O ex-general venezuelano Hugo “El Pollo” Carvajal delata os comparsas do regime venezuelano que financiou ilegalmente campanhas eleitorais no Brasil e na América Latina
H á um furacão se armando na América do Norte e desta vez não se trata de “El Niño” e, sim, de “El Pollo”, ou “o frango”, em espanhol. É o apelido do ex-general venezuelano chamado Hugo Armando Carvajal, que caiu nas malhas da justiça dos Estados Unidos. No instante em que se defrontar com um juiz do Distrito Sul de Nova York para ouvir sua sentença no julgamento marcado para o dia 19 de novembro de 2025, Carvajal deve saber que valor foi dado às provas que entregou em seu acordo de colaboração com as autoridades norte-americanas. Para escapar da prisão perpétua, ou de uma pena que, aos 65 anos de idade, significará morrer na cadeia, Hugo “El Pollo” Carvajal terá de entregar muito mais do que a cabeça de seu antigo aliado, o ditador venezuelano Nicolás Maduro.
O superbigode, como Maduro se apelidou (“El Súper Bigote”), já está suficientemente desmoralizado perante o mundo livre por manter-se no poder depois de perder as eleições de 2024. Encurralado nas águas do Caribe por um cerco militar norte-americano, sob a acusação de liderar um cartel que fatura com o tráfico de drogas para os Estados Unidos, Maduro pode cair a qualquer momento, e portanto já não é um trunfo de tanta utilidade para Hugo Armando Carvajal Barrios. Seu cacife é conseguir provar que, como diretor de Inteligência Militar da Venezuela nos governos de Hugo Chávez e de Maduro, ele fez parte de uma grande rede de financiamento ilegal de campanhas eleitorais de candidatos de esquerda em vários países. A delação mira dois países europeus, Espanha e Itália, mas se concentra na América Latina. Fundador do Foro de São Paulo, movimento político que articulou em 1989 ao lado do falecido ditador cubano Fidel Castro, Lula e o país que ele governa pela terceira vez estão no centro do furacão Carvajal.
E quem é essa figura que, agora, faz a elite da esquerda latinoamericana prender a respiração? Em primeiro lugar, Carvajal é um discípulo de Hugo Chávez. Conheceu seu mestre ainda adolescente, e dele recebeu o apelido de “Pollo”, supostamente pela compleição física. Da camaradagem na academia militar venezuelana, evoluiu para uma aventura: seguir Chávez na malograda tentativa de golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Pérez em 1992. Ambos foram presos e, dois anos depois, libertados. Em 1999, com a chegada de Chávez ao Palácio Miraflores, desta vez pelo voto, “Pollo” Carvajal pôde, enfim, cantar de galo, alçado ao posto de diretor de Inteligência Militar do país aquinhoado com as maiores reservas de petróleo do mundo.
O dinheiro farto oriundo do petróleo inacreditavelmente abundante resultou em excessos já bastante estudados nos descaminhos da Venezuela na segunda metade do século 20, mas o chavismo fez um uso delirante de sua opulência no plano geopolítico, ao levar o sonho de construir uma “Pátria Grande” bolivariana a um colar de países latino-americanos, tingindo o mapa da região com o vermelho de governos de orientação socialista. Próximo de Chávez, Carvajal cumpriu com desvelo todas as missões, sublinhe-se “todas”, até que o governo de Bill Clinton o colocou na mira de Washington. Em 2008, Carvajal entrou na lista oficial de sancionados pelo governo norteamericano por ligações com o tráfico de armas e de drogas para sustentar a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
Esta sanção acabou pesando contra as pretensões de Carvajal de ser ungido como sucessor de Chávez em 2013, quando um câncer matou o comandante. Escolhido líder interino do país, Maduro se agarrou à cadeira presidencial e fechou o regime. Carvajal ainda seguiu como diretor de Inteligência Militar, mas com o teto muito baixo: já supunha que Maduro não admitiria sombras à sua liderança — nem Maduro e menos ainda o número 2 do novo líder, Diosdado Cabello, que ocupava, como homem forte do regime, a função que um dia ele próprio desempenhara sob Chávez.
Carvajal caiu em desgraça com o regime quando deixou a atividade militar e ingressou na política. Em 2017, como deputado, propôs uma transição negociada entre governo e oposição para evitar o que via como risco de guerra civil. Foi ignorado. Decidiu então romper publicamente com o regime em 2019, quando, em entrevista ao New York Times, conclamou seus companheiros de caserna a apoiar a transferência do poder ao presidente do Congresso venezuelano, deputado Juan Guaidó. Maduro abriu um processo por traição à pátria, e Carvajal fugiu com identidade falsa para a Espanha, onde pouco tempo depois foi capturado. Evadiu-se ao receber liberdade condicional e acabou recapturado em setembro de 2021. Foi quando os Estados Unidos pediram sua extradição.
Enquanto tentava deter seu processo de extradição, Hugo Carvajal afirmou às autoridades de Madri ser testemunha de um período de “pelo menos 15 anos” em que o regime venezuelano desviou recursos de sua gigantesca estatal de petróleo, a PDVSA, para financiar ilegalmente movimentos de esquerda, nominando, como destinatárias do dinheiro, as campanhas de Lula no Brasil, Gustavo Petro na Colômbia, Cristina Fernandez de Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Manuel Zelaya em Honduras e Ollanta Humala no Peru. Registre-se que, em abril deste ano, o expresidente peruano e sua esposa, Nadine Humala, foram condenados por lavagem de dinheiro, em caso que envolve repasses milionários da brasileira Odebrecht à campanha eleitoral no Peru. Ollanta foi preso. Nadine recebeu asilo do governo Lula, que mandou um avião da FAB buscá-la pouco antes de ser presa. Ela segue livre e bem guardada no Brasil.
Dois longos anos é o tempo que a Espanha levou para entregar Carvajal à justiça norte-americana, uma demora que suscita a cogitação de pressões políticas vindas da esquerda europeia. Afinal, Carvajal sustentou a existência de financiamento ilegal da Venezuela para a fundação do partido espanhol Podemos e, também, para o Movimento 5 Estrelas, na Itália, ambos de esquerda.
Também chama a atenção a demora da Justiça norte-americana para interrogar Carvajal. Ele chegou aos Estados Unidos em julho de 2023 e lá ficou, durante um ano e meio, em uma espécie de banho-maria. Por quê?
Autora do livro “Carvajal, Lula e o sequestro da América Latina”, publicado como e-book em 2022, a jornalista brasileira Elisa Robson tem uma hipótese, como observadora privilegiada do caso. Ela se radicou nos Estados Unidos em 2023, depois de se sentir pressionada pela teia de inquéritos arbitrários e sigilosos conduzidos por Alexandre de Moraes.
Elisa notou a contrariedade de investigadores com a decisão de Joe Biden de tirar da prisão e entregar à Venezuela um dos grandes aliados de Maduro, o empresário colombiano Alex Saab, que respondia por lavagem de dinheiro e corrupção nos Estados Unidos. “Eles temiam que, se movimentassem o caso Carvajal, talvez ele entrasse no acordo de Biden com Maduro e fosse entregue também.” O acordo Biden-Maduro, com mediação do Catar, previa a soltura de norteamericanos presos pelo regime de Caracas e a realização de eleições livres na Venezuela em 2024. Foi a eleição que Maduro perdeu, mas disse que ganhou e colocou para correr tanto o eleito, Edmundo Gonzáles, como sua grande apoiadora, Maria Corina Machado, recémagraciada com o Prêmio Nobel da Paz — sob o silêncio constrangido do governo brasileiro.
Quando Donald Trump assumiu a Casa Branca, em 2025, Carvajal voltou a ser um tema explosivo nos Estados Unidos e na América Latina — menos, naturalmente, para alguns transatlânticos da imprensa brasileira, que por medo de censura, ou motivações outras, não veem interesse público no assunto. Seja como for, a notícia não espera pelo mensageiro distraído, digamos assim. E em 25 de junho deste ano teve notícia oficial a cintilar, de papel passado e timbrado, vindo diretamente do gabinete do procurador dos Estados Unidos para o Distrito Sul de Nova York, Jay Clayton.
Clayton e o diretor da DEA, agência antinarcóticos dos Estados Unidos, comunicaram que Hugo Armando Carvajal Barrios acabara de se declarar culpado de todos os crimes a ele imputados. Levado à presença do juiz distrital, Alvin K. Hellerstein, Carvajal admitiu sua participação em conspirações para introduzir cocaína nos Estados Unidos. Confessou, também, ter-se envolvido em narcoterrorismo em benefício das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, grupo guerrilheiro conhecido pela sigla FARC. E se disse culpado, igualmente, de outros crimes relacionados a armas.
O comunicado do procurador Jay Claiton informou que Carvajal apontou o dedo para altos membros do governo venezuelano que, segundo ele, agem como líderes e administradores do “Cartel de los Soles”. Não foi sem base, portanto, que Trump e seu secretário de Estado, Marco Rubio, passaram a mencionar com frequência o Cartel dos Sóis e o papel supremo de Nicolás Maduro na organização.
O cercamento militar da costa venezuelana e a recente autorização obtida por Trump no Congresso americano para fazer ações de inteligência dentro do território da Venezuela são desdobramentos das informações já entregues por “El Pollo” Carvajal — e muito mais elementos vêm sendo adicionados nas últimas semanas. Ao empurrar o julgamento do ex-general do dia 29 de outubro para 19 de novembro, a justiça americana sinaliza que é robusto o material que recebeu e precisa processar.
Tudo é expectativa, por ora, sobre o desfecho do julgamento, e é provável que as informações mais sensíveis de Carvajal sejam mantidas sob sigilo, mas as consequências não se farão esperar. De todos os prognósticos, merece atenção especial o de Elisa Robson, para quem a delação de Carvajal vai abalar drasticamente as estruturas de poder no Brasil. E o que a credencia é o fato de que, poucas semanas atrás, ela esteve entrevistando Hugo Carvajal por meio de um sistema eletrônico disponibilizado pela justiça norteamericana. Ela não sabe o que fará, ainda, com o material. A publicação de um novo livro é cogitada, a depender dos novos desdobramentos que o “Pollogate” tiver.
Nascida em Porto Alegre e depois radicada no Paraná, Elisa conseguiu a façanha de se fazer notada, e recebida, por Carvajal, pela razão mais singela possível. Em uma tarde de setembro de 2021, fuçando no noticiário internacional, leu sobre a prisão de Carvajal na Espanha e quis saber mais sobre aquele personagem que acabara de ser preso em Madri e aparecia envolvendo a esquerda brasileira e latinoamericana em uma intrigante teia de influências. A curiosidade a levou… ao nada. Silêncio da imprensa brasileira que se refere a si mesma como “grande imprensa” ou “jornalismo profissional”.
Inconformada, vasculhou sites, cruzou linhas de análise e viu o gigantismo da “pauta”, termo que designa, em jornalismo, um assunto a ser abordado. Com a ajuda de uma amiga, engrossou e refinou sua pesquisa e, juntando os trocados, decidiu ir para Madri com a cara e a coragem para ver se a deixavam falar com “El Pollo”.
Depois de uma semana vagando sem norte, chegou à advogada dele, Maria Dolores Arguelles. E pela advogada chegou à esposa de Carvajal, Angélica Flores.
“Carvajal não está fugindo da justiça!”, disse-lhe Angélica. “Está procurando justiça!”
Angélica, que Elisa definiu como “uma jovem perspicaz”, proclamava a disposição de Carvajal de “acabar com a ditadura de Nicolás Maduro” na Venezuela. “Angélica garantiu para mim que o seu marido conhece Maduro muito bem. Porque Maduro foi informante dele no passado.
Por intermediação da sua esposa e da advogada, Carvajal aceitou receber um questionário de Elisa e responder o que achasse que deveria. Com o material, Elisa escreveu seu livro em 2022.
Mas algumas perguntas continuaram martelando, e três anos depois, consumada a extradição e às vésperas do julgamento de Carvajal, Elisa voltou a pedir entrevista, e novamente foi atendida. Carvajal confirmou que tem afirmações graves sobre o Brasil, mas esquivou-se de detalhar o que poderá estar no acervo de provas que agora chega às autoridades norte-americanas. A aposta de Elisa é de que Maduro cai. “E na hora que Maduro cair, vocês vão ver algo impactante no Brasil. Muita, mas muita gente, vai retroceder. Inclusive na Suprema Corte.”
Uma das perguntas que Hugo Carvajal preferiu não responder a Elisa diz respeito ao uso de “malas diplomáticas” para financiamento de campanhas no Brasil, recurso que, segundo ele denunciou à justiça espanhola em 2021, foi usado pelo regime de Caracas para despejar, por exemplo, mais de US$ 20 milhões na campanha presidencial de Cristina Kirchner na Argentina, de forma fracionada. Hugo Chávez teria despachado 21 voos a Buenos Aires ao longo de 2007, cada um deles levando malas diplomáticas de US$ 1 milhão. “Tentei saber detalhes sobre a utilização de malas diplomáticas para envio de dinheiro ao Brasil, mas este é um ponto que ele evitou responder, assim como em outros temas que podem fazer parte da colaboração com a justiça dos Estados Unidos.”
Sobre um tópico, em particular, Carvajal foi assertivo: a atuação alémfronteiras do crime organizado brasileiro e suas conexões com outros grupos criminosos, inclusive o Cartel de los Soles. A negativa do governo Lula aos esforços de Washington para classificar o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas adiciona tensão às relações entre os dois países. “Depois da Venezuela”, acredita Elisa, “o Brasil pode ser o próximo alvo de ações dos Estados Unidos, como a que estamos vendo no Caribe, inclusive com participação da CIA.”
Como dito no início, o tamanho da pena que o tribunal norteamericano dará a Hugo “El Pollo” Carvajal, a partir das 12h do dia 19 de novembro, indicará a gravidade e a procedência das acusações que faz ao regime venezuelano e a seus aliados de misturar tráfico de drogas e de armas às batalhas políticas na região. Se conseguir uma pena leve, sinal de que se tornou um homem-bomba. Será um tormento para líderes políticos que fizeram carreira no Foro de São Paulo, a bem-sucedida criação de Lula e Fidel Castro. Mas se for condenado à prisão perpétua, a esquerda latino-americana poderá se sentir aliviada e compartilhar do sentimento de absoluta tranquilidade expressa pelo ministro Alexandre de Moraes à revista The New Yorker, quando se pronunciou sobre as sanções impostas pelo governo de Donald Trump ao Brasil — e a ele, em particular. “Se eles mandarem um porta-aviões, aí a gente vê. Se o porta-aviões não chegar até o Lago Paranoá, não vai influenciar a decisão aqui no Brasil.”
A ver.
Eugênio Esber - Revista Oeste