Filipe Martins suportou o que muitos preferiram trocar por uma mentira conveniente
“Se o principal pilar do sistema é a vida na mentira, não surpreende que a ameaça fundamental a ele seja viver na verdade. É por isso que ela deve ser reprimida com mais severidade do que qualquer outra coisa.” (Václav Havel, O Poder dos Sem-poder)
N uma cela escura em Curitiba, entre paredes úmidas e a vigilância contínua dos capangas do regime, Filipe Martins suportou o que muitos — incluindo homens supostamente treinados para a resistência, tal como os integrantes das Forças Especiais do Exército — preferiram trocar por uma mentira conveniente. Sofreu o que o vocabulário dos juristas, sempre asséptico, chama de “isolamento cautelar”, mas que a corregedora de presídios da capital paranaense, Stella Burda, nomeou com mais honestidade: isolamento em solitária, ausência total de luz, mais de 70 dias sem ver a mulher e perseguições internas confirmadas por carcereiros e presos.
A denúncia, feita em depoimento formal, foi prontamente hostilizada pela PGR, que, em vez de investigar a tortura, tentou intimidar a testemunha ao silêncio. Num gesto digno de regimes totalitários, o problema deixou de ser a violação dos direitos, e passou a ser o vazamento da violação. A jornalista Ana Paula Henkel tornou público o escândalo.
Mas escandaloso mesmo foi o aparente desinteresse da sociedade brasileira pelo caso — sugerindo que, em termos de atenção aos direitos humanos, não estamos em posição de arrotar orgulho nacional contra uma pretensa ingerência estrangeira.
O caso remete às páginas imortais de Arthur Koestler. Em O Zero e o Infinito, o protagonista Rubachov, preso nos expurgos stalinistas, é torturado não apenas fisicamente, mas psicologicamente, até confessar crimes inexistentes em nome de um ideal corrompido. No ambiente mental totalitário, confessar-se culpado era uma prova de pureza revolucionária. Melhor ser executado como herege arrependido do que viver como cético.
Assim, os julgamentos espetáculo do stalinismo foram povoados por homens que, já desprovidos de alma, e visando a uma espécie de redenção histórica, mendigavam perdão ao Estado que os destruíra.
Filipe Martins, ao contrário, negou-se a reproduzir esse rito profano. Perante os seus algozes, não confessou crime inexistente, não delatou aliados, não se prostrou diante da narrativa oficial. Seu corpo esteve aprisionado, mas a sua alma permaneceu incólume. E é esse o crime imperdoável, aos olhos dos sacerdotes do novo regime: a altivez. Foi isso que desnorteou o auxiliar do tirano de toga, desesperado em interromper a palavra fustigante de Martins, o preso político que, com a simples presença de seu caráter inquebrantável, não apenas revelava a pequenez existencial de um burocrata símbolo da banalidade do mal, como também demolia todo o castelo de areia do regime de exceção.
No Brasil do século 21, há mesmo algo de soviético na estética da repressão. O dissidente não é julgado por um crime, mas por uma condição: a de pertencer ao grupo errado, a de pensar fora da cartilha, a de não reverenciar o ridículo que veste toga.
A “democracia” que se diz ferida por memes e opiniões é a mesma que manteve um cidadão preso ilegalmente, sem julgamento, por mais de um ano — como aviso exemplar aos demais. A analogia com Sergei Magnitsky é inevitável. O advogado russo morreu nos cárceres da polícia de Putin depois de denunciar a corrupção no seio da Nomenklatura. Foi espancado, privado de tratamento médico, e por fim assassinado. Sua morte deu origem à Lei Magnitsky, legislação internacional que permite aos Estados Unidos sancionar indivíduos estrangeiros por violação de direitos humanos.
Hoje, a possibilidade de ver Alexandre de Moraes incluído entre os nomes puníveis por essa legislação já não é mais uma “teoria da conspiração”, mas uma realidade iminente.
Mas, se o bravo Sergei Magnitsky morreu, outro bravo, Filipe Martins, continua vivo. E é isso — ironia das ironias — o que mais incomoda seus algozes, um incômodo estampado no desconforto do substituto de Alexandre de Moraes na oitiva. Porque — ainda que isso não tenha dado certo com Sergei — um homem morto sempre pode ser transformado em estatística, em “excesso”, em “erro de procedimento”. Já um homem vivo, que se recusa a curvar-se, é uma acusação em carne e osso. É a refutação viva do sistema. É o pesadelo dos abusadores de autoridade.
Como Václav Havel, Martins compreendeu que, em tempos de mentira institucionalizada, a verdade não precisa gritar — basta existir. Se o dissidente tcheco transformou as suas peças e cartas em atos de resistência moral, Filipe transformou o próprio silêncio em clamor. O que a censura não conseguiu apagar a cela escura tampouco conseguiu calar.
Talvez por isso o regime esteja inquieto. Nota-se a apreensão no ar, e alguns de seus próceres já ensaiam o clássico adoecimento mental causado pela húbris. Para disfarçar o medo, os inquisidores multiplicam suas loas ao “Estado Democrático de Direito”, uma expressão que, de tão prostituída, perdeu toda a dignidade. Enquanto isso, dia após dia, Filipe Martins torna-se a prova viva de que há ainda quem se recuse a fazer da própria consciência uma moeda de troca. Para esses, a liberdade não se negocia com habeas corpus humilhantes, pois eles sabem que a alma, uma vez entregue a Mefistófeles, não pode ser resgatada por petição alguma.
Se há justiça fora dos autos, ela começará por reconhecer esse fato elementar: o que se passa hoje no Brasil não tem nada a ver com direito, mas com uma patologia política encarnada numa alma individual corrompida e noturna. Afinal, um poder que, ignorando solenemente a Constituição, prende para coagir e silencia para governar já não é, por óbvio, um poder legítimo.
É justamente contra essa usurpação do poder que, com o rosto sereno e a lógica afiada, se ergue a figura heroica de Filipe Martins. Ao recusar assumir a persona de um Rubachov tropical, o jovem preso político preservou o que resta da honra nacional. E lembrou aos usurpadores que há algo ainda mais assustador do que a crítica proveniente de fora: o desprezo silencioso de quem, ciente de que a verdade já foi até mesmo pregada numa cruz, não se rendeu aos poderes deste mundo.
Flávio Gordon - Revista Oeste