segunda-feira, 2 de junho de 2014

Rei Juan Carlos, que reinventou a monarquia e a fortaleceu, acabou sendo o grande responsável por sua queda de prestígio

A verdadeira causa de sua abdicação


Blog Ricardo Setti - Veja


O Rei Juan Carlos anuncia, pela TV, sua abdicação: as verdadeiras razões começam com uma caçada de elefantes, em março de 2012 (Foto: Casa de Su Majestad El Rey)
O Rei Juan Carlos anuncia, pela TV, sua abdicação: as verdadeiras razões começam com uma caçada de elefantes, em março de 2012 (Foto: Casa de Su Majestad El Rey)


Sim, o Rei Juan Carlos, da Espanha, tem problemas de saúde — sofreu 9 cirurgias ao longo da última década.

Sim, ele está há 39 anos como chefe de Estado e, aos 76 anos, é conveniente “abrir caminho a uma nova geração”.

Mas o real motivo de sua abdicação em favor do príncipe Felipe, 46 anos, não foi o primeiro item, muito comentado pela mídia internacional, nem o segundo, exposto pelo Rei em seu discurso transmitido hoje pela TV.

Juan Carlos caiu porque…

* depois de haver reconstruído a monarquia espanhola, com comportamento austero e reconhecido espírito público,

* depois de ter sido o fator crucial da passagem da Espanha para a democracia, após 36 anos da feroz ditadura do generalíssimo Francisco Franco (1936-1975),

* depois de ter abortado um golpe militar de extrema direita em 1981, como comandante supremo das Forças Armadas,

* depois de ter colaborado decisivamente para resolver sua última atuação decisiva foi na concessão a um consórcio espanhol, pela Arábia Saudita, da construção do trem de alta velocidade que ligará as cidades sagradas de Meca e Medina por 7 bilhões de euros (17,5 bilhões de reais),

O Rei e um amigo durante uma caçada em 2006, junto a um elefante morto apoiado no tronco de um baobá: o desastre foi a caçada que acabou vindo à tona, em 2012 (Foto: El Mundo)
O Rei e um amigo durante uma caçada em 2006, junto a um elefante morto apoiado no tronco de um baobá: o desastre foi a caçada que acabou vindo à tona, em 2012 (Foto: El Mundo)
protagonizou um episódio desmoralizante em abril de 2012: com a Espanha vivendo profunda crise econômica e social, deixou o país sigilosamente para uma caçada de elefantes em Botswana, na África, organizada por uma princesa alemã com a qual mantinha uma relação afetiva — a bela Corinna zu Sayn-Wittgenstein, 30 anos mais jovem — e tudo acabou vindo à tona porque Juan Carlos fraturou o quadril em razão de uma queda sofrida no acampamento de caça.

O incidente fez vir à tona não apenas a leviandade real de ir divertir-se na África num momento em que o país estava no fundo do poço, mas o absurdo de ele, presidente de honra de uma das mais importantes organizações pró-natureza do mundo, o World Wildlife Fund (WWF), estar caçando elefantes (mesmo que a legislação do país africano libere a atividade, sob determinadas condições) — e, para completar, ao lado da bela princesa alemã de cuja mera existência pouca gente suspeitava.


Juan Carlos com a princesa Corinna, em solenidade pública: fator-chave no desabamento do prestígio do Rei (Foto: rp-online.de)
Juan Carlos com a princesa Corinna, em solenidade pública: fator-chave no desabamento do prestígio do Rei (Foto: rp-online.de)
 
 
“A Espanha, imersa em profunda crise econômica e de credibilidade, poderia passar sem essa. O Rei, figura invariavelmente discreta e comedida, comandante supremo das Forças Armadas e chefe de Estado respeitado, mais ainda. O episódio arranha sua imagem de forma dificilmente reversível.”

Não ajudaram em nada a monarquia as denúncias, ora na Justiça, contra um dos genros do Rei, Iñaki Urdangarín — um bem apessoado ex-capitão da seleção espanhola de handebol, esporte muito popular no país, filho bem nascido de um empresário basco e pai de quatro netos de Juan Carlos –, acusado de desvio de milhões de euros de uma fundação sem fins lucrativos que ele presidia.

Alguns documentos em poder da Justiça demonstrariam que ele envolveu a própria esposa, a infanta Cristina, filha caçula do Rei, em suas maracutaias.

Ainda não se comprovou se Cristina sabia das irregularidades, mas a coisa toda bateu duro na família real.

Ao sucessor de Juan Carlos, o príncipe das Astúrias, Felipe de Borbón, caberá uma tarefa muito difícil. Jogam a seu favor sua sólida formação pessoal, o fato de ser, hoje, a figura mais popular da família real, sua independência em relação aos pais na crucial questão do casamento — fugiu de vários arranjos matrimoniais para, enfim, casar-se com alguém de sua escolha, a jornalista Letizia Ortiz, plebeia, neta de um taxista e divorciada, com quem teve duas filhas – e uma correção pessoal inquestionável: nem mesmo a imprensa de fofocas espanhola, que está entre as mais maldosas do planeta, conseguiu encontrar um ponto vulnerável no futuro Rei Felipe VI.

Mesmo assim, Felipe receberá uma herança pesadíssima, e em seus ombros repousará boa parte do destino da monarquia constitucional espanhola que, segundo enquete publicada pelo jornal El País, vive seu ponto mais baixo em aprovação popular nos últimos 20 anos.