Nelson Rodrigues acertou: os idiotas são tantos que chegaram ao poder
E m dezembro de 2010, perguntei à crítica teatral Bárbara Heliodora, especialista em William Shakespeare, se algum autor brasileiro tinha chances de reprisar a façanha do maior dos dramaturgos: escrever peças que, por não envelhecerem, seguem atraindo plateias alguns séculos depois da apresentação de estreia.
— Nelson Rodrigues — respondeu de bate-pronto a entrevistada do Roda Viva.
Bárbara Heliodora acertou, vivem reafirmando as frequentes encenações de Vestido de Noiva, Perdoa-me por me Traíres, Bonitinha, mas Ordinária e outras erupções de genialidade já septuagenárias. Várias fizeram sucesso no cinema e na televisão. E ninguém mais duvida de que, daqui a muito tempo, descendentes dos nossos tetranetos estarão acompanhando, fascinados como seus ancestrais, a trama de peças como Beijo no Asfalto ou Boca de Ouro.
Há dias, topei com um exemplar da mais recente edição de A Cabra Vadia, coletânea de crônicas escritas em 1968 e 1969. Bastou a releitura de O ex-covarde, que abre o livro, para constatar que a previsão de Bárbara Heliodora pode ser estendida ao colunista Nelson Rodrigues. Passados quase 60 anos, os textos publicados no jornal O Globo parecem escritos ontem. Fazem mais que exumar, intacto, o país da segunda metade do século 20. Também informam que o país de hoje é um filhote problemático do que o cronista enxergou com aflitiva nitidez. É a cara do pai.
Aquela coluna raramente tratava de questões políticas até que, no início de 1968, multidões de jovens resolveram impor, com manifestações de protesto em escala mundial, uma regra tão ousada quanto inviável: é proibido proibir. Nelson resolveu entrar na história, gostou da briga e comprou-a de vez. Intrigado, um amigo abordou-o na redação do jornal para desfazer o mistério: o que lhe dera na telha para incluir entre suas obsessões temas que nunca pareceram interessá-lo? “Eu sou um ex-covarde”, começou a explicação, reproduzida na coluna do dia seguinte. “Por toda parte, só vemos pulhas. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a TV. Quase tudo e quase todos exalam abjeção”.
O belicoso início da confissão engordou o grupo de ouvintes. “O que existe por trás de tamanha degradação é o medo”, foi em frente Nelson Rodrigues. “Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. O medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total. Sim, os pais têm medo dos filhos; os mestres, dos alunos. É preciso pluralizar: não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finos e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário”.
Havia sido o medo que induzira um veterano pensador católico a renegar os 2 mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a “Grande Revolução Russa”, exemplificou com aspas debochadas. “Cuba é uma Paquetá”, prosseguiu. “Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongues, cubanos, chineses”. O depoente fora vítima desse temor paralisante. “Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o antihomem. Achava que o capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor que o socialismo. Tive vários medos, e já não os tenho”. Depois de dois parágrafos que resumem os muitos episódios trágicos vividos por Nelson, o relato chega ao clímax: “Meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e dizer de fronte alta: sou um ex-covarde. Se outros seguem as instruções de Cuba, e se outros mais querem odiar, matar ou morrer, posso chamá-los, sem nenhum medo, de jovens canalhas”.
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Morto em 1980, mesmo ano em que o PT nasceu, Nelson Rodrigues pareceu prever que a sigla juntaria seus mais famosos personagens a outra espécie em acelerada expansão. “Os idiotas vão tomar conta do mundo”, avisou. “Não pela capacidade, mas pela quantidade. Os idiotas são muitos, e estão em toda parte”. No Brasil, primeiro tomaram conta do porão do navio pirata atulhado de padres de passeata, freiras de minissaia, intelectuais inéditos, vizinhas gordas e patuscas, grã-finas de narinas de cadáver, amantes espirituais de Che Guevara, almirantes adestrados em Paquetá, cafajestes que roubam beijos da cunhada e outras criaturas concebidas pelo dramaturgo genial. Na virada do século, idiotas de verdade e personagens saídos da ficção assumiram o controle da embarcação que acabou atracando num lago de Brasília
Liderados por um fora da lei, que passou 500 dias na cadeia e nenhum numa sala de aula, hoje governam o Brasil em parceria com napoleões-de-toga entrincheirados no Supremo Tribunal Federal — e com o apoio militante do jornalismo estatizado. Nelson morreu sem conhecer essa abjeção produzida pela Ditadura do Judiciário. Não existe mais o patrão que, numa sala de bom tamanho situada alguns andares acima, cobrava do diretor de redação o devido respeito à linha editorial. Foi substituído por burocratas que só cuidam de manter desobstruídos os canais por onde chega a dinheirama da Secom. Também sumiu o diretor de redação que cuidava de cobrar de redatores e repórteres o devido respeito aos fatos. Livres de vigilância, jovens e idosos igualmente esquerdistas determinam o que vai sair e o que ficará escondido, o que é certo e o que é errado. Pelos critérios da meritocracia, esses integrantes do chamado baixo clero estariam no olho da rua. Nestes tempos estranhos, fazem o diabo nas redações.
No Brasil de 1968, Nelson Rodrigues se espantava com a subserviência de marmanjos confrontados com palavras de ordem ditadas por jovens. Nestes tempos estranhos, esquerdistas de todas as idades se ajoelham aos pés de Lula, um octogenário analfabeto, e engolem sem engasgos ordens ilegais expedidas em mau português por Alexandre de Moraes. Cínicos patológicos, jornalistas estatizados se recusam a enxergar qualquer bandalheira que comprometa as metas essenciais da organização criminosa: prender Jair Bolsonaro e premiar Lula com mais um mandato. Mesmo no Brasil, tal plano já teria sido implodido pela descoberta das bandalheiras consumadas por Moraes com a ajuda de juízes-auxiliares e do ex-assessor Eduardo Tagliaferro. Hoje refugiado na Itália, Tagliaferro decidiu entregar a alguns veículos de imprensa pilhas de provas de delinquências.
A Folha de S. Paulo interrompeu a publicação de reportagens quando a
série ainda engatinhava. A CNN não decidiu o que fazer com o material
obtido. A revista Veja não quis sequer examinar o lote que lhe foi
oferecido. Oeste publicou tudo o que conseguiu, está pronta para
divulgar o que Tagliaferro talvez mantenha em sigilo e também
investiga o escândalo por conta própria. Jornalistas genuínos amam a
verdade acima de todas as coisas. É perda de tempo brigar com fatos.
E os brasileiros não podem ter suprimido o direito à informação
correta.
Augusto Nunes - Revista Oeste