domingo, 14 de agosto de 2016

Dorrit Harazim: "Brasil e Fiji"

O Globo

Em Jogos Olímpicos, patriotadas são virtudes, não defeitos


A cada quatro anos reaparecem critérios alternativos para se ranquear o desempenho olímpico das nações. Pela listagem oficial, o que mais conta é a soma de medalhas de ouro conquistadas. Nas listas alternativas, esse número costuma ser relativizado a algum índice do país, como população, Produto Interno Bruto ou Desenvolvimento Humano.

O ranking paralelo que faz a conta medalha/número de habitantes é o que tem a maior legião de seguidores, pois resulta em inevitáveis e divertidas distorções, como mostrar as Ilhas Fiji à frente dos Estados Unidos no panteão das potências esportivas. Mas também segundo a regra convencional, Fiji e Brasil encerraram a primeira semana de Jogos do mesmo número de medalhas de ouro — uma. Até a noite de sexta feira, quando este texto foi escrito (antes, portanto, das finais de iatismo, vôlei de praia e de quadra), as bandeiras dos dois países tinham sido hasteadas apenas uma vez. Para Fiji, um épico.

A nação-arquipélago da Oceania havia feito sua estreia olímpica em 1956, com cinco atletas — dois velejadores, dois boxeadores e um arremessador de disco. Voltaram de mãos vazias. Nas 14 edições seguintes foi igual.

Agora desembarcaram com 57 competidores em dez modalidades e uma infinita disposição para amargar derrotas. No futebol, perderam primeiro de 8 x 0 para a Coreia do Sul, depois de 5 x 1 para o México, e por fim de 10 x 0 para a Alemanha. “Foi uma experiência instrutiva, perdemos para os melhores do mundo”, concluiu com sabedoria o técnico da equipe.

Tudo ia mal como esperado até entrar em campo a formidável esquadra de rúgbi de 7, esporte estreante nos Jogos do Rio e coqueluche naquele arquipélago da Oceania, cuja população é pouco maior do que a de Duque de Caxias. Fiji arrasou.

Na disputa final, a ex-colônia britânica surrou a esquadra inglesa por 43 a 7, e os novos heróis passaram a semideuses. Com feriado nacional decretado para o retorno dos medalhados no dia 22, o técnico estrangeiro recebeu convite para tornar-se cidadão do conjunto de 330 ilhas. Ele é inglês, mas não precisaria abdicar do passaporte de Sua Majestade; poderia ter dupla nacionalidade.

Simone Biles também tem dupla nacionalidade. Figura estelar da delegação de 563 atletas dos Estados Unidos, a ginasta americana foi criada pelo avô materno, cuja segunda mulher, Nellie, vem de tradicional família de Belize e inseriu Biles desde pequena na cultura local. O pequeno país que participa destes Jogos com três atletas ficou extasiado em se ver associado a Biles. A antiga Honduras Britânica sonha em reviver o sopro de glória que lhe respingou dos Jogos de Sydney, em 2000, pelas mãos do fenômeno esportivo da época, Marion Jones.

A cintilante velocista americana conquistara três medalhas de ouro olímpicas e estendera a bandeira de Belize no pódio, em homenagem à terra de nascimento da mãe. Desde então, a nação caribenha dedica gratidão profunda à atleta que tirou o país do anonimato esportivo mundial por tabela — mesmo depois de a corredora ter caído em desgraça total e definitiva por doping e fraude fiscal.

Em Jogos Olímpicos, patriotadas são virtudes, não defeitos. O peso e o valor de uma bandeira nacional sendo hasteada ao término de uma competição são inversamente proporcionais à sua insignificância quando hasteada em outros foros internacionais. Ela consegue adquirir vida e dimensão individual.

O saudoso recordista mundial do salto triplo João Carlos de Oliveira, o João do Pulo, gostava de lembrar do “brasilzinho que eu punha nas costas para subir no pódio”, mesmo sem chegar ao topo — foi medalha de bronze em duas edições, mas sempre se agasalhou numa bandeira. Joaquim Cruz, detentor do ouro nos 800 metros em Los Angeles, só foi degustar mais tarde o fato de também ter batido o recorde olímpico. Lembra, em primeiro lugar, da sensação de sentir-se dono da bandeira verde e amarela.

Não fora o Brasil que o empurrara para o pódio. Foram suas passadas que fizeram com que a bandeira do Brasil fosse hasteada perante o público olímpico. Cruz sentiu-se humilde e sereno em seu extraordinário poder de fazer o mundo ouvir o hino nacional.

Esta semana, ao som do mesmo hino, expressão semelhante transpareceu no rosto da judoca de ouro Rafaela Silva. A garota durona e combativa da Cidade de Deus deixou-se derreter com suavidade. Raras vezes o Brasil viu-se retratado com tamanha dignidade. Externa e interna.

Mais de um século atrás, nos Jogos de 1906 em Atenas, o vencedor do salto triplo e segundo colocado no salto em distância não se conteve. Ao ver que a bandeira da Grã-Bretanha estava sendo hasteada no momento de sua premiação, Peter O’Connor saiu do pódio, subiu no poste reservado ao estandarte olímpico e desfraldou a bandeira da Irlanda, deixando claro que ele não era inglês.

O’Connor foi apenas o primeiro de muitos atletas que feriram o código atleta X cidadão do cerimonial olímpico. A maioria deles acabou banida dos Jogos pelo resto da vida. O meio-fundista húngaro Balazs Koranyi nunca conseguiu subir qualquer degrau de pódio olímpico. Chegou apenas a semifinalista nos Jogos de Atlanta e Sydney. Em compensação, viu e vivenciou o suficiente para escrever um texto às vésperas dos Jogos de Pequim que ecoa até hoje em atletas de muitos países.

“Para quem você compete? Para o seu país?”, perguntava ele. “Não é o meu caso. Eu o faço em primeiro lugar para mim. Depois, para minha família, amigos e treinadores. Meu país se interessou por mim quando comecei a aparecer na cena internacional... Não tenho queixa pelo tratamento que recebi: o país me apoiou enquanto usei a camisa nacional e se orgulhou de mim quando fui bem-sucedido... Mas são os governos que devem respeito a quem usa o uniforme nacional”. E não vice-versa.