terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Turismo sem Fronteiras: o fracasso do programa de internacionalização acadêmica

 

O Ciência sem Fronteiras (CsF) foi apresentado como uma iniciativa grandiosa. Criado em 2011 pelos Ministérios da Educação (MEC) e da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), por meio da Capes e do CNPq, o programa tinha como objetivo promover a expansão, a internacionalização e a competitividade da ciência e tecnologia brasileiras. Em sua versão oficial, o programa foi apresentado como um marco capaz de redefinir o rumo da pesquisa nacional.

A meta era ambiciosa. Em quatro anos, seriam concedidas até 101 mil bolsas para enviar estudantes de graduação e pós-graduação ao exterior, colocando-os em contato com instituições consideradas tecnologicamente avançadas. Além disso, o plano incluía atrair pesquisadores estrangeiros, estimular parcerias internacionais e oferecer treinamento especializado para profissionais do setor produtivo em áreas classificadas como estratégicas.

O governo alimentava a expectativa de que milhares de estudantes voltariam do exterior altamente qualificados, trazendo conhecimento, inovação e soluções suficientes para colocar o Brasil no patamar das nações mais desenvolvidas.

Era a velha ilusão tecnocrática: imaginar que despejar bilhões em bolsas geraria, por si só, progresso científico e inovação.

Mas a realidade logo se impôs. Em 2015, o programa foi congelado. Em 2017, oficialmente encerrado. O Ministério da Educação alegou que o custo se tornou insustentável e que o retorno era muito inferior ao esperado. A justificativa representou uma confissão discreta de que a engenharia social entregou bem menos do que prometera e que a propaganda havia sido muito mais robusta do que os resultados concretos.

Agora, com a distância de alguns anos, surge a pergunta inevitável: como avaliar o Ciência sem Fronteiras à luz do que realmente produziu? Separar o brilho do marketing da substância dos resultados é essencial para entender o programa como ele foi de fato e não como foi anunciado. É a partir desse ponto que uma análise honesta se torna possível.

O otimismo artificial acabou influenciando até parte da produção acadêmica sobre o tema. Em grupos de pesquisa, relatos apontam um viés claro em querer enxergar bons resultados a qualquer custo. Não é coincidência que poucos trabalhos se dedicaram a avaliar o programa de forma rigorosa.

Os críticos do Ciência sem Fronteiras logo apontaram um problema estrutural. Embora o programa tenha sido vendido como relevante, sua eficácia foi baixa. Não cumpriu as metas previstas em várias modalidades de bolsas, apresentou forte concentração regional e revelou uma eficiência duvidosa diante dos custos bilionários envolvidos. Em termos econômicos, era o clássico exemplo de uma política pública que consome muito e entrega pouco.

Outros observadores lembram que o programa nasceu às pressas. Poucos meses separaram o anúncio na imprensa da implementação nas universidades. O governo federal tratou a iniciativa como se estivesse montando um espetáculo, não uma política séria. Apesar de ser apresentado como o maior programa de mobilidade estudantil da história do país, nem a CAPES, nem o CNPq, nem as instituições de ensino superior participaram das etapas essenciais do processo: diagnóstico do problema, formulação das diretrizes e tomada de decisão. Foram chamados apenas para executar as diretrizes oficiais.

Os números do programa ajudam a ilustrar a dimensão do problema. O Ciência sem Fronteiras foi anunciado com um gasto previsto de 3 bilhões de reais. O gasto real ultrapassou 13,2 bilhões em 2017 e alcançou quase 20 bilhões com o pagamento das bolsas remanescentes, quase sete vezes o valor anunciado.

Até janeiro de 2016, haviam sido implementadas 92.880 bolsas. Desse total, 79% eram de graduação sanduíche, a modalidade menos relacionada à pesquisa científica e que, paradoxalmente, consumiu a maior parte dos recursos. Enquanto isso, as modalidades realmente voltadas à cooperação científica e à atração de pesquisadores estrangeiros atingiram apenas 25% e 39% de suas metas. O programa dizia querer ciência, mas financiava estadias de graduação.

O custo por aluno variou entre 45 mil e 321 mil reais, dependendo da modalidade. E mais da metade do dinheiro foi parar diretamente em universidades estrangeiras, sem que houvesse qualquer negociação de valores. As instituições estrangeiras, muitas delas medianas, rapidamente perceberam a oportunidade de inflar preços sem restrição alguma.

O problema vai além do valor absoluto. O programa consumiu, sozinho, 15 vezes o orçamento empenhado do CNPq em 2016, e o equivalente a 50% do orçamento da CAPES em 2015. O Tribunal de Contas da União apontou ainda um fator gravíssimo: grande parte das bolsas foi financiada com recursos do FNDCT, um fundo que deveria ser destinado a pesquisa e desenvolvimento, não a formação de estudantes de graduação no exterior. Em 2014, mais de um terço dos recursos do fundo foi desviado para o programa. Em 2015, o percentual subiu para 40%.

A literatura especializada já destacou uma lista longa de falhas. O planejamento era frágil. As informações sobre o programa eram confusas. Não houve alinhamento prévio com as universidades. Os estudantes receberam pouco ou nenhum suporte. O domínio de idiomas estrangeiros era insuficiente. O aproveitamento acadêmico no exterior, baixo. Muitos não conseguiram entrar nas universidades de ponta, enquanto o Brasil não conseguia atrair pesquisadores estrangeiros, porque o país simplesmente não oferecia condições mínimas de interesse. O programa era passivo, unilateral, pensado apenas para enviar alunos, não para receber. Era mobilidade acadêmica de mão única.

O desenho da política também se mostrou inconsistente com os próprios objetivos anunciados. O decreto falava em aumentar a visibilidade da pesquisa brasileira, ampliar a cooperação científica e atrair pesquisadores. Entretanto, o programa não criou mecanismos para alcançar essas metas.

E o motivo é simples: quase 80% de todas as bolsas foram destinadas à graduação sanduíche, uma modalidade que não exigia produção científica nem no Brasil, nem no exterior. Em outras palavras, o governo dizia que queria ciência, mas acabou financiando o turismo acadêmico.

Não é surpresa que o programa tenha produzido tão pouco. Como Murray Rothbard explicou, quando o estado assume o papel de planejador sem compreender incentivos, ele cria políticas desconectadas da realidade. Desenha metas impossíveis, distribui recursos de forma irracional e depois se espanta com o fracasso. O Ciência sem Fronteiras seguiu esse roteiro com precisão.

Se os documentos oficiais já revelam a fragilidade do Ciência sem Fronteiras, os relatos de professores e coordenadores de curso deixam o cenário ainda mais explícito. Muitos descrevem o programa como uma coleção de improvisos, desperdícios e decisões tomadas às pressas.

Um docente de uma universidade de São Paulo chamou a atenção para algo insólito: o programa pretendia enviar estudantes para universidades de ponta, mas um de seus principais destinos acabou sendo Portugal. Escolhido não pela excelência acadêmica, mas pela facilidade linguística. A prioridade não era garantir que o estudante tivesse condições reais de acompanhar o conteúdo. A prioridade era preencher vagas e inflar estatísticas.

Relatos de coordenadores de cursos universitários reforçam o grau de improvisação que marcou o programa. Diversos alunos que acumulavam reprovações, inclusive em disciplinas básicas, foram aprovados no Ciência sem Fronteiras. Professores relatam que grande parte dos estudantes vinha de universidades fracas no Brasil e era enviada para instituições igualmente fracas no exterior.

Com critérios frágeis e pressa política para inflar números, o programa se transformou em um atalho para estudantes pouco preparados, que eram enviados ao exterior sem domínio do idioma, sem maturidade acadêmica e sem condições reais de aproveitar a experiência. A consequência era previsível: desempenho baixo, oportunidades desperdiçadas e mais dinheiro público jogado fora.

Muitos estudantes não dominavam inglês, mas, ainda assim, foram enviados para países de língua inglesa. Para tentar contornar o problema, universidades brasileiras tiveram de oferecer cursos emergenciais de inglês, muitas vezes em poucos meses, sem qualquer chance de preparar adequadamente os alunos.

Professores que acompanharam o programa de perto relatam episódios que parecem anedotas. Um deles lembra que, em determinada universidade europeia, o “maior sucesso” do Ciência sem Fronteiras não foi um projeto de pesquisa, foi um grupo de pagode formado por bolsistas brasileiros.

Outro docente, que lidava com a Durham University, conta que o teste de proficiência em inglês foi rebaixado a pedido do Brasil até atingir um nível tão baixo que, segundo ele, “até um chimpanzé seria aprovado”.

Uma professora relatou alunos que não cursaram uma única disciplina, mas usaram o ano de bolsa para viajar pela Europa. Há ainda quem fale em verdadeira “lavagem acadêmica”: bolsas sem rastreabilidade, matrículas apenas formais e presença inexistente nas aulas.

É por isso que muitos docentes passaram a chamar o Ciência sem Fronteiras de “Turismo Sem Fronteiras.” E não sem razão.

Um professor lembra com ironia de quando suas turmas de Resistência dos Materiais ficaram reduzidas a apenas três alunos. Até uma estudante que havia abandonado o curso decidiu voltar quando soube da “mamata”. Resultado: passou um ano e meio na Europa. Ela e vários colegas passaram praticamente todo o período tentando aprender inglês, sem conseguir aprovação nos testes. Não cursaram disciplina alguma. Transformaram o intercâmbio científico em um longo passeio.

Outra professora relata,

Eu me lembro que, na época, circulou um estudo mostrando que a China levou vinte anos para enviar trinta mil estudantes ao exterior. Foram duas décadas de preparo rigoroso, seleção criteriosa e objetivos claros. No Brasil, fizemos o oposto: transformamos o processo em uma farra. Quem quis, foi. Não houve filtro, nem estratégia, nem responsabilidade. O resultado é simples e doloroso: zero de retorno real para o país. Apenas mais uma aventura custosa bancada pelo contribuinte. A universidade em que estudei, a Texas A&M, não aceitou um único brasileiro pelo programa.

Um professor português que hoje leciona no Brasil contou uma cena reveladora. Em 2012, antes mesmo de assumir seu cargo na universidade, viu afixado na parede, em frente à sala do Pró-Reitor de Ensino, um cartaz enorme anunciando: “Agora já podes viajar!”. Era publicidade do Ciência sem Fronteiras. E os alunos, de fato, viajaram. Naquele dia, afirmou ele, teve a exata medida do que é o Ensino Superior brasileiro.

Ele continua,

A Universidade Lusíada de Lisboa l, onde fui professor até 2010, tinha uma graduação e uma pós muito conceituada. A China financiou cerca de vinte estudantes para cursarem a graduação completa ali. Mas não fez isso às pressas. Antes de chegarem a Portugal, esses jovens haviam passado meses aprendendo a falar, ler e escrever português corretamente. Eram enviados já prontos, disciplinados e conscientes da oportunidade que tinham nas mãos.

Outro professor descreve uma regra informal que observou ainda nos anos 1990, quando convivia com estudantes chineses: a “regra da sexta-feira”. Na biblioteca, os americanos nem apareciam. Os europeus iam embora após o almoço. Ele próprio permanecia até as cinco da tarde, junto de alguns indianos. Já os chineses ficavam. Viravam a noite estudando. A cena, repetida semana após semana, revelava a hierarquia de valores de cada cultura. “Educação é a mais alta prioridade na Ásia”, comenta.

Os relatos continuam. Um professor que orientou 21 doutorandos chineses afirma que 12 deles hoje são professores na China. “São os melhores aprendizes que um professor poderia querer”, diz. E completa: “É por isso que eles produzem o que o mundo inteiro consome em eletrônicos.” Outro docente que acompanhou um aluno chinês no curso de Engenharia Metalúrgica e de Materiais descreve sua postura: educado, humilde, pontual, dedicado, cumpridor das tarefas. No dia da defesa, toda a família estava presente. Ao final, os pais se curvaram diante do professor em sinal de respeito. Ele conclui: “São momentos assim que compõem a vida de um professor.”

Há quem destaque que, apesar do regime político chinês, o país carrega um legado cultural profundo — Confúcio, disciplina, tradição de estudos, academias antigas. Não é por acaso que alcançam excelência em tantas áreas.

E então vem a comparação amarga. Enquanto países asiáticos tratam educação como prioridade máxima, o Brasil parece preso à retórica vazia de sempre: “inclusão”, “combate ao fascismo”, “resistência”, “luta por narrativas”. Expressões repetidas como mantras ideológicos, incapazes de produzir qualquer avanço real.

Como sintetizou um professor, com a acidez típica de quem conhece os bastidores: “Enquanto eles formam os melhores estudantes do mundo, nós ‘incluímos’ nossos jovens numa poça gigante de merda.”

Enquanto isso, a classe acadêmica, na sua maioria, preferiu aplaudir em silêncio. Para muitos, criticar o programa significava enfrentar tabu ideológico. Como observou um professor: “politicamente, o PT faturou; academicamente, quase ninguém quis questionar.” A mistura de conveniência política e covardia intelectual ajudou a manter o programa intocado por muito tempo.

Os países que levam ciência a sério enviam seus melhores alunos para experiências integrais, exigem contrapartidas e estruturam políticas duradouras. Como vimos, a China manda seus estudantes cursarem graduações inteiras nos EUA e na Europa, frequentemente com a estratégia explícita de absorver conhecimento tecnológico e aplicá-lo industrialmente.

O Brasil, ao contrário, preferiu apostar em soluções improvisadas, pressa administrativa e critérios frouxos. Tudo financiado por um fundo que deveria fazer exatamente o oposto: promover pesquisa real.

Ao final, o que resta é o retrato fiel de um programa concebido para parecer grandioso, mas executado para gerar estatísticas infladas. Foi, como descreveu um dos professores: “uma política ruidosa, cara, mal planejada e desenhada para ganhar manchetes, não para produzir ciência”.

Em meio a esse cenário, surge a constatação incômoda, mas inevitável: o estado brasileiro não possui uma política séria de ciência e tecnologia. Tem apenas impulsos, modismos e projetos caros que começam com propaganda e terminam com frustração.

Os intelectuais sérios entendem que o país precisa de uma proposta baseada em mérito, responsabilidade, liberdade de pesquisa, competição institucional e incentivos corretos — não em programas de curto prazo moldados para capital político.