sexta-feira, 16 de maio de 2025

'A galinha voadora e a dama perdida', por Tiago Pavinatto

Janja não é somente uma dama perdida na China, é também tão mentirosa quanto o seu Clyde — contudo, há quem a aplauda 


Xi Jinping e Luiz Inácio Lula da Silva - Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Enquanto a maioria dos militantes da diversidade sexual, que elegeu Lula e, ainda, vibra com Janja, tornava o paraíso natural de Copacabana um verdadeiro inferno — bem ilustrado como nas fotografias de Sebastião Salgado em Serra Pelada, mas com dez garimpeiros com leques nas mãos por metro quadrado — comandado por Lady Gaga, the brazilian first lady–lady-ladylady ganhava os céus: tal como a Lady Lady de Joe Esposito, que toma seu rumo e deixa seu homem para trás, Janja viajava, sozinha, para a Rússia, deixando seu “hômi” no Brasil. 

Porque ela não me aceita como seguidor em seu perfil no Instagram alimentado com dinheiro do pagador de impostos, pouco sei das relações internacionais de Janja. Não posso dizer se ela visitou algum cossaco, se viu cossaco na rua, se, em algum evento, dançou cossaco. Sei que, dias depois, Lula lá encontrou sua “muié” e, dias depois, já estavam juntos em algum negócio da China.


Se os dados do governo de seu próprio marido indicam 422 mortes no regime militar, quantos casos como o de Celso Daniel e o de Marielle são necessários para validar o discurso de Janja? - Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Antes da reunião “confidencial e pessoal”, segundo Lula, com Xi Jinping — reunião na qual, enquanto o “hômi” requisitava um workshop de censura nas redes ao comandante supremo da ditadura chinesa, a “muié”, out of the blue, confrontou o chinês acerca de uma das mais valiosas empresas daquele país —, a primeira-dama brasileira protagonizou o primeiro drama diplomático: em um evento paralelo aos oficiais, Janja comandava o lançamento do filme Ainda Estou Aqui na China. Do seu discurso:

“Com Ainda Estou Aqui, a população brasileira, principalmente os nossos jovens, puderam [sic] conhecer e compreender os horrores de um regime autoritário, um regime que matou milhares de homens e milhares de mulheres.” 

Eis o drama da dama: estaria perdida? Afinal, não é novidade nem pode causar surpresa aos bípedes alfabetizados o fato histórico, público e notório, de que a China vive sob um regime autoritário de partido único, o Partido Comunista Chinês (PCC), que exerce controle total sobre cada um dos aspectos da vida dos chineses desde 1949. 

Não somente uma dama perdida na China, Janja é também tão mentirosa quanto o seu Clyde — seria Lula o nosso “Cride”? Fala pra mãe! 

Se os dados oficiais do governo do seu próprio marido afirmam que o regime militar brasileiro de 1964 “assassinou” 422 pessoas (51 mortos entre 1964 e 1968; 351 entre 1969 e 1978; mais 20 entre 1979 e 1985), quantos Celsos Daniéis e Marielles são necessários para transformar o discurso de Janja em fala de mulher honesta?

Respondo: se, conforme os dados do Planalto, dos 422 mortos, 51 eram do sexo feminino, serão necessários, no mínimo, 1.629 Celsos Daniéis mais 1.949 Marielles para que seja verdadeira a afirmação de Janja sobre o assassinato de milhares (mais de um milhar; portanto, 2 mil no mínimo) de homens e de milhares (idem) de muleres. 

Em pontos porcentuais e sem margem de erro, o discurso de Janja é 848% fake news. No que tange às vítimas do sexo masculino, a mentira é de 439%; quanto às mulheres, a desinformação promovida alcança a impressionante marca de 3.822%. ALÔ, BESSIAS: não vai processar a dama do vagabundo discurso? ALÔ, EX-LINDINHO: não vai representar o primeiro-casal por conspiração contra o Estado brasileiro? 

É claro que toda vida importa… mas comemorar o fim de um regime que matou 422 pessoas (o regime brasileiro de 1964) em evento festivo no epicentro de um regime que, na “melhor” das hipóteses, já pode ter ultrapassado 100 milhões de vítimas (o regime do Partido Comunista Chinês)? Ora, ora.

E o choro ao final da fala? Garante-se que não foram lágrimas de jacaroa, porque a palavra não consta do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. “Eu falei faraona?” Imaginemos, por amor à ficção, uma visita diplomática dos antigos soberanos egípcios aos atuais soberanos chineses. Qualquer rainha do Egito, é certo, saberia se localizar melhor e o que dizer no território do regime prestigiado. 

Decerto saberia também que “faraona” é vocábulo do idioma italiano para numida meleagris — no vernáculo, “capota, pintada, galinha-do-mato, galinha-da-índia, galinha-da-guiné, estoufraca, galinhola, galinha-d’angola”. 

Quanto à China: o outrora poderosíssimo império no qual nem sequer a Igreja Católica — sinônimo de Universal, pois, do grego, katholikós deriva da combinação dos termos kata (“junto; acerca de; sobre”) e holos (“todo”) —, ao longo do seu processo histórico de expansão mundial, lograra êxito de entrada, foi dominado pela religião sem Deus da doutrina marxista, que fez cinzas da sua vasta e rica cultura milenar e o transformou no Estado que mais executa pessoas no mundo, além de operar abortos e esterilizações forçados para controle populacional. 

Isso sem contar, em virtude das rígidas políticas de planejamento familiar e das condições sociojurídicas menos favoráveis às mulheres, os abortos clandestinos e os assassinatos de recém-nascidos do sexo feminino cometidos pelos próprios pais ao longo de décadas, o que, diante do consequente desequilíbrio populacional de homens e mulheres, levou à proibição oficial do exame de ultrassonografia (em vez de promover a igualdade entre os sexos).

Se a fome provocada pelos partidários de Mao Tsé-Tung — que AINDA ESTÃO ALI — matou cerca de 45 milhões entre 1958 e 1962, a Revolução Cultural iniciada na década de 1960 levou ao estado da arte o holocausto dos inimigos do PCC — que AINDA ESTÁ ALI. Nesse sentido, e em tempos de guerra ao “ódio” e de amor a Lady Gaga, vale destacar a questão da homossexualidade.

A fome e os massacres provocados pelos partidários de Mao Tsé-Tung revelam a continuidade do regime | Foto: Shutterstock

As pesquisas do sociólogo marxista Pan Guangdan (Xingxinlixue [“Psicologia do Sexo”], Pequim, 1966), traduzidas e debatidas pelo historiador Howard H. Chiang, da Universidade de Princeton (Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, 2009), bem como o trabalho do historiador Timothy Brook (Great State: China and the World. Nova York, 2020), evidenciam, a despeito das rejeições confucionistas e taoístas, a pacífica assimilação de relacionamentos homossexuais tanto entre súditos quanto dos imperadores, que tiveram um ou vários amantes do mesmo sexo desde a Dinastia Han (de 206 a.C. a 220 d.C.), passando pelas Dinastias Sung (960-1279) e Ming (1368-1644), até a Dinastia Qing (1644-1912). 

A homofobia (elemento indissociável à doutrina marxista fundamental do “homem natural”, ou seja, do macho biológico) tornou-se política persecutória estruturada e implacável a partir de Mao Tsé-Tung, quando, além das prisões e castrações, adotou-se a pena de morte à homossexualidade “reincidente”. Os homossexuais foram postos ao lado de toda a sorte de inimigos da Revolução. 

Tanta gente morria em decorrência desse regime que ainda está ali na China que, em 1961, o Partido Comunista proibiu os funerais: ou os corpos eram jogados em valas ou viravam adubo. As pesquisas de Jung Chang e Jon Halliday (Mao: A História Desconhecida. São Paulo, 2012) revelam que o Estado chinês teria assassinado muito mais gente, “se não fosse pelo valor de seu trabalho escravo. Mao disse isso em uma ordem: […] não deviam ser mortas, em parte porque ‘perderíamos uma grande força de trabalho’. 

Assim, milhões foram poupados para serem enviados aos campos de trabalhos forçados. […] Mao semeou um vasto arquipélago de campos, cujo termo oficial era lao-gai: ‘reforma pelo trabalho’. Ser enviado para lao-gai significava ser condenado ao trabalho opressivo nos terrenos mais hostis e nas minas mais contaminadoras, e ser hostilizado, […] trabalhar até a morte. Muitos internos eram executados, enquanto outros se suicidavam de qualquer jeito, como mergulhar numa ceifadeira. 

No total, […] o número dos que foram executados e tiveram morte prematura em prisões e campos de trabalho forçado pode ter chegado a 27 milhões. 

Além da execução e do encarceramento em prisões e campos, havia uma terceira forma de punição […] imposta a muitas dezenas de milhões de pessoas durante o reinado de Mao. Era chamada de ser posto ‘sob vigilância’, enquanto a vítima permanecia na sociedade. Isso significava ‘cumprir sentença do lado de fora’, ser mantido numa espécie de liberdade condicional permanente, ser considerado um dos suspeitos usuais a ser detido e atormentado novamente em qualquer novo ataque da repressão. Significava que toda a família da pessoa viveria como pária” (p. 325). 

Contudo, há quem aplauda Janja, nossa dama perdida. Há quem diga, até mesmo, “ela é demais”. Resta, então, descobrir se ela é uma deusa, uma louca ou uma feiticeira. 


Primeira-dama Janja da Silva | Foto: Shutterstock

Tiago Pavinatto - Gazeta do Povo