Lá atrás, o Congresso Nacional - imaginem! - tentou moralizar a indecência. O STF, para variar, operou em favor da pilantragem política. Exigência de 492 mil assinaturas dificulta processo de criação, e maior parte das 85 siglas deve ficar apenas no papel
Sede do TSE em Brasília: longa fila de partidos buscando registro | Roberto Jayme/TSE
O Brasil vai encerrar 2021 com 85 partidos à espera de registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — além dos 33 já em funcionamento. Esse é o número de siglas que já apresentaram a documentação básica ao órgão, mas ainda estão na fase de coleta de assinaturas para poder disputar eleições. É pouco provável que algum deles consiga reunir o número de assinaturas necessário até abril, prazo final para que as siglas possam participar das eleições de 2022.
Aliás, a maior parte dos partidos em formação muito provavelmente ficará apenas no papel. As exigências legais (inclusive a coleta de aproximadamente 492 mil assinaturas) tornam o processo de criação de partidos caro e demorado. Nem mesmo a Aliança pelo Brasil(que, segundo o sistema do TSE, tem como presidente o próprio Jair Bolsonaro) deve obter o registro a tempo de aparecer nas urnas em 2022 conforme o planejado.
Entre os 85 partidos embrionários que pleiteiam reconhecimento no TSE, estão o PAC (Partido Anticorrupção), o PAT (Partido Alternativo dos Trabalhadores), o Partido da Frente Favela Brasil e o PE (Partido do Esporte). O último partido criado no país foi o UP (União Popular), que obteve o registro do TSE em 2019. A sigla é resultado da união de grupos radicais de esquerda e teve votação inexpressiva no pleito municipal de 2020.
Em tempo: lembrar que lá atrás o Congresso Nacional - imaginem! - tentou moralizar a vida dos partidos políticos, mas o STF entrou em cena. O resultado é a permissividade vigente...
O ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe durante coletiva de imprensa em 15 de dezembro de 2021 | Foto: Edu Andrade/Ascom/ME
A política econômica do governo está correta e é uma pena que esteja enfrentando tantos adversários em um jogo bastante viciado
Fim de ano é sempre tempo de usar a balança, renovar a esperança e fortalecer a confiança. Hora também de arrumar armários, limpar gavetas e vestir cores que — acreditam muitos — ajudam a concretizar antigos desejos e aspirações. Descontado o teor de superstição, nada há de errado com esses hábitos, nem com o fato de se os replicar para o campo das relações econômicas. Afinal, também na economia, a esperança, a exemplo da fé, pode mover montanhas, desde que fundamentada em ações concretas e não em crenças incorretas.
O que se viu no plano político no ano que se despede foi um jogo viciado e cada vez mais desigual, de três contra um: de um lado, (a) não poucos congressistas, com destaque para os presidentes das duas Casas e para uma oposição especializada em sabotagens — como a de ir chorar quase diariamente no tapetão do STF —, bloquearem pautas e tumultuarem votações; (b) os semideuses de toga prejudicando a segurança jurídica com seus narizes abelhudos; e (c) a velha imprensa saudosa de mesadas oficiais. E, do outro, acuado por um bombardeio incessante, o governo federal, ou, melhor dizendo, a sua ala não política, uma vez que setores da chamada ala política, devido ao manicômio partidário da nossa república, algumas vezes parecem jogar no time adversário.
Porém, para desespero da turma do contra, apesar dos inúmeros ventos contrários, é possível identificar, com algum esforço, uma concretude de ações imprescindíveis para o cultivo da esperança; primeiro, porque a política econômica do governo, a cargo da sua equipe liberal — a única merecedora desse adjetivo no período republicano e, talvez, em toda a nossa breve história de cinco séculos —, optou desde o início pelo caminho certo, o do estímulo à liberdade econômica, sem dúvida o maior dos elementos geradores de riqueza; e, segundo, porque a economia brasileira — sabe-se lá o porquê — sempre surpreendeu positivamente.
É verdade. Quem a acompanha por dever de ofício conhece sua capacidade de transformar adversidades em força, ou, como diziam nossos avós, fazer das tripas coração. Não poucas vezes, quando se pensava que estava indo para a cucuia, ela reagiu com valentia. No plano político, depois do golpe que derrubou o Império, foram muitos acontecimentos prejudiciais: seis Constituições, nove mudanças no sistema monetário, seis fechamentos do Congresso, seis presidentes despejados a pontapés por golpes de Estado e 13 que não chegaram a cumprir a totalidade de seus mandatos. Que economia não sentiria tudo isso?
Mesmo com todos os obstáculos, a nossa economia sempre mostrou incrível capacidade de levantar-se, sacudir a poeira e seguir em frente
E, no campo econômico, um préstito interminável de porra-louquices econômicas, como as políticas da queima dos estoques de café nos anos 1930, a do mesmo Getulio “democratizado” dos anos 1950, a de João Goulart no início dos anos 1960, a da febre de abertura de estatais e de endividamento externo dos 1970, a dos três congelamentos de preços de Sarney e dois de Collor, entre 1986 e 1991, e a da Era das Trevas (2003-2016 d.C.), com destaque para a inacreditável reação à “marolinha” de 2007; e a abominável Nova Matriz, cometida sem dó nem piedade pelos deploráveis ministros daquela execranda senhora presidente. Somem-se a isso as crônicas obstruções ao empreendedorismo, o desrespeito flagrante à liberdade econômica, a exaltação permanente à burocracia e a herança patrimonialista ibérica, que povoam o DNA nacional desde Cabral. Ninguém aguenta, irmãos.
#FiqueEmCasa
Mas a economia aguentou. Mesmo com todos os obstáculos, a nossa economia sempre mostrou incrível capacidade de levantar-se, sacudir a poeira e seguir em frente. E desta vez não está sendo diferente, depois do golpe fortíssimo desferido pela pandemia e seus efeitos, entre eles, a lastimável política do “fique em casa, que a economia fica para depois”, imposto em nome de uma pretensa ciência, e a desorganização mundial das cadeias de produção.
Quando, no início do ano passado, o golpe vindo da China a atingiu, muitos imaginaram que a economia brasileira não ia resistir. As estimativas de bancos e instituições, como — e esse é apenas um dos exemplos — o FMI, eram de que sua morte cerebral seria inevitável. Com quedas que ultrapassavam os 10% do PIB e aumento de desemprego que faria a famosa Grande Depressão americana do século passado igualar-se em escala de destruição ao fechamento de meia dúzia de lojas e à demissão de três ou quatro empregados preguiçosos.
Os resultados, para quem desconhece a resiliência da nossa economia e recusa-se a reconhecer a importância e a força produtiva dos mercados livres, surpreenderam. Transportada às pressas para o corredor da UTI, a economia pulou da maca e partiu para a luta: a queda de cerca de 4% do PIB em 2020 sem dúvida representou um tombo substancial, mas, diante das expectativas de que despencaria em 10%, foi um resultado excelente. A recuperação em 2020 foi rápida e a expectativa para 2021 era bastante positiva, tanto que no fim de 2020 as aves de mau agouro já estavam de volta aos seus poleiros. Tanto as atividades industriais como as vendas do comércio superavam o nível anterior à pandemia, a agricultura continuava forte, a confiança dos agentes econômicos estava recuperada e o emprego voltava a aumentar.
Então, sobreveio a segunda onda da peste, no início de 2021, que colocou em dúvida a continuidade do processo de recuperação, mas a atividade econômica deu sinais claros de que era de fato em V, embora perdesse força nos meses seguintes, em decorrência principalmente de dois elementos perturbadores: a desorganização das estruturas produtivas em nível mundial e a explosão da inflação de preços, também em âmbito global. Mesmo assim, a taxa de crescimento do PIB deverá situar-se em torno de 5% em 2021, um resultado a se comemorar, mas que não significa que os problemas conjunturais causados pela pandemia e os gargalos estruturais da economia brasileira tenham sido superados. O ritmo de crescimento da atividade econômica diminuiu e as perspectivas para 2022 ainda são de que essa tendência poderá manter-se no ano que se inicia, mas sem motivos para pavor.
Na fronteira fiscal, o déficit primário, que no fim de 2019, graças à boa política de austeridade, caíra para cerca de 1% do PIB, subiu para algo em torno de 9,5% do PIB, devido às despesas extraordinárias para enfrentar a pandemia e às quedas na atividade econômica e, portanto, nas receitas. Mas, em 2021, o déficit voltou a cair e deverá fechar 2022 ao resultado de 2019, o que é uma excelente notícia. O mesmo sucedeu com a relação dívida interna/PIB.
A inflação de preços, medida pelo IPCA, de 4,3% e 4,5%, respectivamente, em 2019 e 2020, ligeiramente acima da meta, em 2021 deverá situar-se em 10,5%, sem dúvida um forte aumento. Duas observações, todavia, são necessárias: a primeira é que o salto na taxa de crescimento de preços no Brasil foi bastante inferior ao observado nos Estados Unidos (o maior em décadas) e na Zona do Euro (também o aumento mais elevado em quase 30 anos, inclusive na Alemanha); a segunda é que o nosso Banco Central foi o primeiro no mundo a abandonar o discurso de que os preços estão aumentando apenas devido à barafunda transitória nas cadeias de produção e a atacar a causa duradoura do aumento de preços — que sempre, em todo e qualquer lugar, é a política monetária frouxa —, o que vem fazendo desde março deste ano. A expectativa é que a inflação deverá voltar em 2022 ao nível de 2020. A confirmar essa esperança, neste final de ano já se veem sinais de arrefecimento do processo.
Diga-se, en passant, que o presidente do Fed, Jerome Powell, só recentemente reconheceu que a narrativa de culpar apenas a pandemia pela disparada dos preços estava errada e admitiu que “talvez” seja preciso apertar o cinto das taxas de juros em 2022. Já a senhora Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, ainda se diz “convencida” de que a pressão inflacionária “é passageira e que cairá em 2022, graças à aguardada queda nos preços da energia”. A verdade é que, quando se trata de inflação, o keynesianismo costuma ser fatal, tanto na identificação do problema quanto nos remédios prescritos.
Neste balanço de fim de ano, entretanto, não devemos nos limitar à conhecida análise de ascensorista, em que se lista cansativamente o sobe e desce dos indicadores econômicos, mas enfatizar que há razões sólidas para otimismo, além da mencionada resistência histórica da economia a chuvas e trovoadas. Refiro-me à consolidação fiscal e à evolução na composição dos investimentos, que vem sendo promovida silenciosamente, cujo efeito é aumentar a sua qualidade e, portanto, a sua produtividade.
As reformas
Seja pela falta — proposital — de divulgação da velha imprensa, seja por desconhecimento por parte da população de seus benefícios de longo prazo, pouca gente percebe a enorme importância da série de reformas pró-mercado e aumento de produtividade que vêm sendo promovidos desde 2019 pelas diversas secretarias do Ministério da Economia e que não foram interrompidas pela pandemia.
Eis algumas dessas providências: no que diz respeito à consolidação fiscal, reduções consistentes da relação dívida/PIB e dos gastos com previdência e com o funcionalismo; no que tange ao aumento da produtividade, diminuição da má alocação de recursos, novos marcos legais, concessões e privatizações, abertura comercial gradual, desburocratização e melhoria do ambiente geral de negócios.
Dentre as boas providências, destacam-se: a revisão do contrato de cessão onerosa, que tornou possível o maior leilão de petróleo do mundo; a modernização das normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho; a maior reforma estrutural do FGTS da história; o novo cadastro positivo e medidas para ampliar o crédito e fomentar inovações; a nova lei do agro; a lei de liberdade econômica, que está trazendo melhorias substanciais ao ambiente de negócios; as novas leis de falências e de licitações; a redução dos custos para o crédito imobiliário; as novas regras (marcos) para saneamento, gás, agências reguladoras, ferrovias, navegação de cabotagem e cambial; a autonomia do Banco Central; o marco das startups; as concessões de portos, aeroportos, estradas e de abertura de ferrovias.
A isso tudo, devemos acrescentar dois outros fatos auspiciosos e que também não costumam ser notados por analistas que parecem viver atolados no curto prazo e no cansativo papo de cerca lourenço, repetido exaustivamente, de que “se o Banco Central subiu os juros, então o desemprego também vai subir”. Trata-se do aumento na taxa de poupança e da mudança qualitativa na composição dos investimentos, com menor participação do Estado e maior do setor privado (em termos técnicos, um crowding out às avessas, “do bem”); ambos são fundamentais. O primeiro porque, ao fim e ao cabo, a formação de poupança — e somente ela — é que sustenta os investimentos no longo prazo; o segundo, porque gera enormes ganhos de produtividade e, portanto, crescimento autossustentado.
Em suma, a política econômica do governo está correta e é uma pena que esteja enfrentando tantos adversários em um jogo bastante viciado. Há motivos para esperança, mas haveria bem mais se a politicagem crônica deixasse de obstruir as reformas estruturais imprescindíveis que o povo endossou em 2018 e que, ao que parece, vão ficar para um eventual segundo mandato.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio
Sem nenhum embasamento técnico, representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário passaram a opinar sobre formas de tratamento e prevenção da covid-19
Aautonomia é a faculdade que permite ao médico tomar decisões de maneira consciente, independente e livre, de acordo com seus padrões de conduta moral e com o código de ética estabelecido, sem que haja influência de outros aspectos exteriores (econômicos, políticos etc).
Decorrente da autonomia, a responsabilidade profissional está implícita na atividade médica, assim como o dever de fazer o bem e de nunca prejudicar — primum non nocere — desde o primeiro Código de Ética Médica, como é considerado o Juramento de Hipócrates, passando pela Declaração de Helsinki, da Associação Médica Mundial, e presente nos Códigos de Ética brasileiros.
O Código de Ética Médica, cuja versão atual entrou em vigor em 2018, garante uma série de direitos, entre os quais destacamos o de exercer a medicina sem ser discriminado por questões de qualquer natureza e o de indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. Há também 117 vedações, cujo não cumprimento sujeita o médico à punição, que pode ir desde advertência confidencial em aviso reservado até cassação do exercício profissional.
Como ressaltado no próprio Código de Ética Médica, ao indicar o que considera o procedimento adequado ao paciente, o médico deve se basear no conhecimento científico disponível. Porém, o exercício da medicina deve se pautar também no tirocínio, isto é, na prática adquirida no decorrer do treinamento médico, sob a supervisão de médicos mais experientes, e na experiência adquirida no atendimento dos pacientes.
Portanto, a autonomia se justifica na medida em que o médico visa sempre ao melhor para o seu paciente, baseado em sua experiência e no conhecimento científico disponível, e assume a responsabilidade pelas condutas diagnósticas e terapêuticas propostas.
As recentes vacinas contra a covid-19 tiveram o seu valor, mas não se mostraram eficazes em conter a disseminação da doença
Nos últimos anos, com o aumento da disponibilidade de informações de saúde proporcionado pela internet, vem ocorrendo um fenômeno de substituição da consulta aos médicos pela consulta aos novos “experts” da internet. No entanto, muitas vezes esses profissionais não têm nenhuma formação na área da saúde e outros, talvez até pior, são profissionais que não têm em seu escopo de atuação o diagnóstico e o tratamento de doenças.
Nesses quase dois anos de pandemia de covid-19, esse cenário se acentuou. Sem nenhum embasamento técnico, representantes do povo, do Poder Executivo, principalmente estaduais e municipais, passando pelo Poder Legislativo e até detentores de cargos no Judiciário, que não possuem nenhuma representatividade popular, passaram a opinar sobre formas de tratamento e prevenção da covid-19.
Como, por exemplo, no caso do Supremo Tribunal Federal, que instituiu o chamado passaporte vacinal, ou sanitário, como querem alguns, sem absolutamente nenhum embasamento médico. As recentes vacinas contra a covid-19 tiveram o seu valor, principalmente em faixas etárias mais elevadas. No entanto, não se mostraram eficazes em conter a disseminação da doença, pessoa a pessoa, não se prestando ao fim a que se propõem. Esse foi mais um assunto em que a opinião de médicos foi simplesmente desconsiderada.
Enfraquecimento da autonomia médica em autarquias
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem por finalidade promover a proteção da saúde da população e tem a prerrogativa de aprovar a indicação de vacinas, como ocorreu recentemente com a controversa autorização da vacina da Pfizer contra covid-19 para aplicação em crianças de 5 a 11 anos de idade. Contudo, a agência regulatória possui apenas dois médicos entre os cinco componentes de sua Diretoria Colegiada.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por regular o mercado de planos privados de saúde no Brasil, não contava com médicos em sua Diretoria Colegiada até o fim deste ano — dois médicos deverão compor a diretoria depois da aprovação de suas indicações pelo Senado Federal. Esses são dois exemplos de que as políticas de saúde no Brasil estão sendo definidas cada vez menos por médicos, o que pode ser um fator de enfraquecimento da autonomia médica.
O Conselho Federal de Medicina, autarquia responsável por fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil, manifestou em diversas oportunidades e fóruns a necessidade de garantir a autonomia médica no diagnóstico e, principalmente, na escolha do tratamento de seus pacientes — no caso da covid-19 não havia muitas opções. A sociedade deveria lutar pela manutenção dessa autonomia. Esse princípio permite que, diante das incertezas, o médico possa envidar todos os seus esforços e sua experiência, aliados às melhores evidências científicas disponíveis, para atingir o objetivo mais importante de sua existência: a saúde e a vida de seu paciente.
José Geraldo Barbosa Jr. é médico com atuação na área de Gestão de Valor em Saúde
José Luiz B. Bevilacqua é médico, cirurgião oncológico e mastologista, doutor em Cirurgia pela Faculdade de Medicina da USP
Geraldo Alckmin e Luiz Inácio Lula da Silva, em jantar em São Paulo | Foto: Reprodução
O único que não se pode trilhar é o do retrocesso ao modelo que viabilizou o Mensalão e os crimes comuns bem evidenciados durante o desenrolar da Operação Lava Jato
Algumas pessoas começaram a seguir a política agora e ainda o fazem por meio das redes sociais. Esse conhecimento superficial e momentâneo prejudica a noção de médio e longo prazos.
Talvez por ser professora de Direito e por enfrentar, junto com os alunos, as mudanças no Direito Penal aplicado na prática, mais do que qualquer brasileiro, acompanhei no detalhe o desenrolar do julgamento do Mensalão e pude traduzir o divisor de águas que significou a Suprema Corte alcançar os mais altos quadros da política e alguns representantes do empresariado, punindo de forma exemplar, embora ainda diferenciada, estes e aqueles.
Com efeito, críticos e entusiastas do julgamento do Mensalão reconhecem a desproporcionalidade das punições aplicadas aos empresários, quando comparadas às que incidiram sobre os políticos. Apesar de injusta, essa desproporção teve um efeito “pedagógico” sobre os empresários, que, quando do início da Lava Jato, decidiram colaborar, entregando os políticos, para não correrem o risco de ser sacrificados.
Em outras palavras, o medo de serem punidos, como no caso do Mensalão, fez os alvos da Lava Jato colaborarem. Ocorre que, ao longo de toda a operação, por meio de textos e teses acadêmicas, artigos e entrevistas para os jornais, formadores de opinião criaram o “caldo de cultura” apropriado para, no momento oportuno, fomentar as anulações.
Tanto é verdade que, muito antes de aparecerem os tais diálogos do capítulo conhecido como “Vaza Jato”, eu já alertava para o risco de serem anuladas todas as investigações, ações e condenações que, ao lado do julgamento do Mensalão e do processo de impeachment, formaram o maior movimento de depuração dos últimos tempos.
Para quem testemunhou o que ocorreu com outras grandes operações policiais, fica fácil perceber que os diálogos não foram a causa das anulações, foram apenas a “desculpa” utilizada para tentar justificar o injustificável.
Por óbvio, o julgamento do Mensalão, o processo de impeachment e a Operação Lava Jato renderiam cada qual uma verdadeira tese. Este breve histórico não tem o fim de aprofundar todas as nuances desses importantes eventos da História recente.
Nada obstante, lembrar o encadeamento de fatos é essencial para que os brasileiros percebam que o único caminho que o Brasil não pode trilhar é o do retrocesso ao modelo que, sem nenhuma dúvida, viabilizou o Mensalão, os crimes de responsabilidade que levaram ao impeachment e os crimes comuns bem evidenciados durante o desenrolar da Operação Lava Jato.
Os atores desse modelo são poderosos, tanto no que concerne aos recursos econômicos, quanto no que tange à capilaridade. Eles estão nas universidades, nos meios de comunicação, à frente das grandes plataformas, que “permitem” ou inviabilizam o debate.
O jantar que selou a união entre Lula e Alckmin não aproximou apenas Lula e Alckmin, muitos desses atores estavam presentes, sendo imperioso destacar que a “confraternização” foi festejada pelos formadores de opinião, que sempre lucraram com o modelo que agora buscam resgatar.
Não aceito a derrota sem trabalhar em prol de um resultado diverso daquele que seria um destino trágico
Não sei se nas demais Casas Legislativas o espírito é o mesmo, mas, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a volta do PT ao poder, com todas as consequências inerentes a esse retorno, é dada como certa. E não se trata de ilação feita por parlamentares da esquerda. Colegas das mais diversas siglas têm a vitória de Lula como dada, havendo alguns que ousam apostar em “liquidar a fatura” no primeiro turno.
Não nego que vivamos um momento delicado. Os riscos são reais, e o fato de Alckmin afrontar seus eleitores de décadas para garantir um cargo de poder bem evidencia que as chances de Lula são grandes. Porém, sendo otimista por decisão, não aceito a anunciada derrota sem trabalhar em prol de um resultado diverso daquele que seria um destino trágico.
Já há algum tempo, venho insistindo na necessidade de unir forças à direita, dado que as forças à esquerda sempre estiveram juntas e, com inegável inteligência, vêm logrando êxito em fingir moderação. A própria sinalização de Lula a Alckmin faz parte desse teatro. E do lado da “direita”, ocorre o quê? Bolsonaristas e não bolsonaristas se atacam mutuamente, por conseguinte, fortalecem a esquerda.
Quando brado por união, não peço que um potencial candidato, à direita, abdique de sua candidatura em benefício de outro. Não é disso que se trata! A eleição em dois turnos confere o conforto de decidir duas vezes. Aliás, a existência de mais opções afasta o fantasma de Lula ganhar no primeiro turno. O pleito, na verdade, visa a evitar que os direitistas façam o serviço para os esquerdistas.
Como brasileira preocupada com o país e não com a própria eleição, penso diuturnamente em como será difícil reunir todas essas pessoas em eventual segundo turno. Os que hoje desconstroem Bolsonaro votarão em Lula no segundo turno? E se quem passar for Sergio Moro, os que hoje o desmoralizam como traidor votarão em Lula? Ficarão neutros? Anularão seus votos?
É preciso pensar nos cenários possíveis para o primeiro e para o segundo turnos. É preciso trabalhar para que tenhamos opções ao modelo que fez florescer Mensalão, Petrolão e a instrumentalização dos bancos públicos. Isso sem contar todo apoio moral e material às ditaduras de esquerda, que seguem assombrando a América Latina.
Essa abordagem vem sendo mal compreendida, tomada como estratégia para angariar votos de eleitores de Bolsonaro e Moro. Não é. Para me eleger senadora, seria mais interessante escolher um lado. E, se fosse por segurança pessoal, bastaria concorrer à reeleição na Alesp.
Precisamos garantir que haja segundo turno e que o candidato com maiores chances passe pelo primeiro. Também resta necessário criar condições para que o candidato vencido e seus eleitores apoiem o vencedor contra a volta do modelo rejeitado em 2018. Se não ocorrer essa almejada junção, o Brasil perde.
De todas as minorias discriminadas, a mais discriminada de todas é essa que nem é tão minoria assim: a dos idosos
Houve uma época em que os prêmios literários eram o caminho mais rápido para um escritor se tornar conhecido e ganhar alguns trocados. Nos anos 1960 do século passado, havia dezenas deles. O mais famoso era o Walmap, patrocinado por um banco mineiro — o Nacional —, cuja história de amparo às artes se perdeu na poeira dos tempos. Eu mesmo concorri várias vezes a ele. Mas nunca fui além dos dez finalistas ou da menção honrosa — posições que me faziam bem ao ego, mas não me rendiam nem fama nem dinheiro.
A maioria dos ganhadores do Walmap, tal como o prêmio e o banco que o patrocinava, caiu no esquecimento. Eu, desiludido com a literatura, atravessei uma fronteira então considerada maldita e, assim, me estabeleci como escritor no território menos nobre da televisão, das telenovelas e, sejamos bem sinceros, do dinheiro. Mas… por que diabos estou a escrever sobre prêmios literários? Porque uma cláusula de um dos raros que ainda existem — o Prêmio Literário José Saramago — me remeteu ao tema que, após o “nariz de cera” logo acima, vou abordar nesse artigo: a discriminação aos idosos.
O prêmio em questão, cito, “distingue obras inéditas de ficção de autores da lusofonia até os 40 anos”. Se o escritor tiver até 40 anos, poderá concorrer e abiscoitar o interessante prêmio de € 40 mil. Mas, se tiver 41, por mais talentoso que seja, não terá permissão para isso. Pois, para efeito de criatividade e quaisquer outros, ao que tudo indica, já deverá ser considerado tecnicamente morto.
Claro que os promotores do Prêmio José Saramago dirão que não existe nenhuma intenção discriminatória nessa única cláusula restritiva, inclusive porque no corpo de jurados foram incluídas pessoas com mais de 70 anos — a romancista brasileira Nelida Piñon é uma delas… E eles estarão certos. Mas os escritores de mais de 40 insistirão em dizer que estão errados. E que essa cláusula restritiva é apenas uma forma elegante de discriminar os mais velhos. Afinal, José Saramago ganhou o Nobel de Literatura aos 76 anos… O que significa que, naquela época, ele já não estaria apto a concorrer ao prêmio que leva o seu nome.
A discriminação aos idosos não é só cruel, mas é também muito criativa
Por isso — e baseado na minha própria experiência, já que farei 79 anos no próximo mês de junho —, eu aqui afirmo: de todas as minorias discriminadas, a mais discriminada de todas é essa que nem é tão minoria assim (em alguns países chega a ser maioria): a dos idosos. Ou, para que a coisa toda pareça mais cruel: a dos coroas. Dos vovôs. Dos velhotes. Dos caquéticos. Atire-me a primeira pedra a pessoa idosa que nunca foi chamada de “desenterrado do cemitério”, “kakura”, “caduco”, “nojento”, “fedorento”… Ou muitos outros insultos desse tipo acrescentados ao prenome “velho”. Às vezes de um modo paternalista, ou quase “terno”. Outras, do único modo pelo qual deve ser reconhecido qualquer tipo de insulto: de forma cruel…
Sem falar na crueldade, que é bastante comum aqui na Europa, de encerrar os idosos nos chamados “lares”, onde eles ficam trancados, mas deixam seus bens lá fora para que os jovens da família ganhem o direito de usufruir deles da melhor maneira.
A discriminação aos idosos não é só cruel, mas é também muito criativa. Vou dar um exemplo: citei no parágrafo acima a palavra “kakura”. Percebi que, nos últimos tempos, muitos a utilizam quando querem me insultar nas redes sociais. Como não tinha a menor ideia do que significava, fui pesquisar e descobri que, primeiro, essa tal palavra não existe… Mas talvez tenha se derivado de “caqueira” — ou seja, é aplicável a alguém que, como eu, seja um “caco velho”.
Sim, provavelmente é de “caco” ou “caqueira” que a tal kakura saiu. Porém, embora a palavra não conste de nenhum dos dicionários mais sérios e menos consultados, para que se torne um insulto de maior peso, ela precisa ter uma explicação, digamos assim, mais “etimológica”. Por isso, num tal Dicionário Informal existente na internet, já há uma definição para “cacura”, ou “kakura”, e esta é: “Homossexual (masculino) de idade avançada, com mais de 40 anos, enrugado. Geralmente a expressão é usada para definir homens enrustidos e de mais idade”.
Mas tem mais: em outro Dicionário Informal na internet, kakura com K ganha um status ainda maior. Seria uma palavra saída de um misterioso dialeto africano no qual é usada para designar (pois é claro) “homossexuais velhos”. Assim, fica entronizada a expressão cruel no maravilhoso reino das palavras com histórico. E, diante de sua definição, não há como negar que, aos 79 anos, eu seja as duas coisas: “cacura” e “kakura”.
Esse é um exemplo de como a discriminação se oficializa e se autoafirma através do insulto puro e simples. Mas, em relação aos idosos, ela nem precisa seguir por esse caminho. Basta ver o papel a eles reservado na publicidade, por exemplo: aos velhos, o que se tenta vender são aparelhos de surdez, fraldas geriátricas, óculos capazes de dar aos olhos cansados a ilusão das cores da juventude, pós e unguentos para as dores próprias da idade, ou planos de saúde inacessíveis à maioria dos mal aposentados.
Se no terreno escorregadio da publicidade não existem meios-termos — ninguém é louco a ponto de tentar vender uma Ferrari envenenada a um ancião com problemas sérios de joelhos, ou um colar de refulgentes diamantes e esmeraldas a uma vovó engraçadinha cujo colo antes sedoso agora ficou engelhado —, no dia a dia, a indiferença e o desamor aos velhos e caquéticos por parte daqueles que se consideram “para sempre jovens” são ainda mais evidentes.
Para mim, não existe nada mais triste do que ver uma família reunida numa mesa de restaurante onde está uma pessoa idosa à qual ninguém dirige a palavra e que se limita a olhar em torno com olhos vagos, como se quem estivesse ali não fosse a pessoa que ela um dia fora, mas apenas o seu espectro. Diz-se cruelmente dessas pessoas que “já está com um pé na cova”. Ou então que “já morreu, apenas ainda não foi enterrada”.
Claro, a culpa disso tudo também é dos idosos, que aceitam a discriminação como irremediável ou um “bônus” da idade. Pois se há uma coisa que essa proporciona é o direito de fazer e dizer o que se quer sem medos nem remorsos. Assim, se alguém me perguntasse que conselho eu daria aos velhos, parodiando o conselho que certa vez Nelson Rodrigues deu aos jovens — “Envelheçam!” —, eu lhes diria: “Rejuvenesçam!” Deixem bem claro para a turma ignorante e preconceituosa que a experiência de vida é um bem precioso. Não renunciem a ele, nem se deixem expulsar do lugar que — até que a morte realmente os leve — por direito é de todos os velhos neste nosso mundo cada vez mais envelhecido e caquético.
Ulysses Guimarães, durante a promulgação da Constituição de 1988 | Foto: José Cruz/ABr
Meu desconforto cresce à medida que cresce o intervencionismo judicial
OBrasil vive um momento em que duas realidades opostas são tidas por democráticas, a saber: aquela idealizada pelos constituintes e aquela definida pelo Supremo Tribunal Federal.
Participei de audiências públicas a convite dos constituintes, mantive contatos permanentes com o relator da Constituição, senador Bernardo Cabral, mandando-lhe até mesmo sugestões de textos, a seu pedido; com o presidente, deputado Ulisses Guimarães, que chegou a assistir a palestra minha sobre o parlamentarismo, pois era sua vontade implementar o sistema no Brasil.
Também estive com o deputado Francisco Dornelles,que me fez um dos primeiros convidados para audiência pública, na Subcomissão de Tributos, algumas de minhas sugestões tendo sido incluídas na Lei Suprema; com o deputado Delfim Netto, na Subcomissão de Economia, em audiência pública; com Roberto Cardoso Alves, já no plenário que comandou o grupo o qual a imprensa denominou de centrão, quando, a seu pedido, redigi, com Hamilton Dias de Souza, novo anteprojeto tributário, objetivando salvar — o que, de certa forma, foi possível — o trabalho da Subcomissão —, consta da primeira edição de meu livro Sistema Tributário na Constituição (Editora Saraiva) o texto do substitutivo.
Além de inúmeros outros contatos, encontros e palestras. Organizei um congresso pela Fecomércio de Minas Gerais e pela Academia Internacional de Direito e Economia, dez dias antes da promulgação da Carta Magna, em que, durante três dias, com participação de mais de 50 palestrantes (ministros do STF, TFR e TST, desembargadores, senadores, deputados, ministros do Executivo, governadores, professoresuniversitários, especialistas), se discutiram, em painéis simultâneos,todos os capítulos e seções da nova Lei Suprema.
As palestras forameditadas pela Forense Universitária sob o título A Constituição de 1988 — Interpretações. Por fim, comentei com Celso Bastos, em 15volumes, mais ou menos 10.000 páginas e em dez anos (1988-1998), o Texto Supremo pela Editora Saraiva.
Até hoje no Conselho Superior de Direito da Fecomércio-SP, que presido, o relator da Constituinte, senador Bernardo Cabral, éconselheiro, sendo quem melhor poderia testemunhar sobre esta modesta, mas intensa participação minha no processo constituinte.
Este ativismo judicial descaracteriza a independência e a harmonia dos Poderes
Exatamente por esta razão, causa-me desconforto divergir dos eminentes ministros da Suprema Corte — muitos deles amigos e comquem escrevi livros, participei de bancas universitárias, proferipalestras — sobre sua visão de que o Supremo Tribunal Federal é o maior Poder da República, com o direito de corrigir os rumos do Executivo, legislar para suprir vácuos legislativos e reformular votações sobre matérias de exclusiva responsabilidade da Casa, sempre que a oposição derrotada recorra ao Pretório Excelso para que lhe permita ganhar com 11 votos o que não conseguiram entre 513 deputados e 81 senadores.
Este ativismo judicial, que descaracteriza a independência e a harmonia dos Poderes do Artigo 2° da Lei Maior, pois coloca um Poder acima dos outros dois, por muitos é tido como uma nova corrente do moderno constitucionalismo, denominado ou de “consequencialismo” ou de “neoconstitucionalismo”. Por ela, caberia ao Supremo, como disse o ministro Toffoli em Lisboa, ser o Poder Moderador e ao ministro Luiz Fux, o defensor da democracia. Por essa corrente doutrinária, os fins justificam os meios.
Ocorre que, todavia, na Lei Suprema, o Título IV em que se insere oPoder Judiciário, como o último dos Três Poderes, a denominação é apenas de “Organização dos Poderes”, lembrando-se que o constituinte colocou como enunciado do Título V, o seguinte: “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”, outorgando às Forças Armadas e de Segurança Pública tal função.
O que mais impressiona, entretanto, é que nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão pode o Judiciário legislar, devendo solicitar ao Legislativo que o faça (Artigo 103 § 2° da Carta da República), numa clara demonstração que há um nítido conflito entre o pensamento do constituinte e aquele dos eminentes julgadores federais.
Por fim, para não alongar demais este artigo, é de se lembrar que o Artigo 49, inciso XI, impõe ao Legislativo que zele por seu poder normativo, entendendo eu que pode não obedecer ordem do Supremo que invada tal competência, por força da Constituição Federal, visto que só ao Legislativo cabe zelar por sua independência normativa.
Como se percebe, apesar da grande admiração que tenho pelos ínclitos julgadores do STF, meu desconforto cresce à medida que cresce o intervencionismo judicial.
Matrioscas russas com imagens de Josef Stalin, Vladimir Lenin, Vladimir Putin, Boris Yeltsin e Mikhail Gorbatchev | Foto: Montagem Revista Oeste/Elizaveta Krylova/Shuterstock
Em dezembro de 1991, a mais poderosa ditadura do mundo começou a se desmanchar de vez. E caiu sem praticamente nenhum tiro
AUnião das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surgiu em outubro de 1917, a partir da implantação pioneira de uma ideologia — o comunismo. Fundada por Vladimir Ilich Lenin no fim da Primeira Guerra Mundial, cresceu até somar uma centena de nacionalidades vivendo em 15 repúblicas. Ocupava as terras do Leste Europeu até o Oceano Pacífico e do Círculo Polar Ártico até os desertos do sul da Ásia, cobrindo 22,4 milhões de quilômetros quadrados — o equivalente a 2,6 vezes o tamanho do Brasil.
Mapa político da URSS | Foto: Shutterstock
A União Soviética ocupava um sexto da superfície terrestre. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o poder da URSS cresceu ainda mais. Sete países da Europa Oriental foram transformados em seus satélites no bloco comunista — Albânia, Hungria, Bulgária, Checoslováquia, Alemanha Oriental, Polônia e Romênia (a Albânia se descolou do grupo em 1968).
Brasão da antiga URSS | Foto:Reprodução
Uma máquina poderosa de propaganda internacional transformou esse bloco soviético no “paraíso do proletariado”. Lá, todos teriam os mesmos direitos, garantidos pelo sistema socialista. Os êxitos da URSS eram divulgados com orgulho por seus seguidores mundo afora — as conquistas esportivas, a bomba nuclear mais devastadora de todos os tempos, o primeiro satélite artificial, o primeiro astronauta em órbita, etc. Tudo indicava que o domínio do resto do mundo pelo comunismo soviético era apenas questão de tempo.
E, no entanto, o paraíso não era tão perfeito quanto os militantes da causa declaravam. O primeiro-ministro Nikita Khrushchev (entre 1958 e 1964) foi quem denunciou os crimes cometidos por seu antecessor, Josef Stalin, que deixou um rastro de 20 milhões de mortes.
Joseph Stalin | Foto: Reprodução/Britannica
O paraíso dos trabalhadores era na verdade um inferno de incompetência e repressão. Quem reclamasse era mandado para os campos de concentração da Sibéria, chamados gulags. A KGB, polícia de Estado comandada pelo Partido Comunista, dominava cada detalhe da vida. Os desfiles militares e as medalhas olímpicas escondiam a realidade de um império paralisado pela própria inépcia. Pior: não havia esperança. A população vivia num estado de penúria e medo permanentes. E os figurões do PC tinham direito a uma vida de luxo e poderes absolutos.
Nikita Khrushchev | Foto: Reprodução/Britannica
Glasnost & perestroika
Khrushchev foi substituído por outros burocratas carrancudos. Mas nada funcionava, a não ser para os altos funcionários do PCUS. Nos anos 1980, a URSS estava paralisada. O modelo centralizador comunista não conseguia tirar o império do ponto morto. Para piorar as coisas, seu grande rival, os EUA, vivia um momento econômico especialmente exuberante. Desde 1981, era presidido por um republicano convicto, o ex-ator Ronald Reagan.
Ronald Reagan | Foto: Divulgação
Reagan percebeu que a URSS estava desabando. E resolveu acelerar o processo. Apostou numa série de avanços no campo do armamento nuclear e num improvável projeto de mísseis no espaço que ficou conhecido como Star Wars. A União Soviética não tinha fôlego para responder a mais esse desafio estratégico.
A catástrofe da usina nuclear de Chernobyl, em 1986, havia mostrado quanto o regime estava apodrecido em todos os detalhes. O próprio Partido Comunista parecia ter reconhecido isso e permitiu que, em 1990, o reformista Mikhail Gorbachev virasse o líder máximo do império. Gorbachev, que sempre foi um comunista convicto, implantou no esclerosado aparelho de Estado duas palavras russas que logo se tornariam conhecidas no resto do mundo: glasnost e perestroika.
Glasnost quer dizer “abertura” e representava uma tentativa de dar um fôlego de liberdade de expressão e informação ao regime. Perestroika (“reestruturação”) ofereceu aos cidadãos alguma liberdade política, além de traços de livre mercado. Eram mudanças ousadas, mas limitadas. Mesmo assim foram boicotadas pelos burocratas do Partido Comunista, que temiam perder seus privilégios estatais.
Mikhail Gorbachev | Foto: Reprodução/Facebook
A coragem de Gorbachev possibilitou que, em 1989, os países-satélites da Europa Oriental derrubassem suas ditaduras comunistas, uma após a outra. Sem sua visão de estadista, o Muro de Berlim não seria derrubado em 9 de novembro de 1989. Em 1990, Gorbachev não só aceitou que as Alemanhas Oriental e Ocidental se reunissem num só país como não se opôs a que a Alemanha reunida fizesse parte da organização militar antissoviética, a Otan. Propôs a extinção das armas nucleares até 2000 e anunciou profundos cortes na máquina militar soviética. Seus atos foram tão ousados que Gorbachev recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Dezembro de 1991
As repúblicas que formavam a URSS também começaram a se revoltar. A ordem rígida implantada por Lenin se diluía. E, quanto mais a realidade ficava exposta, mais os comunistas temiam perder o poder. Bateu o desespero.
Vladimir Lenin | Foto: Everett Collection/Shutterstock
Durante três dias de agosto de 1991, Gorbachev e sua família foram aprisionados por golpistas da linha dura do PC em sua “dacha” (casa de veraneio) na Crimeia. O império soviético havia se transformado numa república das bananas. O golpe, patético em sua execução, saiu pela culatra. Uma sensação surda de “basta” se espalhou pela maior nação do mundo. O comunismo estava sendo derrotado em seu berço.
A essa altura, o presidente da Rússia já era Boris Yeltsin (Gorbachev teoricamente tinha mais poder, pois era o presidente de toda a União Soviética). Yeltsin, rompido com o PC, era um político conhecido por: 1) não acreditar em nenhuma tentativa de ressuscitar o Partido Comunista; 2) ser corajoso o suficiente para criticar os privilégios da elite do partido; e 3) beber além da conta, mesmo para os padrões russos. Criou uma cena histórica ao enfrentar tanques nas ruas de Moscou e libertar Gorbachev.
Boris Yeltsin | Foto: Reprodução/Facebook
Ao enfrentar os golpistas, Yeltsin ficou mais forte. Passou, na prática, a dividir o poder com Gorbachev, que se aferrou em sua concepção de que a URSS poderia viver para sempre, com alguns ajustes. A derrubada de um sistema político encastelado no poder do maior país do mundo havia sete décadas já seria difícil e perigosa. Mas havia um fator complicador: 27 mil armas nucleares prontas para lançamento. E ninguém sabia exatamente quem estava controlando o arsenal.
Esse xadrez se resolveu no mês em que o mundo virou de cabeça para baixo. Em dezembro de 1991, a mais poderosa ditadura do mundo começou a se desmanchar de vez. E caiu sem praticamente nenhum tiro. O mundo viveu durante um mês a sensação de que tudo era possível — o desastre e o sonho. Entre o caos e a possibilidade de uma convivência pacífica, livre, construtiva entre as maiores potências do mundo na época. Assim foi o mês mágico de dezembro de 1991, no distante mundo de 30 anos atrás:
1 dezembro 1991 A URSS está em profunda crise financeira. Boris Yeltsin, na prática, governa o país desde a tentativa de golpe de agosto. Mesmo sendo contra, ele aceita financiar, com emissão de rublos, o pagamento dos salários do aparelho estatal da URSS, especialmente do corpo diplomático. Medidas de encolhimento do Estado são anunciadas, incluindo o fechamento de ministérios. Nesse mesmo dia, eleitores da Ucrânia votam o destino do país. Gorbachev faz apelos para que os ucranianos não se desliguem da União Soviética, para não provocar uma “catástrofe”.
3 dezembro 1991 Resultado da eleição: “a Ucrânia nasceu”, declara o novo presidente do país, anunciando o desligamento da URSS. A independência do país recebe a aprovação de 90% dos eleitores. Boris Yeltsin imediatamente reconhece a independência do novo país como “parte do desejo democrático da vontade de seu povo” (os três pequenos países bálticos — Estônia, Latvia e Lituânia — já haviam se retirado da União Soviética em agosto).
4 dezembro 1991 Mikhail Gorbachev alerta: com a partida da Ucrânia, “a pátria (URSS) está ameaçada e o maior perigo é a crise de Estado”. O que ele diz já não importa muito.
6 dezembro 1991 O Pentágono declara que as 27 mil ogivas nucleares soviéticas aparentemente estão em mãos do governo central (chefiado por Mikhail Gorbachev). Mas a situação não está tão clara na recém-independente Ucrânia, que armazena 4 mil ogivas da URSS em seu território. O governo americano teme que, com o aparente caos político, armas soviéticas possam cair em mãos de “terroristas, ladrões ou países em guerra”.
9 dezembro 1991 Os governos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia declaram o fim oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o nascimento de uma nova “Comunidade de Estados Independentes”, mantendo ação coordenada em assuntos de defesa, relações internacionais e economia. “A URSS, como sujeito do direito internacional e da realidade geopolítica, está deixando de existir”, declaram os três governos nacionais. Mikhail Gorbachev afirma em entrevista a uma TV francesa que as consequências do desmantelamento da União Soviética vão fazer a sangrenta guerra civil na Iugoslávia parecer uma “piada”. “Neste fim de semana”, notou Celestine Bohlen, comentarista do New York Times, “três das repúblicas da União Soviética provaram que, ao contrário das repúblicas da Iugoslávia, estão dispostas e podem se encontrar e negociar sobre o futuro comum”.
11 dezembro 1991 Mikhail Gorbachev se esforça para ganhar o apoio dos militares da extinta URSS. Acusa os líderes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia de terem dado um “golpe de Estado”. Robert M. Gates, diretor da CIA, adverte que a fragmentada URSS vive a mais severa instabilidade desde a fundação, em 1917.
13 dezembro 1991 Numa longa entrevista com jornalistas soviéticos, Mikhail Gorbachev admite pela primeira vez a possibilidade de renunciar ao cargo de presidente da URSS. A entrada na Comunidade de Estados Independentes é aprovada pelo Parlamento russo por 188 votos a favor e 6 contra.
14 dezembro 1991 Cinco países da Ásia Central — Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão, somando 50 milhões de habitantes — decidem romper com a URSS e entrar oficialmente na Comunidade proposta por Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Gorbachev fica furioso com o fato de Boris Yeltsin ter passado a informação para o presidente americano George W. Bush antes de contar a novidade a ele.
16 dezembro 1991 O secretário de Estado norte-americano, James Baker, faz sua primeira visita a Moscou depois da mudança política. Traz com ele suprimentos médicos e alimentos de emergência. O novo governo pede a Baker que reconheça a independência da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia. O então secretário de Defesa (e futuro vice-presidente), Dick Cheney, já havia rompido a neutralidade, declarando à revista Time que a União Soviética, “como a conhecemos”, havia acabado e que Mikhail Gorbachev não estava reconhecendo a nova realidade.
17 dezembro 1991 Boris Yeltsin recebe o secretário James Baker para uma reunião no Salão Catarina do Kremlin. “Bem-vindo ao solo russo e a este edifício russo”, diz Yeltsin, deixando claro que não era mais solo e edifício soviéticos. Ministros soviéticos do Interior e da Defesa passam por cima das ordens de Gorbachev e comparecem à reunião. Não havia mais dúvida: os militares haviam abandonado o conceito de União Soviética e apoiavam a nova Comunidade de Yeltsin.
18 dezembro 1991 Yeltsin declara ao jornal italiano Repubblica que espera a renúncia de Gorbachev do cargo de presidente da URSS. O Parlamento Soviético, já sem poder, se “reúne” com um único orador presente, um comunista linha-dura chamado Viktor Alksnis. E existe uma única pessoa ouvindo seu discurso: ele mesmo. Os comunistas passaram o dia bravos com o fato de Gorbachev ter arrumado tempo para tirar fotos com a banda de rock alemã Scorpions, e não para ressuscitar o comunismo.
Mikhail Gorbachev recebe homenagem da banda de rock alemã Skorpions | Foto: Reprodução
19 dezembro 1991 Boris Yeltsin faz todos os gestos para evitar uma dualidade de poder na nova Rússia. Toma o controle do Ministério das Relações Exteriores, do Parlamento e até do escritório presidencial, ocupado por Mikhail Gorbachev. Com um decreto, institui a MSB, nova sigla que substitui a velha e temida KGB. E levanta a possibilidade impensável até então: que a Federação Russa aderisse à Otan. Justamente a organização militar criada para combater a União Soviética. Outros países, especialmente a Hungria e a Checoslováquia, querem seguir o mesmo caminho.
Bandeira da Federação Russa | Foto: Vyacheslav Evstifeev/Shutterstock
22 dezembro 1991 Mais uma pá de cal na extinta URSS: em Alma Ata, 11 das antigas repúblicas soviéticas se declaram independentes e assinam o acordo para a formação da Comunidade de Estados Independentes. Elas “aceitam” a renúncia de Mikhail Gorbachev, embora o líder soviético não tenha renunciado ainda. A declaração final de Alma Ata deixa claro: “Com a formação da Comunidade de Estados Independentes, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixa de existir”.
23 dezembro 1991 Os EUA entregam 75 toneladas de alimento para a região de Moscou, em crise. O gesto demonstra uma possível nova era de colaboração entre dois países que se prepararam para a destruição mútua. Foi o primeiro ato desse tipo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mikhail Gorbachev ainda não renunciou, mas universidades americanas começam a convidar o último presidente da URSS e sua mulher, Raissa, a darem aulas nos EUA.
25 dezembro 1991 No Kremlin, às 19h32, a bandeira vermelha com a foice e o martelo da URSS é recolhida pela última vez. Mikhail Gorbachev renuncia a seu posto de presidente da URSS. Entrega os códigos de disparo dos mísseis nucleares a Boris Yeltsin. Gorbachev deixa o governo aos 60 anos, com direito a uma aposentadoria de 48 mil rublos por ano. Ironicamente, por causa do fracasso econômico de seu próprio governo, esse dinheiro equivale a meros US$ 40 mensais. Recebe também um apartamento em Moscou, uma dacha de férias, dois carros, 20 guarda-costas e acesso gratuito à rede de saúde.
A bandeira da União Soviética (URSS) com a estátua de Lenin ao fundo | Foto: Alek Seenko/Shutterstock
26 dezembro 1991 No Kremlin, é hasteada pela primeira vez a bandeira branca, azul e vermelha da nova Federação Russa. Gorbachev sugere que vai descansar um tempo e ressurgir para a vida pública por meio de uma ONG, a Green Cross, fundada dois anos depois.
27 dezembro 1991 Companhias americanas iniciam a corrida para assinar contratos de investimento na exploração dos principais produtos da antiga URSS: petróleo, algodão, madeira, metais e minerais. A maioria das iniciativas parte de empresas relativamente pequenas. No entanto, a situação econômica ainda está caótica na Comunidade. Dos 2 mil negócios acertados, apenas 50 funcionam de verdade. O maior investimento, de US$ 65 milhões, parte da cadeia de lanchonetes McDonald’s.
30 dezembro 1991 Já como líder máximo oficial da nova Federação Russa, Boris Yeltsin faz uma declaração de tom sóbrio na TV, dizendo que a “Rússia estava gravemente doente” e que a vida seria dura para os russos durante os próximos meses, mas que a situação estaria melhor no final de 1992. A Rússia passou a viver um clima mais leve, mais livre, longe dos burocratas comunistas cinzentos e mal-encarados. Um vídeo espalhou para o mundo a nova imagem da Rússia: Boris Yeltsin, provavelmente alcoolizado, mas feliz, dançando num show de música pop.
Trinta anos depois
Três décadas se passaram desde a agonia e a morte da União Soviética.
Boris Yeltsin compreendeu com o tempo que, para modernizar o país, não bastava mudar o nome, mas limpar o aparelho estatal de seus parasitas, o que ele não conseguiu. Acabou ameaçado de impeachment por ter “desmantelado a URSS”. Renunciou no último dia de 1999 e deixou em seu lugar um ex-burocrata da KGB chamado Vladimir Putin. Yeltsin morreu em 2007, aos 76 anos.
O PCC está há 72 anos no poder. O PC da União Soviética ficou 74
O sonho de uma Rússia eficiente e livre deu lugar a um regime de gângsteres. Hoje, Putin ameaça a Ucrânia e os países bálticos num projeto pouco disfarçado de reconstruir o império soviético (que ele chama de “Rússia Histórica”). E, como nos tempos da URSS, o país continua ineficiente, gastando tudo o que tem em armas do apocalipse.
Na China, um dos objetivos principais do ditador Xi Jinping é não permitir que o Partido Comunista ceda seu poder absoluto, como aconteceu na antiga União Soviética. A lição de 1991 foi entendida ao contrário. O PCC está há 72 anos no poder. O PC da União Soviética ficou 74.
Quanto a Mikhail Gorbachev, hoje com 90 anos, continua criticando a “arrogância” dos Estados Unidos, a quem acusa de promover a atual crise da Ucrânia. Foi um líder visionário como não se vê mais. Mas não soube reconhecer seu erro de insistir no apego ao passado. Segundo a Enciclopédia Britânica, Gorbachev “confirmou que um sistema comunista não pode se tornar democrático. O fracasso econômico foi a razão-chave para o colapso da URSS. A alternativa socialista à economia de mercado se revelou uma ilusão”.