Os Estados Unidos decidem investigar a compra de caças suecos pelo Brasil, um dos assuntos explosivos que o Supremo mandou enterrar
E m fevereiro do ano passado, quando limpava as gavetas para se aposentar do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski descobriu que deixara pelo caminho um caso delicado na Corte. Era preciso julgar definitivamente uma ação que citava o presidente Lula da Silva, seu filho Luís Cláudio e o ex-prefeito de São Bernardo do Campo Luiz Marinho, hoje ministro do Trabalho. Todos foram investigados pela compra de caças suecos no governo Dilma Rousseff, por meio da Operação Zelotes, da Polícia Federal. Os detalhes sobre um esquema de tráfico de influência, lavagem de dinheiro, compra de uma medida provisória — e, claro, propina — estão narrados abaixo. Ocorre que a novidade sobre esse caso, até então enterrado pelo Supremo e esquecido pela mídia, partiu dos Estados Unidos.
Na semana passada, a empresa Saab, fabricante dos aviões militares Gripen, informou que foi intimada pelo Departamento de Justiça americano a explicar a operação no governo Dilma Rousseff, em 2014. Trata-se de um negócio de US$ 5,4 bilhões para renovar a frota da Aeronáutica com 36 caças — 15 serão feitos no Brasil. Por questões de segurança, a Saab não disse o que os Estados Unidos querem saber. Mas há algumas pistas: a empresa venceu uma disputa comercial na época contra a americana Boeing (F-18 Super Hornet). O modelo sueco Gripen usa motor da também americana General Electric e há restrições quando se trata de transferência de tecnologia a outros países.
Outra suspeita é o tráfico de influência internacional feito por Lula e os indícios de pagamento de propina em transações no exterior. Além da Boeing, a terceira opção eram os Rafale, da França. O petista, como era esperado, ficou irritado quando soube da investigação nos Estados Unidos (veja o vídeo abaixo). “A companheira Dilma comprou um avião que era mais econômico, mais barato e a manutenção custava menos. É um avião de um conjunto de países, é um sueco que tem participação da Inglaterra e de vários outros países”, disse, em entrevista à Rádio CBN de Fortaleza. “Acho que um pedido de informação dos Estados Unidos é intromissão numa coisa de um outro país. É descabida essa informação. Não tem sentido, porque é um avião que o Brasil comprou”, completou.
Ao se defenderem previamente em comunicado público, os suecos dizem que as investigações “foram encerradas sem indicar nenhuma irregularidade por parte da Saab”. Mas não explicam como foram encerradas no Brasil. Aqui começa a confusão. Aos fatos: a Operação Zelotes aconteceu no segundo governo Dilma Rousseff para desmontar um esquema de vendas de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, chamado de Carf — uma espécie de tribunal da Receita Federal.
Assim como a Lava Jato, que corria paralelamente no país, a Zelotes atirou no que viu e acertou em muito mais alvos. Os investigadores descobriram que uma medida provisória (nº 627), editada pelo governo, havia sido vendida para beneficiar empresas, como montadoras de carros e a Saab. Segundo o Ministério Público Federal, Lula participou das negociatas já como ex-presidente. Era uma época em que o petista viajava pelo mundo com o argumento de que era palestrante, especialmente em países com obras de empreiteiras da Lava Jato. Parte da propina — R$ 2,5 milhões —, de acordo com a apuração dos procuradores, ficou com Luís Cláudio, filho do petista.
Uma terceira operação da Polícia Federal e do Ministério Público esbarrou na compra dos caças pelo mesmo motivo. A Greenfield rastreou operações de fundos de pensão, em 2016. Em depoimento à Justiça, o ex-ministro Antonio Palocci afirmou que Lula “agiu diretamente” no pedido de propina para fechar o negócio.
Por que Luiz Marinho também se envolveu no escândalo? Ao fechar a transação, a Saab equipou a fábrica na cidade de São Bernardo do Campo, no ABC paulista — onde produz cone de cauda, freios e fuselagem. Marinho foi prefeito do município. Ele chegou a viajar para a Europa para testar os jatos supersônicos. O Ministério Público descobriu que a Saab tinha um contrato, de R$ 25 mil mensais, com o advogado Edson Asarias, amigo de Marinho. O documento fala numa “campanha de marketing a favor do Gripen”.
Para os investigadores, o papel era uma espécie de recibo de propina para o petista. Todos negam as acusações, que foram anuladas pelo Supremo. O outro centro de produção do caça Gripen fica em Gavião Peixoto, no interior de São Paulo, em parceria com a Embraer. Nenhum avião ficou pronto até hoje.
Ricardo Lewandowski interrompeu as investigações sobre a compra dos aviões militares em duas etapas: em 2022, impediu o pacote de ações de avançar nas Cortes superiores; depois, jogou a pá de cal antes de apagar a luz, em fevereiro do ano passado. Junto das denúncias sobre os aviões, foram anuladas apurações de repasses da Odebrecht para comprar o terreno do Instituto Lula e um apartamento em São Bernardo do Campo.
O ministro usou a mesma cartada que o ex-colega de toga Dias Toffoli emprega para apagar a Lava Jato hoje em dia. Aliás, Toffoli herdou boa parte dos processos do próprio Lewandowski e apenas replicou a fórmula no atacado. Em termos jurídicos, o ministro escreveu que “os graves vícios que maculam as investigações conduzidas contra o reclamante [Lula] pela extinta força-tarefa Lava Jato de Curitiba, no tocante à aquisição dos referidos caças, foram aproveitados de forma acrítica e tendenciosa” pela Justiça do Distrito Federal.
“A imprestabilidade das investigações pela referida força-tarefa, sublinhe-se, já foi atestada por esta Suprema Corte.” Traduzindo: Lewandowski disse que todas as investigações foram contaminadas porque em algum momento se cruzaram com a Lava Jato. Logo, a troca de conversas entre o então juiz Sergio Moro e os procuradores de Curitiba, reveladas por meio de crime de hackeamento, envenenaram a árvore processual inteira — tanto faz se a acusada era a Odebrecht, a JBS ou os envolvidos na compra de jatos militares.
Quem comemorou na ocasião foi o advogado de Lula, Cristiano Zanin, hoje ministro do mesmo tribunal. “A robusta decisão do ministro Ricardo Lewandowski acolheu os elementos que apresentamos e reconhece que a ação penal referente ao ‘Caso Caças Gripen’ fazia parte do ‘Plano Lula’, que foi engendrado por integrantes da extinta ‘Lava Jato’ para cassar arbitrariamente os direitos políticos do expresidente e para sobrecarregar — e tentar inviabilizar — o trabalho de sua defesa, atuando inclusive em cumplicidade com membros do Ministério Público de outras jurisdições”, disse na época.
Quais informações o Departamento de Justiça americano tem em mãos ainda é uma incógnita. O Congresso brasileiro pode enviar um pedido de colaboração, por meio das comissões, mas o calendário eleitoral esvaziou Brasília. Um fato, contudo, é inequívoco: Lula não disfarçou o incômodo com um pedido de informações que nem sequer foi direcionado ao governo brasileiro — mas à empresa sueca. Talvez porque ele saiba que nos Estados Unidos não há um Ricardo Lewandowski.
Sílvio Navarro, Revista Oeste