sexta-feira, 24 de outubro de 2025

'O caminho do dinheiro', por Sarah Peres

 CPMI abre a caixa-preta da roubalheira no INSS


Reunião da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do INSS para ouvir o ex-presidente do Instituto Alessandro Antonio Stefanutto. Foto: Lula Marques/ Agência Brasil. 


Pilhas de documentos, inúmeras denúncias de vítimas de fraudes e sucessivos depoimentos de testemunhas. Assim foram os primeiros dois meses de trabalho da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Durante esse período, técnicos da CPMI organizaram boa parte do material encontrado até o momento na caixa-preta do INSS e, assim, revelaram o caminho do dinheiro roubado. 

Planilhas da comissão obtidas pela Revista Oeste mostram três engrenagens do esquema: o comando institucional, no Ministério da Previdência e no INSS; o núcleo intermediário, composto de sindicatos e associações que serviam de canal de repasse; e o grupo empresarial, formado por empresas privadas e escritórios de advocacia que davam aparência de legalidade às operações fraudulentas, as quais envolviam familiares e até amigos, que serviam de laranjas para os desvios efetuados no INSS. 

O comando institucional 

No topo da engrenagem estava o INSS, órgão vinculado ao Ministério da Previdência, então chefiado por Carlos Lupi (PDT), responsável pelas indicações políticas para o Instituto. À época da explosão do escândalo, Lupi havia indicado Alessandro Stefanutto para a presidência do INSS — uma escolha de sua “inteira responsabilidade”, como o próprio ministro declarou em audiência na Câmara dos Deputados, em abril deste ano, antes de a CPMI existir. “O doutor Stefanutto é um servidor que, até o presente momento, me tem dado todas as demonstrações de ser exemplar”, disse o então titular da pasta.



Reunião da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do INSS para ouvir o ex-ministro da Previdência Social Carlos Lupi | Foto: Lula Marques/Agência Brasil 

No comando do INSS, Stefanutto nomeou André Paulo Félix Fidelis para a Diretoria de Benefícios, setor responsável por controlar as bases de dados e processar milhões de pagamentos mensais. Segundo documentos analisados pela CPMI, foi esse núcleo que repassou as informações sobre os aposentados e pensionistas para os sindicatos, empresas de tecnologia e plataformas de crédito consignado, como Consignet, Zetra, Inovatec e G&P Soluções Corporativas.


Ex-presidente do Instituto, Alessandro Antonio Stefanutto | Foto: Lula Marques/Agência Brasil. 


Essas companhias faziam a ponte entre o sistema público e o mercado financeiro. Operavam sob contratos de “manutenção” e “integração de dados”, facilitando o acesso desses dados por associações e escritórios jurídicos, que acessavam as informações dos aposentados para oferecer “serviços e empréstimos”. A estatal Dataprev, responsável por armazenar os cadastros da Previdência, acabou transformada em um repositório explorado por terceiros — uma brecha que o grupo empresarial soube aproveitar. 

Nos papéis, os repasses a empresas e advogados pareciam legais: “consultorias”, “apoio jurídico”, “gestão de convênios”. Mas os relatórios financeiros e depoimentos colhidos pela CPMI apontam outro cenário. Os pagamentos seguiam um padrão de triangulação: o dinheiro saía de sindicatos e associações conveniadas ao INSS, passava por empresas intermediárias e terminava em contas de familiares, assessores ou firmas de fachada dos “laranjas”. 

Intermediários 

No meio da engrenagem, sindicatos e associações funcionavam como elos de passagem entre o poder público e o setor privado. Nenhuma entidade simboliza melhor esse papel do que o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), presidido por Milton Baptista de Souza Filho e tendo como vice José Ferreira da Silva, o Frei Chico — irmão do presidente Lula, blindado pela base governista para não depor na CPMI até este momento (leia reportagem de Cristyan Costa). 

Sob a fachada de defesa dos aposentados, o Sindnapi movimentou milhões de reais por meio de contratos com empresas ligadas à própria cúpula sindical. Relatórios da comissão mostram que o escritório Pellegrino & Galleti Advogados, de Carlos Afonso Galleti Júnior, recebeu R$ 3,2 milhões do Sindnapi. Galleti Júnior é marido de Tônia Galleti, então coordenadora jurídica e filha do fundador do sindicato. Outra empresa do mesmo grupo familiar, a Gestora Eficiente Ltda., considerada peça-chave do projeto Viver Melhor, recebeu R$ 2,7 milhões, além de pagamentos feitos pelo Banco BMG e pela seguradora Generali. A Esférica Assessoria e Sistemas de Informática Ltda., administrada por Carlos Eduardo Teixeira Júnior, cunhado de Tônia, recebeu R$ 2,3 milhões. Em linhas gerais, o Viver Melhor oferecia supostos benefícios e serviços assistenciais a aposentados, como planos de saúde e seguros de vida. Na prática, porém, funcionava como uma frente de arrecadação, por meio de descontos automáticos em folha. 


Sob a fachada de defesa dos aposentados, o Sindnapi movimentou milhões de reais por meio de contratos com empresas ligadas à própria cúpula sindical.


Há ainda repasses da Gestora Eficiente a outros parentes de Tônia — a irmã Nita Gabriela Inocentini e a mãe Neuza Pereira Inocentini — o que reforça, segundo a CPMI, um sistema de favorecimento cruzado entre parentes e empresas de fachada. Somados, os contratos chegam a R$ 8,2 milhões em pagamentos diretos, sem incluir aditivos e subcontratações internas. Os aditivos eram acréscimos contratuais usados para renovar prazos ou ampliar valores de serviços já contratados, muitas vezes sem nova licitação. Já as subcontratações internas ocorriam quando uma das empresas do grupo transferia parte do serviço a outra firma ligada aos mesmos sócios ou familiares, inflando o custo final e dificultando o rastreamento do dinheiro. O modelo se repete em outras entidades de aposentados, com variações de nomes e CNPJs, mas a mesma lógica de intermediação.


Presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), Milton Baptista de Souza Filho | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

O grupo empresarial e operacional 

Na terceira camada do esquema, empresas privadas, escritórios de advocacia e operadores regionais se encarregavam de dar aparência de legalidade e movimentar o dinheiro. O nome mais citado nas investigações é o do advogado Nelson Wilians, dono de um dos maiores escritórios do país, e de seu ex-sócio, o empresário Fernando dos Santos Andrade Cavalcanti — ambos apontados como principais articuladores e alvos da Operação Sem Desconto. 

O escritório Nelson Wilians Advogados aparece em contratos com associações de aposentados para representar judicialmente filiados em ações coletivas. Na prática, porém, servia de canal para redistribuir recursos vindos dessas entidades — com valores muito superiores ao volume real de processos. Cavalcanti, ligado a empresas de tecnologia em Brasília, atuava como intermediário entre o núcleo jurídico e o operacional, recebendo e repassando valores a operadores locais.


Advogado Nelson Wilians | Foto: Lula Marques/Agência Brasil 

Outras consultorias, como a Vox Serviços Jurídicos e a Consiltec, também aparecem associadas à Diretoria de Benefícios do INSS. 

Elas assinaram contratos de “apoio técnico” e “captação de filiados”, que, segundo a CPMI, disfarçavam pagamentos por acesso indevido a dados de beneficiários. Esses escritórios e empresas foram beneficiados por convênios sem transparência, muitos deles com repasses diretos de associações regionais e federações de aposentados. 

Na base operacional, atuavam nomes como Antônio Carlos Antunes, o “Careca do INSS”, e Milton Salvador de Almeida Júnior, apontados como operadores regionais. Eles mantinham contato direto com empresas de crédito e associações locais, formalizando empréstimos e distribuindo comissões. Parte das comissões era enviada a empresas de fachada, abertas em nome de laranjas; outra, financiava campanhas e despesas pessoais de dirigentes sindicais. 

Entidades regionais como a Associação dos Aposentados de Goiás (AAG) e a Associação dos Servidores e Pensionistas do INSS do DF (Aspin) aparecem como núcleos de execução, diretamente ligados a operadores. A Fenaps, por sua vez, atuava nas duas pontas: recebia repasses e redistribuía valores a advogados e consultorias.


Empresário Antônio Carlos Camilo Antunes, conhecido como o Careca do INSS | Foto: Lula Marques/Agência Brasi

O rastro do dinheiro

Com base em relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Receita Federal, a CPMI montou a linha do tempo do esquema:

• Origem: recursos saíam de sindicatos e associações conveniadas ao INSS, oriundos de contribuições compulsórias ou descontos indevidos; 

• Intermediação: valores eram transferidos para empresas de tecnologia ou consultorias jurídicas sob o pretexto de “prestação de serviços”; 

• Redistribuição: essas empresas subcontratavam outras firmas — muitas registradas em nome de familiares ou laranjas; 

• Destino: os recursos eram pulverizados em contas de pessoas físicas e jurídicas ligadas aos operadores. 


Em um dos fluxos identificados, a Gestora Eficiente Ltda., ligada ao Sindnapi, repassou valores à Esférica Assessoria e Sistemas Ltda., administrada pelo cunhado de Tônia Galleti. Parte do montante foi transferida a pessoas físicas sem vínculo funcional. Em outro caso, o Nelson Wilians Advogados recebeu valores de associações e repassou quantias menores a sociedades civis recém-criadas em Brasília, sem funcionários nem estrutura. Essas transferências, sempre acompanhadas de notas fiscais genéricas, compõem o que a CPMI descreve como “lavagem via convênios sociais” — um modelo sofisticado de escoamento de recursos dentro de estruturas aparentemente legais.


Ex-integrante do Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) Tônia Andrea Inocentini Galleti | Foto: Lula Marques/ Agência Brasil 

A blindagem política 

A CPMI também identificou um circuito de blindagem política que manteve o sistema ativo por anos. Nomeações estratégicas dentro do INSS e da Secretaria de Previdência garantiram silêncio administrativo e renovações automáticas de contratos. O Ministério da Previdência aparece no organograma como ponto de interseção entre a cúpula do governo e os dirigentes do instituto — o elo que explicaria por que, mesmo após alertas da CGU e bloqueios judiciais, as mesmas empresas continuaram a operar. 

Segundo os relatórios, o esquema criou um fluxo financeiro paralelo, no qual recursos públicos, contribuições sindicais e taxas de aposentados circularam fora do controle estatal. Cada camada ficava com uma porcentagem, e a sucessão de subcontratações impedia o rastreamento direto. Parte dos valores, segundo a CPMI, foi enviada ao exterior, por meio de of shores, fintechs e empresas com sede fora do país, associadas a consultorias jurídicas do grupo.

O resultado é sabido: milhares de aposentados tiveram descontos indevidos em seus benefícios, por causa de autorizações falsificadas ou adesões automáticas a associações. As entidades usavam o dinheiro das vítimas para alimentar o ciclo de contratos e subcontratações — uma engrenagem precisa, que por anos operou sob o disfarce da desordem. Agora, a CPMI tenta desmontar peça por peça esse sistema. Cada contrato analisado revela uma nova conexão, um novo beneficiário, um novo nome que se encaixa no mapa dos desvios. A comissão ainda não concluiu os trabalhos, mas o retrato já está nítido: a desorganização nunca foi acaso — foi método

Sarah Peres - Revista Oeste