sexta-feira, 4 de julho de 2025

'A Boba da Corte', por Augusto Nunes

 Já não falta ninguém no Reino Supremo


Cármen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil


A ministra Cármen Lúcia estava a poucos quilômetros de Brasília quando um problema mecânico obrigou o carro oficial a estacionar no acostamento da rodovia que liga a capital federal a Goiânia. Dez minutos depois, o motorista continuava tentando descobrir o que houvera. Ao lado do capô, a passageira parecia especialmente aflita com o imprevisto: não chegaria ao Supremo Tribunal Federal no horário em que deveria começar uma importante reunião convocada pela própria Cármen Lúcia, então presidente da Corte. 

“Foi então que o socorro chegou de moto”, contou naquela noite de 18 de outubro de 2016 a mulher risonha, falante e extraordinariamente franzina. Encerrada a entrevista concedida ao programa Roda Viva, ela resolveu continuar a conversa com o grupo de jornalistas com meia dúzia de boas histórias. Uma delas foi essa numa estrada do Brasil central. 

“Eram dois militares montados em motocicletas”, continuou a narrativa. 

“Um foi ajudar a examinar o motor, outro veio falar comigo. A cara era de alguém que já vira meu rosto em algum lugar, mas não sabia direito quem eu era. Contei que estava atrasada para um compromisso. Meio constrangido, ele disse que só podia me oferecer uma carona na traseira. Mesmo trajando um vestido e sem capacete, não tive dúvida: fui logo me ajeitando na moto. O rapaz quis saber se por acaso eu não era ministra do Supremo. Disse que sim. Em seguida perguntou meu nome. Também não tive dúvida. Respondi que me chamava Rosa Weber.” 


Ministra Cármen Lúcia, durante reunião para aprovar as resoluções contra a IA | Foto: Divulgação/TSE/Twitter/X 

Minha simpatia por Cármen Lúcia aumentou: quer dizer que, além de tudo, a mulher que presidia o STF era uma boa contadora de casos? A ministra nem precisava brilhar nesse quesito para merecer a admiração do Brasil que pensa e presta. Bastavam as sucessivas manifestações de independência intelectual e apreço pela Justiça. A ministra apoiava os avanços da Operação Lava Jato. Sabia impor limites ao sempre espaçoso Gilmar Mendes. Vivia rechaçando as teimosas piruetas e chicanas da bancada empenhada na revogação da norma segundo a qual a pena aplicada a um criminoso só pode começar a ser cumprida depois da condenação em segunda instância. E condensara a paixão pela liberdade de expressão numa frase que todos os brasileiros um dia dissemos na infância: “Cala a boca já morreu”.




A ressurreição do cala a boca começou em outubro de 2022, quando Cármen Lúcia caprichou no papel de parteira da “censura temporária”, receitada em “situações excepcionalíssimas”. Nessa categoria a ministra enquadrou um documentário, produzido pela Brasil Paralelo, sobre o atentado sofrido por Jair Bolsonaro. Depois de reincidir nas declarações de amor à livre expressão, a mineira em mutação ponderou que, em certos casos, a censura funciona “como veneno ou remédio” — e proibiu a exibição do filme até a realização do segundo turno da eleição presidencial. “Este é um caso extremamente grave, porque de fato temos uma jurisprudência do STF, na esteira da Constituição, no sentido do impedimento de qualquer forma de censura”, declamou a ministra. Depois de receitar o veneno, procurou consolar o envenenado: “Não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento no Brasil”. 

Neste fim de junho, novamente a serviço da bancada que reduziu o STF a capitão do mato das liberdades democráticas, Cármen Lúcia aprovou a mutilação do Marco Civil da Internet. Ao justificar o apoio à transformação das redes sociais em castradoras do direito de expressão, nossa flor de esquizofrenia elevou a contradição à categoria de arte: “Censura é proibida constitucionalmente, é proibida eticamente, é proibida moralmente, é proibida, eu diria, até espiritualmente. Mas não pode também permitir que nós estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”.




É uma tese de assustar Napoleão de hospício: se toda a população brasileira é composta de pequenos tiranos, não restaria nenhum a oprimir — com exceção dos grandes tiranos que controlam a Corte Suprema. Ali já existiam monarcas à espera de especialistas na lida com maluquices, conselheiros do rei providos de dois neurônios, eunucos achando que falam grosso, atiradores estrábicos e a multidão de patifes intrigantes. Nesta semana, a sede do reino foi invadida por uma mulher entoando a reveladora ladainha: “Alguém, em qualquer espaço, em praça pública, pode gritar: eu odeio Cármen Lúcia”. Chegou a figura que faltava. Já temos a Boba da Corte.

Augusto Nunes - Revista Oeste