sexta-feira, 12 de setembro de 2025

'Fux é lux', por Adalberto Piotto

 O voto do ministro foi a luz num Supremo que precisava ser iluminado diante do obscurantismo da insegurança jurídica que se permitiu desde 2019


Fux defende imparcialidade judicial e critica postura de Moraes em processos da Ação Penal | Foto: Gustavo Moreno/STF


Num dos mais longos votos da história do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux enfrentou o obscurantismo atual da Corte e fez a luz do Direito, do legalismo e da sensatez jurídica brilhar novamente no país. O longo tempo do voto, longe de qualquer preciosismo do autor, era necessário. Desde 2019, o Brasil tem estado sob as trevas de ilegalidades, a começar pelo malfadado inquérito 4.781, aberto de ofício, sem provocação do Ministério Público e sem sorteio. 

De lá para cá, a sucessão de arbitrariedades, abusos e absurdos jurídicos se estabeleceu com a instauração imparável de novos inquéritos, sempre mantidos em sigilo, que produziram investigações indiscriminadas de fishing expedition (“pesca probatória”) e geraram congelamento de contas financeiras, banimento de perfis em redes sociais e suspensão de passaportes dos investigados, todos com uma semelhança: eram críticos do STF ou do governo Lula, defensores da liberdade de expressão e de direita no espectro político. 

À frente do “inquérito do fim do mundo”, como apelidou o então decano Marco Aurélio Mello, e de tudo o que viria a seguir, Alexandre de Moraes. É exatamente o voto de Moraes e a acusação da Procuradoria-Geral da República que Luiz Fux demoliu, praticamente na integralidade, em seu voto histórico de praticamente 12 horas. Tratar do fim dos tempos, sejamos justos, demanda tempo. 

A precisão com que o ministro Fux, um remanescente do julgamento do Mensalão, contrariou cada prova — ou expôs em minúcias a ausência de evidências na peça de acusação do procurador-geral Paulo Gonet, será conteúdo obrigatório em faculdades de Direito e em debates do mundo jurídico e político por décadas. “Eu destaquei uma equipe do meu gabinete que analisou as provas”, alegou um Fux que parece ter percebido o incômodo de colegas com seu detalhado voto, já no início da noite de quarta-feira, quando ainda analisava a precariedade da acusação apresentada pela PGR e rebatia os argumentos do voto condenatório de tudo e todos de Moraes. 

Quase nove da noite, ainda na leitura do trecho de seu entendimento que o levou a absolver o ex-presidente Jair Bolsonaro de todas as acusações, justificou-se ao presidente da Primeira Turma do STF, Cristiano Zanin:

“Senhor presidente, isso é uma obrigação da Constituição. O juiz deve motivar suas decisões”. Era um contraponto necessário ao clima de condenação prévia que o STF se permitiu. Ao embasar seu voto em sólida jurisprudência do STF e em doutrinas de renomados juristas, como Nelson Hungria, o ministro Luiz Fux expôs a precariedade da denúncia da Procuradoria, o absurdo relatório feito com desarrazoado ânimo acusatório de Alexandre de Moraes e a irrelevância intelectual do voto de Flávio Dino, ali apequenado, dada a indisfarçável dobradinha com o ministro-relator. O voto de Fux foi a lei derrubando a narrativa.


Ministro Luiz Fux absolve Bolsonaro e critica fragilidade da denúncia da PGR e o voto de Alexandre de Moraes | Foto: Fabio RodriguesPozzebom/ Agência Brasil 

O sopro insistente de legalismo constitucional, notadamente impopular num Supremo que refaz entendimentos próprios e reescreve a Constituição com desavergonhada frequência, parece ter feito vítimas. Pouco antes do último intervalo, Fux foi perguntado por Flávio Dino — este sentado imediatamente ao seu lado e, durante o voto do colega, visto a digitar no celular —, se Mauro Cid já havia sido julgado. 

Era a pergunta que jamais poderia ter sido feita por quem tivesse minimamente se dedicado a prestar atenção ao julgamento. O tenente-coronel Cid fora o primeiro a ser julgado por Fux. Sem graça e contrariado, Dino ainda insistiu. 

O diálogo abaixo é de causar rubor alheio: — Absolvendo ou condenando? — perguntou Dino. 

— Condenando — respondeu Fux. 

— Ah, condenando 

— assentiu Dino, não sem antes buscar detalhes que estavam explícitos no voto claro e didático do colega: Um crime, dois, três? 

— Um crime — disse Fux. 

— Um crime, obrigado. Então, condenando Mauro Cid e absolvendo os outros? 

— voltou a questionar um desavisado Dino. — Ainda não acabei — avisou novamente um incrédulo Fux que, segundos antes, tinha explicado a Zanin que ainda faltavam outros cinco sobre os quais se pronunciaria. 

— Obrigado — desistiu Dino, empurrando de lado vigorosamente o microfone do STF que deve contar com proteção especial a movimentos bruscos de impacientes. 

A leitura do voto ainda se estenderia até pouco antes das 23 horas. Fato é que ao se esmerar em buscar argumentos nas fontes doutrinárias que formam advogados e que orientam juízes de carreira em tribunais pelo país, além de evidenciar sua inspiração em juristas como Celso de Mello, um dos ex-ministros mais respeitados da recente história da Suprema Corte Brasileira, indicado ainda por José Sarney, Fux chamou o STF à coerência, os demais ministros à impessoalidade do julgador e à aplicação da lei segundo o Direito, não sob influência do CPF do réu e o desejo condenatório de Moraes. Capa de processo nunca mais! Foi uma aula de direito ao vivo.


Fux rebate voto condenatório de Alexandre de Moraes e critica influência política nos julgamentos do STF | Foto: Gustavo Moreno/STF 

Por isso mesmo, o voto de Fux não se furtou a começar pelo essencial: será este julgamento justo? Os direitos dos réus estão sendo garantidos? Na análise das preliminares, quando os ministros devem decidir se todas as circunstâncias do julgamento atendem à lei e não afrontam sobretudo a Constituição, o primeiro revés ao atual Supremo veio sobre a questão do foro por prerrogativa de função, o tal foro privilegiado que garante a presidentes e parlamentares federais serem julgados apenas dentro do STF. Vale reler o que Luiz Fux disse ao defender a nulidade do julgamento: 

“Com as vênias de Sua Excelência, o dedicado relator (Moraes) e dos que o acompanharam, meu voto é no sentido de reafirmar a jurisprudência desta Corte adotada na questão de ordem da Ação Penal 937. Concluo assim pela incompetência absoluta do Supremo Tribunal Federal para o julgamento deste processo, na medida em que os denunciados já haviam perdido os seus cargos. E como é sabido, em virtude da incompetência absoluta para o julgamento (citou novamente) impõe-se a declaração de nulidade de todos os atos decisórios praticados. De sorte, senhor presidente, que a minha primeira preliminar anula o processo por incompetência absoluta (mais uma vez).”

Tivesse o relator ou o presidente da Turma decidido que cada um dos cinco ministros se manifestasse primeiramente sobre o foro ou sobre qualquer outra nulidade alegada pelas defesas, uma maioria de três votos acabaria com o julgamento, nem sendo necessário julgar-se o mérito. Como não foi adotado tal expediente mais simples e objetivo, Fux ainda votaria por outra anulação, ao aceitar o argumento do cerceamento de defesa e a julgar cada um dos réus diante das acusações de Golpe de Estado, Atentado Violento contra o Estado Democrático de Direito, Formação de Quadrilha, Depredação de Patrimônio Público e Depredação de Patrimônio Tombado. De pronto, desqualificou o crime de “Golpe de Estado”. Recorrendo à semântica simples, explicou que só se julga alguém por Golpe de Estado se este tomou o poder. Não existe autogolpe e nos atos do dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, Bolsonaro nem estava mais no país. E os comandantes militares tinham todos sido trocados pelos nomes indicados por Lula, o então presidente empossado e que não se afastou da cadeira presidencial nem por um dia, à exceção do tempo dedicado às suas inúmeras viagens de Estado ou de outras a pedido da primeira-dama Janja.


O ministro Luiz Fux votou com a Constituição, sob regras estabelecidas e assentadas no entendimento coletivo do próprio Supremo. O nome disso é segurança jurídica e previsibilidade, qualidades de que a última instância não pode abrir mão. Ao reconhecer que as defesas foram cerceadas, citou o caso dos 70 terabytes. Advogados denunciaram ter recebido da Polícia Federal um arquivo de informações que seriam proporcionais a 35 milhões de livros digitais ou outros milhões, até bilhões de páginas, de eventuais provas, poucos dias antes do prazo das alegações finais. “Document dumping”, criticou Fux, ao citar a expressão em inglês que define quando a defesa é asfixiada com material excessivo e pouco tempo para análise, prejudicando a defesa de seu cliente. O verniz de legalidade que a PF tentou passar, autorizado por Moraes, de ‘documentação entregue, então não reclamem’, não convenceu. Ao rebater a alegação de que todas as provas já estariam na denúncia, disse o óbvio: “o que pode não interessar à acusação, pode interessar à defesa”. E 70 terabytes exigem um tempo que os advogados não tiveram.


Fux aponta cerceamento de defesa e critica decisão de Moraes que autorizou entrega massiva de dados à defesa | Foto: Reprodução/X


Num voto que ainda será muito discutido, Luiz Fux deu ênfase a elementos da Procuradoria que alimentaram narrativas diante do exagerado e manipulado sigilo das investigações. Segue uma breve lista: 

• Os documentos encontrados na sede do PL apenas em fevereiro de 2024 — “provas ilícitas e nulas de pleno direito”. 

• A live do influenciador argentino sobre a segurança das urnas eletrônicas — “uma live no exterior atentar contra o Estado de Direito?”, perguntou um incomodado Fux. 

• A tentativa de criminalizar o movimento pela impressão do voto — “impressão do voto não é questionamento, é vontade do legislador”, lembrando que o projeto havia sido aprovado no Congresso.

• A implicação de Bolsonaro no dia 8 de janeiro — “réus não podem ser condenados por danos de terceiros”. 

• E criticou duramente a decisão do procurador-geral Paulo Gonet de perseguição a críticos: “A pretensão do parquet de criminalizar o discurso só dá razão aos que alegam a ditadura do Judiciário”.


Ao escolher o título deste artigo, recorri ao latim: “Fux é lux“. Ao não tergiversar em defender a Constituição de 1988, o legalismo e a segurança jurídica, o voto de Luiz Fux foi a luz num Supremo que precisava ser iluminado diante do obscurantismo da insegurança jurídica que se permitiu desde 2019. A politização, pior, a partidarização de uma Corte que se desfigurou em antecipação pública de votos nas várias e indevidas manifestações do falatório sem fim de ministros é aviltante. A prescrição de autocontenção e distanciamento das partes — como evitar a verborragia de “derrotamos o Bolsonarismo”, frase dita por Barroso em um convescote estudantil da esquerda radical — é inequívoca e de amplo conhecimento de todos. Ou arroubo de Alexandre de Moraes, de que “tem muita gente ainda pra prender e muita gente pra multar”. 

A frase “ignorantia legis neminem excusat”, ou seja, “a ignorância da lei não pode ser usada como desculpa”, parece se amoldar ao momento, mesmo que nenhum ministro do STF ignore a liturgia do cargo. Parece que são apenas escolhas deliberadas que afrontam a história e a tradição da Corte em que se encontram, o que agrava a situação. Por isso, Fux teve de lembrá-los, logo no início de seu voto, de que ali havia um julgamento histórico, sim, mas que ainda assim decidiria o destino de pessoas, com possível privação de liberdade, a pena mais dura na lei brasileira. O momento demandava juízes de verdade: 

“O juiz, por sua vez, deve acompanhar a Ação Penal com distanciamento, não apenas por não dispor de competência investigativa ou acusatória, como também por seu necessário dever de imparcialidade”. A forma, sem citar nomes, foi indireta. Mas todo mundo entendeu o recado.

Adalberto Piotto - Revista Oeste