A ciência moderna é uma invenção do Cristianismo medieval, e os maiores avanços no raciocínio científico foram em grande parte obra de cristãos, tanto sacerdotes quanto leigos
Na GloboNews, exasperado com o desmonte realizado por Trump na assim chamada “ciência” climática — uma disciplina tão científica quanto a “ciência” do “fique em casa, a economia a gente vê depois” —, o comentarista André Trigueiro pontificou sobre a demissão de alarmistas, digo, cientistas do clima nos EUA:
“Eu não estaria exagerando ao dizer que Trump, hoje, replica o que a Igreja Católica, na Idade Média, com a ferramenta da Inquisição, fazia — guardadas as proporções —, que é censura e punição para quem fazia ciência. Então você pega Galileu Galilei, Giordano Bruno…
Hoje são os cientistas do clima.” GloboNews @GloboNews · Seguir Trump proíbe cientistas de trabalharem em relatório climático, e @andretrig comenta: “Eu não estaria exagerando ao dizer que Trump, hoje, replica o que a Igreja Católica, na Idade Média, com a ferramenta da inquisição, fazia – guardadas as proporções –, que é censura e punição… Mostrar mais
Não, André Trigueiro, você não está mesmo exagerando. O que você está é dizendo uma completa besteira — sobre as decisões de Trump e, principalmente, sobre a Idade Média. Decerto ocupado em salvar tartaruguinhas e samambaias do apocalipse climático (cuja profecia decretava a Amazônia virando um deserto no início dos anos 2000), você nunca teve tempo de estudar o básico da história da ciência, contentando-se com uma fábula infantil sobre o relacionamento da Igreja com a ciência. De modo que, ao me dirigir a você, sinto-me inclinado a adotar o mesmo tom didático que usaria para explicar a uma criança que os bebês não vêm ao mundo trazidos por cegonhas.
Em primeiro lugar, ao dizer que a Igreja medieval censurava e perseguia “quem fazia ciência”, você obviamente não tem outros exemplos a dar que os surrados casos de Galileu Galilei e Giordano Bruno. Não lhe parece estranho que, tendo a Idade Média durado aproximadamente mil anos, ao longo dos quais a Igreja não cessou de perseguir os cientistas, você não consiga citar o nome de mais nenhuma vítima além de Galileu e Giordano? Mil anos e apenas dois perseguidos? Espantoso!
Mas, para a sua decepção, digo que nem esses dois nomes mistificados você poderá sustentar. O de Giordano Bruno terá que ser logo descartado, uma vez que ele jamais foi cientista, e a sua condenação pela Igreja nada teve a ver com ciência ou com o heliocentrismo copernicano, como reza a lenda. De acordo com o historiador italiano Angelo Mercati, que descobriu e publicou o documento resumido referente ao julgamento e à condenação de Bruno pela Inquisição Romana, os crimes de Bruno eram claramente de natureza religiosa, independentemente de suas opiniões sobre a estrutura do cosmos físico. Como concluiu o consagrado historiador da ciência Thomas Kuhn, “Bruno não foi executado por causa do copernicanismo, mas por uma série de heresias teológicas centradas em sua visão da Trindade (…) Ele não é, como se acredita, um mártir da ciência”.
Quanto a Galileu, como nos mostra o historiador Pietro Redondi, que esmiuçou toda a documentação histórica do caso, a história é bem mais complexa do que a lenda nos fez acreditar. Para começar, ao contrário do que muitos acreditam até hoje, ele jamais foi encarcerado e muito menos torturado. Tampouco foi censurado de maneira plena, e continuou a estudar e publicar sobre uma série de temas científicos. Ele gozava de grande estima junto ao clero católico, que contava com muitos discípulos seus. De acordo com o historiador Thomas Lessl, o processo de Galileu foi um caso “anômalo (…) uma fissura pontual na relação quase sempre harmoniosa entre Cristianismo e ciência”. E, como concluiu o filósofo da ciência Alfred Whitehead a partir do caso Galileu:
“O pior que aconteceu aos homens de ciência na Idade Média foi o fato de Galileu ter sofrido uma detenção honrosa e uma suave reprimenda, antes de morrer pacificamente em sua cama”. Os casos de Giordano Bruno e Galileu Galilei serviram aos ideólogos cientificistas dos séculos 18 e 19 para construir a mitologia da guerra entre ciência e religião, uma mitologia fabricada por autores como Andrew Dickson White e John William Draper, cuja narrativa fantasiosa, pura propaganda anticlerical, continua sendo repetida até hoje por ignaros e desavisados, mesmo tendo sido inteiramente desacreditada pelos mais relevantes historiadores da ciência desde o início do século 20.
Na verdade, o que esses historiadores têm demonstrado — nomes como Pierre Duhem, Stanley Jaki, Edward Grant, David Lindberg, Gary Ferngren, Christopher Dawson, J. L. Heilbron, Alistair C. Crombie, Thomas Goldstein, entre outros — é precisamente o contrário: que a ciência moderna é uma invenção do Cristianismo medieval e que os maiores avanços no raciocínio científico foram em grande parte obra de cristãos, tanto sacerdotes quanto leigos.
Contrariando a mitologia anticlerical, o registro histórico mostra que a Igreja Católica foi provavelmente a maior e mais duradoura patrocinadora da ciência em todos os tempos, que muitos dos protagonistas da Revolução Científica eram católicos e que várias instituições e perspectivas católicas tiveram uma influência fundamental no surgimento da ciência moderna. Com efeito, a ciência, como atividade organizada e institucionalizada tal qual hoje a conhecemos, surgiu apenas uma vez na história da humanidade e num único lugar: a Europa da Idade Média.
E por que a ciência moderna se desenvolveu aí e em nenhum outro lugar? Num discurso proferido em setembro de 2006, em Regensburg (Alemanha), o papa Bento XVI deu a pista: o Cristianismo é a única religião na qual a razão tem um peso fundamental. A mente europeia recebeu da escolástica medieval aquele treinamento fundamental no pensamento racional, do qual dependem todas as suas conquistas posteriores. “Os mestres da Idade Média” — conclui David Lindberg em The Beginnings of Western Science — “criaram uma ampla tradição intelectual, sem a qual o subsequente progresso na filosofia natural teria sido inconcebível”. Ou, como resume Alfred Whitehead: “A fé na possibilidade da ciência é um derivado inconsciente da teologia medieval”
Mas a contribuição católica para a ciência não se limitou às ideias e à predisposição filosófica. Ela se revelou tanto institucionalmente — com a criação das primeiras universidades (“o ninho de onde a ciência levantou voo”, nas palavras do historiador do catolicismo Henri Daniel-Rops) — quanto pessoalmente. Muitos dos principais inovadores científicos foram sacerdotes, e um catálogo completo dos católicos que contribuíram para a Revolução Científica não caberia neste artigo. Nas ciências médicas, por exemplo, poderíamos mencionar Andreas Vesalius (1514-1564), o famoso anatomista de Bruxelas; Joan Baptista Van Helmont (1579-1644), uma das vozes mais inovadoras e influentes da medicina e da química do século 17; ou Marcello Malpighi (1628-1694), o primeiro microscopista a observar os capilares, provando assim a circulação do sangue. Na geologia, destaca-se o pioneirismo do bispo Nicolau Steno (1638- 1686), conhecido por seu trabalho fundamental sobre fósseis e a formação geológica das camadas de rocha. A física atômica deve muito ao trabalho do padre católico Pierre Gassendi (1592-1655). E a matemática, ao frade Marin Mersenne (1588-1648), também um organizador e disseminador das ideias de René Descartes (outro católico, aliás).
Um capítulo à parte teria que ser dedicado aos jesuítas, verdadeiros fundadores de especialidades científicas modernas, tais como a astronomia e a sismologia. Formalmente estabelecida em 1540, a Companhia de Jesus deu tamanha ênfase à educação que, até 1625, havia fundado sozinha quase 450 faculdades na Europa. Até 1700, os jesuítas ocupavam a maioria das cátedras de matemática nas universidades europeias.
Vários padres jesuítas contribuíram decisivamente para o progresso científico. O calendário reformado, por exemplo, promulgado pelo papa Gregório XIII em 1582 e ainda em uso, foi elaborado pelo matemático e astrônomo jesuíta Christoph Clavius (1538-1612). Christoph Scheiner (1573-1650) estudou manchas solares, Orazio Grassi (1583-1654) estudou cometas, e Giambattista Riccioli (1598-1671) elaborou um catálogo de estrelas e um mapa lunar detalhado, além de confirmar experimentalmente, ao medir suas exatas taxas de aceleração durante a descida, as leis de Galileu sobre corpos em queda. Investigadores jesuítas de ótica e luz incluem Francesco Maria Grimaldi (1618-1663), que, entre outras coisas (como colaborar com Riccioli no mapa lunar), descobriu o fenômeno da difração da luz e lhe deu esse nome.
O frei jesuíta Niccolò Cabeo (1586-1650) contribuiu decisivamente para o estudo do magnetismo, quando inventou a técnica de visualizar as linhas do campo magnético ao polvilhar limalhas de ferro sobre uma folha de papel colocada em cima de um ímã. E os exemplos se multiplicam ao infinito. No livro The Sun in the Church, o historiador J. L. Heilbron (insuspeito de simpatias clericais) destaca a presença dos jesuítas no progresso da astronomia. Embora tipos como André Trigueiro o ignorem por completo, dezenas de crateras da Lua são batizadas com nomes dos cientistas e matemáticos jesuítas que as descobriram. Nas palavras do autor:
A Igreja Católica Romana deu mais apoio financeiro e social ao estudo da astronomia por mais de seis séculos — desde a recuperação do conhecimento antigo no final da Idade Média até o Iluminismo — do que qualquer outra instituição e, provavelmente, do que todas as outras juntas.”
Sobre o surgimento das primeiras universidades, o grande historiador Christopher Dawson observou:
“Os mais altos estudos eram dominados pela técnica da discussão lógica: a questio e o debate público, que tão amplamente determinaram a forma da filosofia medieval, sobretudo nos seus principais expoentes. ‘Nada pode ser perfeitamente conhecido — disse Roberto de Sorbonne [1201-1274] — se não tiver sido mastigado pelos dentes do debate, e a tendência a submeter todas as questões, da mais óbvia à mais abstrusa, a esse processo de mastigação não só estimulava a perspicácia e a exatidão do pensamento como, acima de tudo, desenvolvia o espírito crítico e a dúvida metódica a que a cultura e a ciência ocidentais tanto devem’.”
A opinião de Dawson é partilhada pelo historiador da ciência Edward Grant, que afirma no livro God and Reason in the Middle Ages: “O que foi que tornou possível à civilização ocidental desenvolver a ciência e as ciências sociais de um modo que nenhuma outra civilização havia conseguido até então? Estou convencido de que a resposta está no penetrante e arraigado espírito de pesquisa que teve início na Idade Média como consequência natural da ênfase posta na razão. Com exceção das verdades reveladas, a razão era entronizada nas universidades medievais como arbítrio decisivo para a maior parte dos debates e controvérsias intelectuais. 07/03/2025, 16:46 Os jornalistas da GloboNews e suas bobagens "científicas"
Os estudantes, imersos em um ambiente universitário, consideravam muito
natural empregar a razão para pesquisar as áreas do conhecimento que não
haviam sido consideradas seriamente.” Essas são, enfim, as opiniões de quem realmente conhece a história da
ciência e a história da Igreja. Quanto a você, André Trigueiro, que tudo
ignora de ambos os assuntos, o mais recomendado é que volte a se
dedicar ao salvamento das tartaruguinhas e das samambaias. E que,
entretendo-se com a fábula, deixe a história para os adultos
- Flávio Gordon Revista Oeste