sexta-feira, 5 de setembro de 2025

'Teatro Supremo', por Cristyan Costa e Silvio Navarro

Dois anos e meio depois do tumulto de 8 de janeiro em Brasília, o STF abre as cortinas para o mais lamentável espetáculo contra o Direito e a democracia já encenado no país — uma farsa na qual o ministro Alexandre de Moraes desempenha todos os papéis 


Alexandre de Moraes e a estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, em Brasília | Foto: Montagem Revista Oeste/Jorge Silva, Reuters/Gabriel Gabino, Shutterstock 


Na manhã de terça-feira, 2, o Supremo Tribunal Federal começou a escrever as piores páginas de sua própria história, que começou em 22 de junho de 1890, quando o regime republicano, o federalismo e a Justiça nacional tomaram forma no Brasil. A Constituição promulgada no ano seguinte dedicou ao Supremo os artigos 55 e 59. Outras Constituições vieram depois e, quando a democracia foi restabelecida, em 1988, a Corte passou a ser chamada de “guardiã das leis”. Tudo isso foi rasgado nesta semana. A pior composição possível do STF decidiu armar um teatro para julgar um crime que não aconteceu: o golpe de 8 de janeiro de 2023. O país assistiu a um espetáculo de mau gosto — e as leis foram pisoteadas, ao vivo, por dois dias. 

A ação penal que leva o número 2668, com oito réus acusados de planejar o fim da democracia com o uso de estilingues, é a maior vergonha do Judiciário brasileiro. O julgamento ocorre na Primeira Turma do STF, formada por Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux. Não se sabe o tamanho das penas que devem ser impostas, mas, em alguns casos, podem chegar a décadas. Trata-se de um processo que fica ainda pior porque os primeiros réus formam justamente o chamado “núcleo crucial” da trama fantasiosa — ou seja, essas páginas deveriam guardar algo robusto para sustentar todo o resto da “trama golpista” em pé. 

Nada disso aconteceu. Aliás, a denúncia lida pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, não conseguiu ligar o acusado número 1 do quase golpe, Jair Bolsonaro, à fatídica tarde de 8 de janeiro. Gonet até tentou cumprir o papel para o qual foi escalado, mas o ministro Alexandre de Moraes não permitiu que ninguém mais atuasse na peça: ele conduziu a acusação da qual é parte — vítima de um plano hollywoodiano de sequestro e enforcamento em praça pública —, presidiu o inquérito, mandou prender e multar quem quis, chefiou um gabinete clandestino de espionagem e agora é juiz da causa.


O ministro do STF, Alexandre de Moraes, e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, em Brasília | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil 


O conjunto probatório é vazio. O advogado José Luis Oliveira Lima, que defende o general Braga Netto, foi ao ponto em sua sustentação no miniplenário da Primeira Turma: “A acusação fez um discurso muito bonito, muito bem lido, evidentemente inteligente, porque estamos falando do procurador-geral da República, mas não tem prova. É um discurso, uma narrativa acusatória, e não se pode condenar alguém com base numa narrativa”. 

Alguns pontos foram centrais nos dois dias de julgamento desta semana, que será retomado na próxima terça-feira. O primeiro problema — e o mais agudo — foi a reclamação generalizada dos advogados de falta de tempo e acesso ao imenso material probatório. Celso Vilardi, que defende Jair Bolsonaro, foi assertivo ao afirmar que “não houve paridade de armas”. De fato, a corrida contra o calendário promovida por Alexandre de Moraes chama a atenção: a fase de interrogatórios ocorreu em maio, e o julgamento agora avança a galope quando setembro chegou. No caso da chamada “instrução processual”, o prazo para a defesa se manifestar foi de 15 dias; e outros 15 dias para o Ministério Público. 

“Com 34 anos de advocacia, tenho de dizer que não conheço este processo, por não ter tido acesso integral a ele”, desabafou. “São bilhões de documentos, em uma instrução de menos de 15 dias. Não pude sequer interpelar a cadeia de custódia, algo comum.” O último julgamento dessa envergadura na Suprema Corte, cujos personagens envolvidos e o enredo impactaram a vida política do país, foi o Mensalão (ação penal 470). A partir de 2 de agosto de 2012, o brasileiro acostumou-se a parar algumas horas do dia para conhecer quem eram os 11 ministros que vestiam toga preta, e o que cada um deles pensava sobre compra de votos de deputados, saques na boca do caixa de bancos corruptos e malas com dinheiro vivo. Foram 53 sessões, divididas em 138 dias. Depois, a ação penal ainda se arrastou por meses até a análise dos embargos infringentes e declaratórios — modalidades de recursos. 

Detalhe: como o caso envolvia autoridades de governo e políticos importantes, jamais foi cogitado que seria analisado por uma Turma do STF, mas, sim, pelo plenário, com transmissão pela TV Justiça. Daquela época, quatro ministros ainda estão na Corte: Cármen Lúcia, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes — os dois primeiros vão votar no episódio do dia 8 de janeiro. O atual presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, assumiu a toga em 2013, mas o antecessor, Carlos Ayres Britto, havia votado no Mensalão antes de se aposentar.


Gilmar Mendes | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil 


Farsa escancarada 

Outro ponto grave na peça encenada nesta semana foi apontado pelo advogado Demóstenes Torres, profundo conhecedor dos corredores de Brasília, que, aliás, teve o mandato de senador cassado um mês antes do julgamento do Mensalão começar. Demóstenes atuou no Ministério Público antes de virar político. Ele mostrou que Paulo Gonet introduziu provas depois de ter formalizado a denúncia, o que não existe no ordenamento jurídico — no máximo, ele poderia pedir um aditamento. 

“Eu alego que o procurador-geral da República feriu o princípio da congruência, porque nas alegações finais ele aponta dois novos fatos, que não existem na denúncia, e o Supremo Tribunal Federal, no artigo 384 do Código de Processo Penal, diz claramente que não é possível que o réu se defenda de algo que não lhe foi imputado”, disse. 

“Se tiver que imputar dois novos fatos, tem que fazer o aditamento à denúncia, ou o Supremo tem que pedir para desconsiderar, no julgamento, esses dois fatos que são novos.” De fato, o julgamento — independentemente do desfecho previsível ou de alguma reviravolta — é recheado de ilegalidades. Por exemplo: Alexandre de Moraes antecipou seu juízo. 

O jornal Folha de S. Paulo classificou assim: “Em atitude inusual no mundo jurídico, mas que se tornou comum no atual julgamento, o ministro Alexandre de Moraes antecipou nesta terça-feira (2) parte do cerne do seu voto, que só deve ser lido na próxima semana”. Por que o ministro deu de ombros para o rito processual? O próprio jornal concluiu: “Moraes fez uma introdução de caráter político, com recados à pressão de Donald Trump e da família Bolsonaro”. Em resumo, o país assiste a um teatro político, com direito a cenas de deboche, piadas e sorrisos inoportunos. 


GloboNews - “Eu alego que o procurador-geral da República (Paulo Gonet) feriu o princípio da congruência, porque nas alegações finais ele aponta dois novos fatos, que não existe na denúncia, e o Supremo Tribunal Federal, no art. 384 do Código do Processe Penal, diz claramente que não é Mostrar mais


As sustentações orais das defesas, que vieram na sequência, mostraram que a narrativa construída pelo STF não resiste à luz dos fatos. Paulo Gonet não só incluiu elementos novos na denúncia, como também removeu outros que beneficiariam os réus. Foi o que mostrou o advogado Matheus Milanez, defensor do general Augusto Heleno, exchefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). A PGR suprimiu trechos importantes para prejudicar Heleno? Disse também que uma agenda descrita como material golpista foi encontrada na casa do militar. Não era nada além de um caderno com rascunhos pessoais. “Por que a PGR suprimiu esse fato, se estava claro o conteúdo da própria agenda?”, disse o advogado. 

Mais um caso: a defesa do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que ocupou o cargo de diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), apresentou argumentos semelhantes e disse que a PGR considerou como provas documentos de caráter pessoal — de novo, anotações aleatórias a respeito de fatos cotidianos, sem qualquer ligação com a  investigação da Polícia Federal. Outro problema: foi utilizado conteúdo de outro processo, uma petição em andamento no STF, para complementar os trabalhos na ação do “golpe”. Tudo se mistura sigilosamente nos inquéritos tentaculares de Moraes, que ninguém conhece nem sabe ao certo onde estão hospedados.


A maioria dos advogados citou a delação do tenente-coronel Mauro Cid, exajudante de ordens do então presidente. Trata-se da coluna dorsal da acusação, embora Cid tenha sido flagrado em conversas telefônicas dizendo ter feito afirmações debaixo de coerção. A revista Veja revelou o caso, e depois ele foi novamente exposto, repetindo a farsa, em conversas no perfil do Instagram de sua mulher — o que deveria acarretar a perda do benefício da delação. “Cid prestou depoimento 16 vezes e mudou sua versão em todas elas”, disse o advogado Celso Vilardi. “Esse homem não é confiável, pois rompeu a delação formalmente, mentiu e pôs sua voluntariedade em xeque. Deveria ser anulada.”


Restava ainda aos defensores tratar da “minuta do golpe”, uma folha de papel sem assinatura nem valor legal. Se a intenção de Bolsonaro fosse mesmo dar um golpe de farda, com tanques nas ruas e pólvora, por que ele autorizou formalmente a transição de poder e ajudou o recém-nomeado ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, de quem é amigo dos tempos de Câmara dos Deputados, a nomear os novos comandantes militares?

 

O tenente-coronel Mauro Cid, uma das testemunhas do julgamento sobre o suposto golpe de 8 de janeiro de 2023 | Foto: Ton Molina/STF 

Eumar Novacki, defensor do ex-secretário de Segurança do Distrito Federal Anderson Torres, lembrou que a tal “minuta” jamais passou pelas mãos do núcleo crucial da trama fantasiosa. “Essa minuta apócrifa encontrada está na internet até hoje”, disse Novacki. “Foi dado a ela um peso descomunal de prova, mas que, no mundo dos fatos, não tem valor algum.” 

É exatamente disso que se trata: da diferença entre o que existe no mundo dos fatos, como disse o advogado, e o que é encenado em cima do palco. Fato e ficção são coisas diferentes. Infelizmente, para a história do Judiciário e da democracia brasileira, o palco é o Supremo Tribunal Federal.


Alexandre de Moraes, Lula e Luís Roberto Barroso no desfile de 7 de Setembro – Brasília – 07/09/2024 | Foto: Fabio RodriguesPozzebom 

Cristyan Costa e Silvio Navarro - Revista Oeste