evidenciada nas redes sociais. De conhecida estritamente no mundo evangélico até dezembro de 2018, Damares hoje é recordista na Esplanada dos Ministérios, com 2,9 milhões de seguidores — praticamente o dobro do segundo colocado, Onyx Lorenzoni, da Cidadania, e quase três vezes mais que o general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional. É, portanto, compreensível que a mensagem da ministra chegue aos rincões do Brasil.
Quando ela lançou a campanha “Tudo tem seu tempo”, para combater a gravidez na adolescência, o termo “abstinência sexual” atingiu o pico de interesse nas buscas do Google, em fevereiro deste ano — na escala de 0 a 100, chegou a exatamente 100. Os cinco Estados em que houve mais buscas foram Amazonas, Tocantins, Rio Grande do Norte, Paraíba e Sergipe, justo onde o problema é tido como crônico. Damares visita com regularidade o Nordeste e, de modo indireto, contribui para as movimentações políticas que têm abalado a hegemonia da esquerda na região.
Damares Alves conversou com a Revista Oeste na semana passada. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Quando a senhora assumiu o cargo, houve críticas quanto à inclusão da palavra família” no nome do ministério. A alteração era de fato importante?
Essa pasta era um grande sonho para quem defende o direito das famílias, e acredito que essa será a definitiva. As políticas públicas precisam ser construídas a partir da família. Meu sonho é que essa estrutura ministerial seja mantida, independentemente de eventuais mudanças deste ou de outros governos. Em um ano e meio, avançamos na ênfase na proteção da infância e da mulher. Todo o governo federal agora adota como lema a defesa da mulher, da criança, da pessoa portadora de deficiência e do idoso. A proteção da mulher, por exemplo, virou um tema transversal, do Ministério da Agricultura ao Ministério de Minas e Energia.
Que providências a senhora tomou em relação aos gastos do ministério?
Assim que assumi, determinei uma rigorosa auditoria em todos os contratos e convênios assinados. Alguns ainda são objeto de análise por parte de nosso controle interno e, portanto, não posso neste momento dar mais detalhes. Há instituições sérias, e isso conseguimos verificar. Mas houve muito descaso com o dinheiro público. A corrupção, sem dúvida, foi a maior violação de direitos humanos que ocorreu no país nas últimas décadas, pois tirou dinheiro da segurança, da saúde, da educação, do saneamento básico… Veja, por exemplo, o caso dos aviões da Funai, que descobrimos no ano passado. Milhões sendo gastos no aluguel de táxis aéreos para levar indígenas doentes para tratamento médico, enquanto doze aeronaves estavam virando sucata em hangares e a céu aberto em aeroportos.
No início do ano, o ministério lançou uma campanha que incentiva a abstinência sexual como forma de prevenção à gravidez na adolescência. A ação foi muito criticada pela mídia por ter sido adotada em países africanossem resultados cientificamente comprovados. No Brasil, já é possível aferir alguma mudança importante?
É muito difícil medir o resultado de uma campanha iniciada no período de carnaval. É pouco tempo para sabermos se houve diminuição no número de adolescentes grávidas no país. Agora, esse tema não será reduzido a uma ação específica. A campanha Tudo Tem Seu Tempo vai ser um programa, uma política pública permanente. Queremos prevenir a gravidez na infância e na adolescência. Hoje, temos muitos casos de meninas de 11 anos que estão engravidando [em 2018, 15% dos nascidos vivos foram de mãe com até 19 anos de idade] e precisamos atacar isso. Então, quando falo que “tudo tem seu tempo”, não há ingrediente religioso nisso. É questão de saúde pública. E é preciso coragem para encarar esse tema.
Que ações o ministério tem conduzido especificamente em relação à pandemia de coronavírus?
O ministério tornou-se um dos mais demandados, ao lado do Ministério da Saúde. Meu público é o mais vulnerável, e essa crise o deixou ainda mais dependente das políticas públicas. Há outro aspecto além da vulnerabilidade social. Nós precisamos combater a pandemia, mas sem a violação de direitos fundamentais. No comitê de crise [da pandemia, montado pelo governo federal], alertei para o fato de que liberdade de expressão, direito de ir e vir, direito à liberdade religiosa devem ser garantidos. Esses direitos não têm sido respeitados por alguns gestores. Também é preocupante durante esse período a possibilidade de explosão da violência doméstica, contra mulheres e crianças. Por essa razão, intensificamos as campanhas de conscientização, as equipes de disque-denúncia e o treinamento para os conselheiros tutelares.
“Os profetas do caos previram que milhares de índios morreriam. Até o momento, houve 117 mortes”

E as comunidades indígenas, cujo bem-estar também está sob responsabilidade do ministério, como têm sido afetadas?
Focamos nossos esforços na prevenção. A primeira providência foi impedir a entrada de pessoas estranhas nas comunidades indígenas. Barramos instituições, ONGs, associações e turistas. Entretanto, temos um problema. Não podemos proibir o índio de sair das comunidades. Seria violar um direito fundamental. A sociedade precisa entender que há poucos povos totalmente isolados. Dos mais de 890 mil índios existentes no Brasil, segundo o IBGE, metade deles está em áreas urbanas. Além disso, mesmo o índio que mora em comunidades mais distantes de cidades precisa circular pelo espaço urbano, comprar mantimentos, sacar o Bolsa Família… E, nesse contato, inevitavelmente houve contágio.
Esse contágio resultou em muitas mortes?
Até o momento, houve a morte de 117 índios, e todas as medidas de contenção da pandemia foram tomadas. Os profetas do caos previram que milhares de índios morreriam. Isso não aconteceu. Muitos pregam fora do Brasil que está havendo um grande genocídio no país e que estamos dizimando os povos indígenas. É uma grande mentira. Agora, é impossível impedir que o índio se contamine. E o vírus não distingue índio de branco. Fizemos o possível para manter os indígenas nas aldeias. Entregamos cestas básicas e pretendemos manter a assistência até dezembro, para que eles saiam o mínimo possível de sua comunidade.
Como negociar com as diferentes bancadas do Congresso para avançar nas pautas de seu ministério?
Sempre transitei entre as bancadas conservadoras e progressistas, por isso esse diálogo é algo tranquilo. As propostas de meu ministério são as pautas do coração de todo mundo. O cidadão da esquerda quer que seu filho seja protegido. O conservador também quer a proteção de seu familiar. E todos sabem que vou trabalhar pela proteção da criança, do idoso e da vida. Hoje, inclusive, a maioria das emendas parlamentares ao orçamento [dinheiro normalmente utilizado para obras e ações dos ministérios] veio de deputados do PT. Ou seja, é possível conversar com os dois lados apesar das divergências no campo ideológico. Em janeiro do ano passado, eu era vista como a ministra “mentirosa”, “sequestradora”, “aloprada”, “louca”, mas consegui reverter isso. Em dezembro de 2019, uma pesquisa demonstrou que eu ocupava a segunda posição entre os ministros mais bem avaliados e a primeira entre os pobres. Só perdia para o ex-ministro Sergio Moro. Isso mostra que consegui dialogar com todos. [Com a saída de Moro, Damares tornou-se o nome do primeiro escalão mais popular na baixa renda.]
“Quando a pandemia passar, creio que o homeschooling será aprovado no Congresso”

Seu ministério tem o menor orçamento da Esplanada. Isso se tornou um problema?
Minhas execuções são pequenas comparadas às dos outros ministérios. Ao mesmo tempo, somos uma pasta de articulação, trabalhamos em conjunto com áreas que entram com o dinheiro, e nós, com o trabalho. Exemplo: uma ação que beneficia crianças é articulada junto ao Ministério da Cidadania. Eles entram com o dinheiro; nós, com a política e a indicação de beneficiados.
Como está a articulação para aprovar o projeto de educação domiciliar, que enfrenta resistência no Congresso?
homeschooling é prioridade para nós e um sonho da família brasileira. Estou em conversas com algumas bancadas para conseguir avançar e tenho percebido que já existe consenso sobre a matéria. Apresentamos o texto em 2019 [PL 2401] e esperávamos que o Congresso formasse uma comissão especial. Na época, compreensivelmente o Congresso tinha como prioridade a reforma da Previdência. Passada a reforma, a ideia era priorizar o homeschooling neste ano, mas tivemos a pandemia. Quando tudo isso passar, creio que a matéria será aprovada.
Por que o homeschooling gera tantas controvérsias?
Esse assunto é debatido há vinte anos dentro no Congresso, e houve uma resistência inicial que vem se reduzindo. Por isso creio que agora essa temática está madura o suficiente para ser aprovada.
“A comunidade evangélica entende melhor o que significa um Estado liberal”

A primeira-dama Michelle Bolsonaro defende boa parte dos projetos de seu ministério. Como é a relação entre vocês?
Meu ministério não tem recursos nem muitos braços. Não temos nenhum servidor fora de Brasília. Então, muitas das ações são realizadas graças a Michelle, por meio do voluntariado, do Pátria Voluntária. Minha parceria com esse programa, comandado pela primeira-dama, tem sido extraordinária. Por exemplo, faremos um trabalho imenso nos próximos meses com albinos, com distribuição de filtro solar e outras ações. Mas isso somente ocorrerá a partir da parceria com o Pátria Voluntária e com o Ministério da Saúde.
É conhecida a ligação entre protestantismo e liberalismo. Protestantes tendem a ser mais liberais na economia que os católicos. É possível que, com o aumento da comunidade evangélica no Brasil, o país se torne mais liberal e passe a reivindicar um Estado menor e menos interventor?
O evangélico em si não discute muito essa questão. Mas, quando se observa o comportamento evangélico, esse pensamento liberal é muito natural entre nós. Às vezes, o cidadão nem sabe na teoria o que é liberalismo. Mas a prática nos leva a praticar certos princípios: um Estado mais enxuto e pessoas cuidando umas das outras, sem imposições externas. Acreditamos, inclusive, que parte dos problemas da sociedade pode ser resolvida pela própria sociedade. Em um Estado mais eficiente, fatalmente todo mundo cuidará do próximo lá na ponta. Então, creio que possivelmente a comunidade evangélica entende melhor o que significa um Estado liberal. E por isso o presidente é extremamente feliz quando fala “Mais Brasil, menos Brasília”. Ele entende que os recursos precisam ser investidos na ponta — onde de fato há a necessidade das pessoas.
“Aproveitei minha história para pôr em pauta na sociedade o tema do suicídio”

A senhora foi vítima de vários ataques na internet quando chegou ao governo. Ficou magoada com as críticas?
Eu me divirto muito com os memes [montagens e imagens bem-humoradas na internet], menos quando eles atacam a Deus. Acho cruel quando os memes atacam minha fé. Já os memes divertidos, até coleciono. Admito que, quando deixar de ser ministra, gostaria de lançar um livro com meus memes. Adoro um em que estou correndo atrás dos smurfs [personagens de desenho animado azuis humanoides] para pintá-los, um de azul e outro de rosa [em referência à frase meninos usam azul e meninas usam rosa]. Agora, quando um tema é muito pesado, aproveito a situação para fazer algo positivo. Naquela polêmica após o vídeo do meu culto, quando citei o encontro com Jesus [a ministra contou que viu Jesus em uma goiabeira, aos 10 anos], riram muito de mim. Riram demais na internet. Fiquei triste, mas pensei: “Só eu que tentei suicídio com 10 anos de idade?” Não! Então, aproveitei o momento para falar sobre suicídio. A partir daí criamos o Serviço de Prevenção e Combate ao Suicídio no Brasil. Aproveitei minha história para pôr o tema em pauta na sociedade. Um questionamento simples: por que eu queria morrer? Porque fui abusada! Fui a única a ser abusada no Brasil? Não! Assim, aproveitei esse momento em que algumas pessoas me ridicularizaram para estabelecer uma pauta de combate à pedofilia e à exploração de crianças e adolescentes. Ou seja, como dizem: do limão, fiz uma limonada.
Qual legado a senhora quer deixar no ministério?
Um verdadeiro pacto pela infância, pela universalização dos direitos fundamentais e a diminuição drástica da violência contra a mulher.
Após a saída do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, a senhora é vista como o grande nome conservador do governo. E também é uma pessoa extremamente popular. Pensa em candidatar-se a algum cargo no futuro?
Se meu presidente for candidato à reeleição, trabalharei muito para que ele se reeleja ou faça seu sucessor. Acho que não vamos conseguir fazer tudo o que precisamos em quatro anos. E gostaria que ao menos nossas propostas avançassem. Hoje, não quero me candidatar a nada. A única coisa à qual sou candidata é uma rede na varanda de uma casa na beira da praia. Esse é meu grande sonho. [risos]

, Revista Oeste