NOVA YORK
Todo mundo precisa amadurecer um dia. Para o Google, essa transição do idealismo da juventude para o realismo ranzinza da meia-idade está em curso.
A mais recente prova do pragmatismo do Google, controlado pela holding Alphabet, é o projeto Dragonfly, uma versão do serviço de buscas que pode se enquadrar às normas de censura da China para que a empresa volte a oferecer esse produto no país, depois de suspendê-lo em 2010.
Esse não é o primeiro exemplo de transformação do lema da empresa, "não seja mau", para algo mais parecido com "caia na real".
Nos últimos 12 meses, o Google precisou abandonar sua cooperação com o Departamento de Defesa americano em um projeto envolvendo sistemas de inteligência artificial em áreas militares --e a decisão de sair desse projeto também atraiu críticas.
O Google ainda se viu forçado a defender sua prática de rastrear a localização de usuários que desligaram seus "serviços de localização", bem como a aparente falta de fiscalização sobre desenvolvedores que recebem acesso às contas de usuários do Gmail.
Além de irritar o público e legisladores, essas práticas de negócios inspiraram reações adversas de parte dos empregados da companhia e colocaram em risco a capacidade de o Google recrutar os grandes talentos da tecnologia.
Os críticos internos e externos afirmam que abandonar a missão idealista que a empresa um dia se atribuiu poderia conduzir a usos ainda menos éticos de sua poderosa tecnologia.
Se a empresa não administrar bem as prioridades, a disposição de confiar nela, da parte de seus empregados e clientes, poderia erodir, o que colocaria em risco seu crescimento.
"Quando você começa com uma empresa ética, apegada à sua missão, e remove a ética, isso cria um problema", disse Tiffany Li, especialista em leis de tecnologia e pesquisadora da escola de direito da Universidade Yale.
"Se o Google tiver uma versão de seu serviço de buscas aberta à censura, para a China, outros países pedirão a mesma coisa", afirmou.
Segundo Li, um Google cúmplice com leis que não se alinham às de seu país de origem normaliza o cerceamento da liberdade de expressão em todo lugar em que operar.
Para compreender os motivos de o Google poder optar por abandonar os valores sobre os quais foi fundado, é importante observar o que seus líderes esperam obter em troca.
A empresa precisa enfrentar a estagnação no crescimento de vendas dos smartphones, mais concorrência na publicidade digital (com a Amazon, por exemplo), a regulamentação europeia, que inclui uma multa recorde de US$ 5 bilhões (R$ 20,3 bilhões), novos apelos por regulamentação nos Estados Unidos e a aprovação de uma lei abrangente de proteção da privacidade na Califórnia.
A companhia também enfrenta regulamentação e novas leis protecionistas na Índia, e a ascensão de companhias de tecnologia capazes de concorrer na China.
Para as empresas ocidentais, é difícil conquistar espaço na China. Porém, existe mercado naquele país para um serviço de buscas como o do Google, mesmo que censurado, diz Rui Ma, investidora em startups.
O Baidu, gigante que domina o mercado de buscas chinês, é tão simpático aos anunciantes que chega a promover desinformação e spam, diz Ma.
Em 2016, as autoridades regulatórias começaram a agir contra o Baidu por sua inclusão de informações enganosas em seus resultados de busca.
Segundo Ma, spam e resultados de busca ditados por publicidade "causam a maior parte das queixas do povo chinês sobre o Baidu".
A censura não é a maior queixa, de acordo com relato do Baidu ao The Wall Street Journal no passado.
A missão declarada do Google é a de "organizar a informação do planeta e torná-la universalmente acessível e útil".
Para quem exatamente o Google "organiza a informação do planeta" se permitir que o governo chinês dite o que é real? Qual seria o resultado da possível colaboração entre o Google e a chinesa Tencent nos serviços de computação em nuvem?
As duas empresas conversam há mais de um ano sobre um cenário no qual o Google obedeceria às leis chinesas para hospedar dados em servidores do país. Isso poderia significar não só que a empresa estaria exposta aos censores chineses, mas que sua tecnologia seria acessível diretamente para o governo da China.
Não é algo que se restrinja ao Google e à China.
Na verdade, muitas outras empresas --entre as quais a Apple —encontraram maneiras de trabalhar com o país sem criar reações adversas entre seus clientes e empregados.
Toda empresa é motivada pelo lucro, mesmo que afirmem ter uma missão, mas, ao se impor a missão "não seja mau", o Google criou um padrão mais elevado para suas operações. Abandonar esse princípio acarreta o risco de prejudicar sua marca.
Existe uma ironia no esforço do Google para reforçar seus negócios por meio de uma conversão à realpolitik. Muitas das pessoas mais brilhantes da tecnologia optam pela empresa não só pelas refeições de alta culinária e pelos salários generosos, mas pela missão idealista.
Caso a empresa deixe de lado essa missão, essas pessoas podem se sentir igualmente motivadas a sair.
Recentemente, Sundar Pichai, presidente-executivo do Google, disse ao pessoal da companhia que ela "não estava próxima de lançar um produto de busca" na China.
Um estudo da Universidade Stanford sobre as preferências políticas dos líderes do Vale do Silício os identificou como profundamente progressistas, mas divergentes do Partido Democrata no que tange a direitos trabalhistas e regulamentação governamental.
Os profissionais da costa oeste americana começaram a se organizar para se opor aos seus empregadores em relação a questões como o tratamento de trabalhadores temporários.
Se o Google continuar no caminho que está seguindo, parece destinado a alienar seu pessoal existente quanto possíveis novos colaboradores.
Em um setor no qual as maiores empresas crescem ao investir nelas mesmas e em sua tecnologia, a tentativa do Google de amadurecer significa entrar em um jogo perigoso, não só para a democracia mundial, mas para os lucros da empresa.
THE WALL STREET JOURNAL