quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Marina Colasanti aposta que grandes migrações desta era mudarão a face da Terra

José Nêumanne, O Estado de São Paulo


Sobre o Brasil Marina cutuca a ferida: “Recuperamos o voto popular, mas esquecemos de educar os eleitores para o seu exercício.” Foto: Fábio Motta/Estadão
Para a jornalista, escritora e poeta Marina Colasanti, nascida na África e carioca por adoção, “no futuro nossa era não ficará conhecida pelos avanços tecnológicos – que começaram no século 19 com a primeira lâmpada elétrica! -, mas como a era das grandes migrações. Pois são elas que, como quando asiáticos atravessaram o estreito de Behring e povoaram a América, mudarão a face do mundo”. 
Na 36.ª da série de entrevistas do Blog do Nêumanne, a última do ano, pois o entrevistador estará de férias até 9 de janeiro, a feminista da primeira hora falou também de sua relação antiga e íntima com a cidade que cerca o apartamento onde vive com o marido, o poeta e crítico mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, autor do poema seminal Que país é este?, ela desabafou: 
“Hoje, para amar o Rio seria necessária uma cegueira social desmedida. Olho da minha janela e vejo a comunidade lá adiante crescer dia a dia, ocupando o lugar da mata. E sei que lá não há esgoto, a água não é potável, e que as vielas estreitas favorecem o surgir de doenças e o multiplicar-se de gangues de traficantes ou milicianos. Não sou a única a ver esse crescimento. O poder constituído também vê e nada faz. É duro amar uma cidade entregue a si mesma”.
Marina Colasanti nasceu na Eritreia, país africano à beira do Mar Vermelho, e morou na Líbia, país africano à beira do Mediterrâneo. 
Depois cruzou o mar e foi viver na Itália. Mas só até os 10 anos, quando cruzou o oceano e veio viver no Brasil. 
Aqui estudou pintura e cursou Belas Artes, o que faria dela, mais adiante, a sua própria ilustradora. 
Porém, mais uma vez, mudou o rumo da sua vida e foi ser jornalista. 
Trabalhou no Caderno B do Jornal do Brasil, como redatora, secretária de texto, cronista, colunista e editora do Caderno Infantil.  
Desempenhou-se paralelamente como editora do Segundo Tempo do Jornal dos Esportes
E rumou para a revista Nova e para 20 anos de atividade feminista. 
Foi âncora e apresentadora em televisão, foi publicitária. Ganhou sete Jabutis, dois Livros do Ano, um Portugal Telecom, um Prêmio Biblioteca Nacional e os internacionais Norma- Fundalectura e Prêmio SM. 
Agora escreve seus livros de prosa e de poesia para adultos e crianças, faz traduções, lê muito, desenha, e viaja, viaja e mais viaja. Dizem que cozinha muito bem.
Marina, com Affonso, em 1994, quando ganhou dois Jabutis , um de poesia (Rota de Colisão), outro para Livro do Ano ( Ana Z. Aonde vai você?). Foto: Acervo pessoal
Nêumanne entrevista Marina Colasanti
Nêumanne – A senhora nasceu na Eritreia, no Chifre da África, país pequeno e pobre, periférico na História africana, do Oriente e do Ocidente, mas agora está no meio da crise dos refugiados, que deslocou de repente para o centro da globalização planetária a pobreza que arrisca a vida no mar para escapar da morte por inanição. Como se sente no epicentro dessa tragédia, mas, ao mesmo tempo, no outro lado do vasto oceano, que não nos protege?
Marina – Apesar de nunca mais ter conseguido regressar à Eritreia, a tragédia que nos chega dia a dia pela mídia me envolve de forma pessoal. Não só nasci em Asmara, capital da Eritreia, como morei em Trípoli, na Líbia. E a Líbia é ponto preferencial como saída para o Mediterrâneo. Os eritreus migrantes, não só por pobreza extrema, como para escapar a uma ditadura feroz, atravessam o Congo, o deserto e a Líbia para chegar à costa. Ao longo do caminho são escravizados, maltratados, passam fome, trabalham duro para juntar o dinheiro que pagarão aos atravessadores humanos, sem nenhuma certeza de chegar à Europa – e mais sofrem as mulheres, submetidas a estupros e prostituídas. Quando leio as notícias que ecoam os nomes da minha infância, não me sinto “do outro lado do vasto oceano”, eu me sinto africana, como nasci, e me sinto italiana, como fui criada, esperando a chegada dos barcos vindos do outro lado do Mediterrâneo, que vai ficando cheio de cadáveres.
Marina e Arduíno, ator como o pai, Manfredo, com pinta de galã e esportista, quando crianças. Foto: Acervo pessoal
N – Como a senhora se situa na grande discussão global dos refugiados asiáticos e africanos, que virou a Europa pelo avesso, desafiando velhos padrões clássicos da democracia burguesa e tradições institucionais milenares, herdadas de João Sem Terra, para agora desembarcar no outro lado do Atlântico, modificando até a divisão geopolítica do império ianque, ao fazer emergir um conservadorismo frio e brutal, que alguns apressadinhos confundem com o velho fascismo de Benito?
M– Fiz uma conferência sobre isso no mês passado, em Curitiba, “linkando” livros e diversidade. E me parece claro que no futuro nossa era não ficará conhecida pelos avanços tecnológicos – que começaram no século 19 com a primeira lâmpada elétrica! – mas como a era das grandes migrações. Pois são elas que, como quando asiáticos atravessaram o estreito de Behring e povoaram a América, mudarão a face do mundo. Não só nas cores da pele – já está previsto que em menos de 50 anos os louros brancos não serão mais a população majoritária nos EUA -, mas nos códigos de comportamento. Essa mudança já começou na literatura e na arte, na dança e na música. Quem diria, na década de 50, quando as americanas usavam cinta, que os antigos quackers aplaudiriam a gloriosa geografia glútea de Jennifer Lopes e Beyoncé? Os países ricos alardeiam sua abastança, mostram ao mundo a bela vida que se vive em suas cidades. É uma estratégia de mercado para vender produtos. Que chega aos países pobres, às aldeias miseráveis, e acende o desejo dos mais ousados. Toda terra de abastança é uma terra prometida. E todo ser humano tem direito à busca pela felicidade, como escrito na Declaração de Independência dos Estados Unidos, e devidamente esquecido.
Foto do passaporte da mãe de Marina, documento com o qual elas e Arduíno entraram no Brasil em 1948. Foto: Acervo pessoal
N – Assim como a questão dos refugiados, outro tema que ecoa hoje ainda mais que nos tempos de Betty Friedan e da incineração dos sutiãs, tratados como se fossem correntes escravistas nos anos 60, o feminismo – agora pomposamente tratado como empoderamento da mulher – é outro ponto cardeal de uma nova rebelião. Como ser humano do sexo feminino, dotada do dom de tratar sentimentos e emoções em palavras em prosa ou verso, a senhora percebe o que distingue esse novo tipo de luta feminina do tempo épico das sufragetes pelejando pelo direito cidadão elementar ao voto e o dos happenings de seios de fora da segunda metade do século passado?
M– Sou mais do que um “ser humano do sexo feminino”, sou uma feminista histórica. E a rebelião não é nova. O que nos distingue das sufragetes é justamente o fato de elas terem existido, assim como Simone de Beauvoir, ou Betty Friedan, ou Julia Lopes de Almeida, para pavimentar nosso caminho. Não se avança no presente desconhecendo o passado. Sem a conquista do voto feminino, plantada pelas sufragetes, não só seria obsceno falar em democracia, como seria impossível lutar, hoje, por maior presença feminina na política. Surpreendentemente, vem da Etiópia – outro de meus países africanos, porque quando nasci formava, juntamente com a Eritreia, a Abissínia – um belo exemplo: o primeiro-ministro Abiy Ahmed escolheu entre mulheres qualificadas a metade do seu Ministério. O empoderamento feminino é isso, distribuir o poder, ou a liderança, de acordo com a capacidade e não obedecendo a princípios preconceituosos baseados em gênero.
Marina na redação do Jornal do Brasil na avenida Rio Branco, no centro do Rio, no final dos anos 60, ditos rebeldes. Foto: Acervo pessoal
N – Em texto publicado no caderno Ela, do Globo, de domingo 16 de dezembro, a acadêmica Nélida Piñon, de origem galega e vivência no Rio, Nova York e agora Lisboa, encontrou na famosa sentença de Gustave Flaubert Emma, c’est moi (Emma sou eu”),referindo-se, é claro, à protagonista de seu clássico Madame Bovary, como sendo a definição sintética deste neofeminismo contemporâneo. Como Nélida, no ponto extrema da escala Richter deste terremoto, a senhora também se sente assim meio como um “palimpsesto do mundo”?
M– Sou mais modesta nessa questão. Não tinha em mim nenhum texto anteriormente escrito que devesse ser apagado. Não venho de uma família tradicional que me incutisse princípios tradicionais, nem foi tradicional a minha infância. Sou de uma família de artistas. A partir do momento em que comecei a pensar na identidade feminina, no lugar da mulher no mundo, dei início à escrita do meu pergaminho. Que segue até hoje, porque as situações mudam, os pensamentos envelhecem, e a cada momento é necessário repensar – sem apagar, porém, o que havia sido escrito. À famosíssima frase de Flaubert citada por minha cara amiga Nélida oponho outra menos conhecida, porque menos altissonante, escrita por ele em carta de 1857: “Madame Bovary não tem nada que seja verdade. É uma história totalmente inventada, não botei nela nenhum dos meus sentimentos e nada da minha vida”. Como diz Dacia Maraini no seu belíssimo ensaio Cercando Emma (Procurando Emma), se Flaubert fosse mesmo Emma, não a teria castigado com envenenamento tão lento e tão doloroso.

N – A senhora também, como Nélida, tem no seu cabedal textual o longevo convívio com o jeito carioca de ser. A sua relação sentimental com São Sebastião do Rio de Janeiro sofreu alguma modificação – relevante ou, pelo menos, perceptível – após ter passado vários anos de sua vida adulta na condição de vítima da rapina de gestões públicas geridas por ladravazes cínicos, cruéis e incapazes de amar uma cidade propícia a ser festejada, como é essa onde a senhora celebra sua maturidade?
R– Comecei a ser carioca em 1948, pouco antes da gloriosa década de 50. Ainda havia bondes e todos os carros eram pretos. O Rio era então, parafraseando a poeta americana Elizabeth Bishop, uma geografia maravilhosa para uma cidade que se podia amar. Hoje, para amar o Rio seria necessária uma cegueira social desmedida. Olho da minha janela e vejo a comunidade lá adiante crescer dia a dia, ocupando o lugar da mata. E sei que lá não há esgoto, a água não é potável, e que as vielas estreitas favorecem o surgir de doenças e o multiplicar-se de gangues de traficantes ou milicianos. Não sou a única a ver esse crescimento. O poder constituído também vê e nada faz. É duro amar uma cidade entregue a si mesma.
Marina ganhou o Prêmio Jabuti de ficção com o livro infantil Breve História de um Pequeno Amor, em 2014. Foto: JF Diório/Estadão
N – A duas semanas do fim da intervenção militar na Segurança do Rio, qual é sua opinião sobre os efeitos por ela produzidos na vida dos cariocas desprotegidos pelo Estado, seja nos morros, dominados por milicianos e traficantes, seja no asfalto,sequestrado pelo tráfico de drogas e de armas e pelas garras longas da rapina estatal?
R– Seria mais justo perguntar onde estaríamos se a intervenção militar não tivesse ocorrido. Ou perguntar aos mais diretamente atingidos, aos habitantes das zonas de confronto e aos que, a poder de armas, os dominam. Leio no  jornal opiniões conflitantes. E não sendo uma especialista em segurança,  me sentiria leviana se respondesse a essa pergunta.

N – Filha de Manfredo, ator brasileiro que nasceu em Roma, irmã de Arduíno, que seduziu a orla com sua forma apolínea de fruir a vida, e casada com um intelectual mineiro do porte de Affonso Romano de Sant’Anna, autor do poema Que País É Este?, que traduz como raros textos a identidade brasileira, a senhora sente-se capacitada a prever se esta pátria generosa de nós todos sobreviverá às próprias mazelas, como chegou a parecer que o faria nos anos dourados e nos idos rebeldes, ou simplesmente se deixará afundar com elas, como tem parecido que acontecerá ultimamente?
M – Oh, sim! Certamente sobreviverá às próprias mazelas, como o tem feito desde sua fundação. Mas não creio que as supere num futuro razoavelmente próximo, aquele que nos haviam prometido como se já estivesse chegando. Continuará a viver com elas como sempre, queixando-se, entre avanços que nos abrem o sorriso e recuos que nos mergulham em pessimismo. E isso devido ao nosso próprio desenho cultural, à tradição arraigada de pôr o lucro individual adiante do bem coletivo, ao sentimento de abandono que leva ao “salve-se quem puder”.
Marina e Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira, autora de Perto do Coração Selvagem, na Galeria Geia, no Rio, em 1965. Foto: Acervo pessoal

N – Quais serão, a seu ver, as consequências, funestas ou profícuas, desta polarização que transforma a arena política, não no FlaFlu festejado por Nelson Rodrigues, tradutor dos códigos da alma suburbana da velha capital federal, mas numa rinha de galos cegos ferozes, carniceiros e impiedosos?
M – Não tenho a pretensão de prever um futuro que ainda está sendo construído. Polarizações já vivi muitas, aqui e alhures . A maioria, felizmente, se desfez no tempo e nas mudanças trazidas por ele. Mas outras houve que resolveram o conflito por meio de domínio e ditadura. Batalha sagrada de cada cidadão é impedir que se chegue a isso.
N – O Brasil contava com a Constituição como se ela pudesse ser a panaceia universal. Achava que o voto popular seria o xarope que estancaria todas as tosses. Esperava-se que a conquista do valor da moeda pacificasse as famílias, os ringues e as torcidas organizadas. E agora chegou a vez da fé cega, faca amolada. Que consequências essa crença trará?
M – De que Constituição, entre as sete que tivemos desde a Independência, estamos falando? Um país que muda tanto de Constituição em tão pouco tempo não pode acreditar nela como sendo uma panaceia universal. Recuperamos o voto popular, mas esquecemos de educar os eleitores para o seu exercício. E quando o valor da moeda decai e a insatisfação cresce, a porta se abre para o populismo. Não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Em boa parte do mundo as novas gerações – que não viveram o nazismo, o fascismo e as ditaduras sul-americanas -,  seduzidas pelo  consumo e sem condições de exercê-lo com plenitude, estão se deixando guiar por vozes que prometem cornucópias cheias.
“Comecei a ser carioca em 1948, pouco antes da gloriosa década de 50. Ainda havia bondes e todos os carros eram pretos”, conta Marina. Foto (1991): Acervo pessoal
N – Das muitas frases que a senhora escreveu e que caíram no gosto generalizado do público, seja erudito, seja semialfabetizado, a mais marcante talvez seja “a gente se acostuma com tudo”. Será que a gente terá capacidade de se acostumar com o que vem por aí, hein?
M – Muita gente terá. Há sempre uma qualidade notável de gente que se acostuma com aquilo que a situação oferece, mesmo se torpe. Mas a frase completa da crônica escrita no Jornal do Brasil, em final de 60, é: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia”.
Marina descreve o Rio de hoje: “Olho da minha janela e vejo a comunidade lá adiante crescer dia a dia, ocupando o lugar da mata”. Foto: Fábio Motta/Estadão