Entre casos de gente que ganha bem, com frota de carros na garagem e quase 10 mil pessoas que já morreram, o governo gastou no ano passado R$ 5,5 bilhões em benefícios fora das regras do BPC (Benefício de Prestação Continuada), programa de amparo a deficientes e idosos de baixíssima renda.
Para fins administrativos, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social) considera efetivamente irregular 31% do valor que está fora das diretrizes do programa social, ou R$ 1,7 bilhão por ano.
Apesar dessa constatação, o montante continua a ser pago a 151 mil pessoas por causa da burocracia envolvida no cancelamento dos repasses.
A informação consta de levantamento da CGU (Controladoria-Geral da União), que em parceria com o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), Ministério do Planejamento e Casa Civil realizou um pente-fino nesses benefícios a partir de cruzamento de dados e entrevistas.
Criado em 1993, o BPC custa R$ 50 bilhões por ano e não era revisado havia dez anos. Isso aumentou as fraudes e reduziu o volume de recursos que poderia ser direcionado a outros programas sociais. O programa paga R$ 954 mensais.
“Houve iniciativas de fiscalização somente nos primeiros anos do programa”, afirma Antônio Carlos Bezerra Leonel, secretário federal de controle interno da CGU.
“Tanto que identificamos o pagamento mensal de R$ 9 milhões a pessoas que aparecem como falecidas nas bases de dados”, diz Leonel.
Esses repasses a pessoas mortas já foram cancelados, de acordo com o MDS.
Para embasar o cruzamento de dados, a CGU também realizou algumas fiscalizações in loco, uma delas em Brasília.
De 23 casos de beneficiários escolhidos aleatoriamente para ser entrevistados, sete estavam fora das regras para acesso ao programa.
Um deles possui 14 veículos em seu nome, nove deles caminhões, e mesmo assim continua a receber R$ 954 mensais do programa.
Outro caso identificado é o de um idoso que alugou a casa onde morava e se mudou para outro país, segundo informações da inquilina do imóvel.
Quando a fiscalização consultou a folha de pagamento do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), foi verificado que o valor do benefício é sacado por meio de cartão magnético.
A CGU ainda localizou uma idosa que recebe pensão de R$ 20,9 mil por mês, segundo informação da base de dados dos servidores públicos.
De acordo com o MDS, todos esses casos estão em apuração dentro do INSS, e alguns beneficiários já foram notificados.
O governo reconhece como irregular um terço do valor total que é pago fora das regras.
Isso porque um acórdão do STF (Supremo Tribunal Federal) afirma que um quarto de salário per capita, que é o limite previsto no programa, não é critério para estabelecer o direito ao benefício.
“Como o cadastro único de programas sociais do governo federal é aberto a famílias de até meio salário, e participar dele é condição para pedir o BPC, esse é o padrão que vem sendo adotado pelo ministério”, explica Alberto Beltrame, ministro do Desenvolvimento Social.
A pasta já deu início ao processo de cancelamento dos mais de 150 mil casos de pessoas que recebem acima de meio salário mínimo per capita. Desse total, 29,7 mil beneficiários têm renda per capita acima de um salário.
Essa não é uma tarefa fácil, uma vez que o passo a passo para cancelar um BPC indevido leva no mínimo oito meses.
É necessário mandar uma carta ao beneficiário, que tem dez dias para responder e se apresentar no INSS com documentos comprovando seu direito.
Se a pessoa não responder, é previsto que haja ainda três tentativas de localização. É obrigatória a publicação de um edital no Diário Oficial da União avisando sobre o eminente bloqueio do repasse.
“O BPC tem um nível de estabilidade muito próximo ao do benefício da aposentadoria”, diz Leonel.
É por isso que o governo prepara um decreto para mudar as regras de cancelamento, o que deve reduzir o tempo do processo para três meses.
Se o benefício aparecer como irregular no cruzamento de dados, o texto prevê que sua retirada só pode ser feita na boca do caixa.
“O funcionário do banco permitirá o saque, mas avisará sobre a situação. Isso ocorrerá três vezes consecutivas, e se o beneficiário não comprovar seu direito, terá o repasse cancelado”, afirma o ministro.
O decreto está em finalização e deve sair, de acordo com ele, nos próximos meses.
Em 1996, três anos após sua criação, o BPC tinha 346 mil pessoas cadastradas recebendo o , número que saltou para 4,5 milhões listados no ano passado.
É exatamente por esse forte crescimento que a revisão e modernização do programa é necessária, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social e ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
“É importante ter checagem dos dados, e o ideal seria que o programa fosse totalmente integrado ao cadastro único, que é um processo que já está acontecendo”, afirma.
“O programa tem de estar ajustado, pois será cada vez mais necessário”, diz Neri.
Para ele, o BPC é a ação social mais importante depois do Bolsa Família.
“É um programa que tem um impacto importante sobre a pobreza e, portanto, sobre a macroeconomia”, afirma o pesquisador.
Um levantamento feito por Neri mostra que cada R$ 1 gasto com o BPC tem um impacto de R$ 1,19 no PIB (Produto Interno Bruto).
Leonel, da CGU, lembra que é natural que um programa que paga benefícios a deficientes e idosos apresente forte crescimento.
“É comum as pessoas só saírem do programa quando morrem, e não porque mudam de faixa de renda”, diz o secretário da CGU. “Daí também que vem a necessidade de os recursos serem bem gastos.
Maeli Prado, Folha de São Paulo