Alexandre de Moraes e seus acompanhantes no STF querem que você acredite que um aglomerado de 37 pessoas, a lotação de um ônibus, quis dar um golpe de Estado no Brasil
Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, em Brasília (27/11/2024) | Foto: Reuters/Adriano Machado
O Supremo Tribunal Federal está impondo ao Brasil, na base da pura força bruta, um estado de selvageria legal jamais visto nos seus 135 anos de existência como República. Não se trata, infelizmente, de uma opinião. Opiniões podem estar erradas — frequentemente estão erradas, aliás. Fatos, ao contrário, sempre são fatos, e existem porque existem. Todo mundo tem o direito a acreditar que dois mais dois são sete, digamos, ou que a água ferve a 45 graus. É o que está dizendo o STF. Mas dois mais dois vão continuar sendo quatro, e a água vai continuar fervendo a 100 graus centígrados.
Nada a fazer, certo? Errado. O Supremo faz — e com isso destrói o país, a lei e a ordem. O ministro Alexandre de Moraes e seus acompanhantes no STF querem que você acredite que um aglomerado de 37 pessoas, a lotação de um ônibus, quis dar um golpe de Estado no Brasil. Não faz nenhum nexo racional — e não vai fazer nunca. Não é possível, de jeito nenhum, derrubar um governo sem que pelo menos um soldado se mexa do lugar, sem tirar um tanque da garagem e sem dar ordens específicas a nenhuma autoridade. Ninguém, nunca, deu um golpe militar se o Exército em peso ficou contra esse golpe. Não dá para dar um golpe com uma verba de R$ 100 mil. É impossível, apenas isso.
Qualquer dúvida a respeito pode ser eliminada com uma leitura rasa das 880 páginas de acusações que a Polícia Federal acaba de encaminhar à Procuradoria-Geral da República. A polícia e o Ministério Público, no caso, são cumpridores das ordens que recebem há dois anos seguidos do ministro Moraes — que, por sinal, se coloca na posição de vítima de uma tentativa de assassinato, chefe das investigações, promotor e juiz do processo, coisa que não existe em nenhum país civilizado do planeta.
O total das provas reunidas pela PF, objetivamente, está entre o zero e a raiz quadrada do zero. O que a polícia apresentou, após quase 700 dias de investigação, fica abaixo do que fazia o grande Bolinha França, quando resolvia se fantasiar de toca-discos ou de Abominável Homem das Neves para investigar, incógnito, as delinquências que sempre jogava em cima do pai da Luluzinha, o simpático Sr. Palhares. O detetive Bolinha estava errado em 100% dos seus casos; nunca acertou uma. O inquérito do golpe está indo por aí.
Consegue ir da primeira à última palavra sem uma única acusação lógica, sem qualquer prova que possa ser levada a sério em qualquer parquet do mundo democrático e, sobretudo, sem qualquer ligação coerente com o seu denunciado número 1, o expresidente Jair Bolsonaro. Tudo o que a polícia conseguiu apresentar em seu relatório, uma geleia geral escrita em português primitivo e sem qualquer vestígio de análise lógica ou vida inteligente, são conversas sem pé nem cabeça entre um bolo de subordinados que não tinham autoridade para dar ordens a um guarda-noturno — nec caput nec pedes, como diriam os ministros em seu latinório de curso ginasial.
Eles disseram o que a PF diz que disseram? Podem ter dito e repetido, mas e daí? Os diálogos são apenas uma demonstração clara de tumulto mental agravado, como essas coisas que você lê na internet garantindo que a China tem uma base secreta na Lua, que o Brasil precisa de um “banho de sangue” para “limpar a política” ou que John Lennon continua vivo em algum lugar do mundo — é isso, e só isso.
Não há nenhuma menção ao tipo de veneno que seria usado para matar o presidente — e nem por que os líderes militares do golpe, todos eles com acesso legal a armas de fogo, precisariam de veneno para realizar o seu plano. Um padre de Osasco faria parte do “núcleo jurídico” do golpe. Um padre no “núcleo jurídico”? Por que um padre? O golpe, aliás, teria “seis núcleos”. Nenhum dos acusados, em nenhum lugar, fala em núcleo de coisa nenhuma. Foi a PF que inventou a coisa dos “núcleos” — e passou a apresentar a sua criação como prova do crime.
Não está claro, como nunca esteve desde o começo dessa história, por que Bolsonaro não deu o golpe de que é acusado quando era presidente da República e comandante em chefe das Forças Armadas. Não há, em nenhum ponto do inquérito, qualquer indício de que ele tenha tentado dar alguma ordem nessa direção, nem direta nem indireta. Se ele tinha algum desejo real de impedir a posse de Lula e continuar na Presidência, por que saiu do governo, até antes da hora certa, foi para os Estados Unidos e só depois tentou dar o golpe — sem um único e escasso pelotão de tiro de guerra, e com uma turba de motoboys, barbeiros e até um autista, em vez de generais de Exército, brigadeiros do ar e almirantes de esquadra? Vai saber.
A PF não oferece sugestões.
Uma das provas que menos provam alguma coisa, mas que continua sendo apresentada pela polícia e pelo ministro como a joia de sua coroa, é a extraordinária “minuta do golpe”. É o rascunho de um pedido ao Congresso para que fosse autorizado um “estado de emergência”, ou coisa parecida — pedido que jamais foi apresentado a ninguém, e teve tão pouca importância que ficou esquecido entre a papelada de um ex-ministro de Bolsonaro, ele mesmo acusado do golpe. A PF também sustenta, como se estivesse provando o crime da mala, que os conspiradores imprimiram documentos no Palácio do Planalto com o registro dos crimes que iriam praticar — e se esqueceram de se livrar deles, ou tentaram e não conseguiram. Por que teriam imprimido provas contra si próprios? Não há nenhuma pista.
O destino que os golpistas tinham reservado para o ministro Alexandre de Moraes propriamente dito permanece em mutação constante na investigação da PF. A certa altura do inquérito ele seria enforcado na Praça dos Três Poderes — a primeira execução pela forca no Brasil desde 1876. Depois, ou antes, ele seria assassinado na estrada de Brasília para Goiânia. Na versão atual, Moraes continua sendo morto, agora sem maiores detalhes. Na vida real, os únicos mortos em tentativas de golpe até agora foram o Unabomber de Brasília, que se suicidou com rojões de São João em frente ao STF, e Cleriston da Cunha, o preso do “8 de janeiro” que morreu no pátio da Papuda por falta de atendimento hospitalar de urgência — pedido pelos médicos e pelo próprio MP, e ignorado por Moraes.
Quanto às vítimas reais de crimes, a única que se conhece é o próprio Bolsonaro, agredido com uma facada no estômago que o levou à beira da morte em 2018.
Olhe para qualquer página do inquérito — só fica pior. Um dos crimes que mais escandalizam Moraes e a sua polícia é o “descrédito” nas urnas eletrônicas do TSE. Segundo diz a maçaroca da PF, havia até um “núcleo” só para isso, como o do padre de Osasco. Havia mesmo descrédito, e descrédito feio — e continua havendo até agora, pois milhões de eleitores simplesmente não vão entender nunca por que seria impossível fazer algum tipo de melhoria num artefato mecânico, como sustenta o STF. Virou lei no Brasil jurar fidelidade às urnas do ministro Moraes, como se jura à bandeira, mas isso não é lei nenhuma, e nem envolve crime nenhum — é simplesmente uma estupidez de 400 talheres.
Que crime é este, na lei brasileira — desconfiar, ou não gostar, de uma máquina? Não faz nenhum nexo, mas é a acusação oficial dos funcionários do sistema eleitoral que proibiram Bolsonaro de disputar eleições até o ano de 2030. A partir de agora, faz parte do X-tudo de denúncias com o qual querem condenar o ex-presidente a um total de 28 anos de cadeia. As eleições do STF, na verdade, não são sujeitas sequer a escrutínio público. Os votos, para todos os efeitos práticos, são apurados em segredo, como na Venezuela. É humanamente impossível, e muito perigoso, fiscalizar a apuração.
Nos Estados Unidos, na vitória de Donald Trump, havia 500 advogados do seu partido ao lado das urnas e na contagem de votos. Aqui o PL, que pediu legalmente uma averiguação parcial na apuração, foi multado automaticamente por Moraes em R$ 22 milhões, sem que seus advogados pudessem abrir a boca, ou tivessem direito a qualquer processo judicial.
É justiça de tribo africana nos tempos de Tarzan. “Krig-ha bandolo, tarmangani!”, grita Moraes do alto de seus inquéritos perpétuos — e todo mundo tem de obedecer, incluindo seus colegas de plenário, sob pena de processo por “atos antidemocráticos” no STF. Também é este, exatamente, o espírito da coisa, de fio a pavio, no inquérito da PF sobre o golpe militar que entrará na história mundial como o golpe que nunca foi dado. É muito simples, no fim de todas as contas. Não existe ali, em quase 900 páginas de tentativa, a prova de um único crime — e tudo o que conseguiram provar com um mínimo de coerência não é crime. Alexandre de Moraes está longe de ser o único autor nessa opereta de bulevar.
Ele conduz, mas há toda uma multidão fazendo questão de ser conduzida. A primeira da fila é a Procuradoria-Geral da República. A PGR tem tanta condição de atuar de forma imparcial nesse processo, como exige a lei, quanto o comandante da “Mancha Verde” teria para apitar um jogo do Palmeiras. Obviamente, pela observação estrita dos fatos, o MP teria de mandar para o arquivo o inquérito todo do golpe PF-Moraes; um preso por tráfico de drogas que fosse acusado da forma como Bolsonaro e os demais estão sendo acusados seria solto na hora, por inépcia grave do trabalho de investigação policial. Imagine-se, também, a cara que fariam promotores de algum país sério diante da salada mista entregue pela PF.
“Que diabo é isto aqui?”, diriam. “Vocês beberam?” Nada demonstra de maneira mais clara o verdadeiro papel da PGR nesse episódio quanto o último surto do subprocurador do Ministério Público no Tribunal de Contas da União. Você pode não acreditar, mas é fato: ele foi capaz de pedir, por escrito, que os salários de todos os indiciados pagos pelo Estado sejam bloqueados. Também quer que todos os seus bens fiquem indisponíveis, em garantia aos R$ 56 milhões em multas que, segundo os cálculos do alto Judiciário, os acusados de golpe terão de pagar pelo prejuízo que teriam causado à nação — soma que não vem de decisão judicial nenhuma. Estamos, de novo, na selva de Tarzan.
Como assim, salários bloqueados? Nenhum dos golpistas do STF foi condenado por nada até agora; nenhum, aliás, foi sequer denunciado pela PGR por algum crime. Os desembargadores de Mato Grosso do Sul acusados de vender sentenças recebem pontualmente até o último centavo dos seus salários de R$ 200 mil por mês, ou mais; a justificativa é que ainda não foram condenados. Alguém seria capaz de entender por que a PGR exige o contrário no golpe que não aconteceu? Os dependentes dos acusados, que precisam dos seus salários para se manterem vivos, não cometeram nenhum crime. Como podem ser punidos, se não fizeram nada? Não podem nem mexer no que já têm no banco? Dá para entender perfeitamente quando se vê quem exige o bloqueio: um subprocurador que nos quatro anos do governo Bolsonaro fez 539 pedidos para barrar atos oficiais do Planalto, ou um a cada três dias.
É esse o nível de profissionalismo e imparcialidade da PGR que está aí. Seu chefe, por sinal, foi nomeado para o cargo, em termos práticos, por Moraes — ele também é ex-sócio do ministro Gilmar Mendes no comércio de cursos particulares de Direito. Mais ou menos da mesma qualidade são os juristas-especialistas que correm atrás do primeiro repórter que passa ao seu alcance para dar entrevistas puxando o saco de Moraes e do STF, de olho no faturamento dos seus escritórios de advocacia. Fazem isso, em geral, de maneira particularmente abjeta. São o oposto, chocante, dos advogados que têm a coragem de defender, muitas vezes de graça, os que estão nos cárceres do STF. Todos estão jurados de morte no Supremo — mas conservam a sua honra.
Talvez ninguém, entre todos os coadjuvantes de Moraes, tenha chegado a um ponto tão baixo, em matéria de bajulação, irracionalidade e apoio à mentira quanto a maioria da imprensa brasileira. Nem no dia 1º de abril de 1964 apareceu tanto jornalista desesperado para engolir com casca e tudo o conto da PF e do ministro, ou para gritar em favor do mais forte e atirar nos feridos. Em nenhum momento desta última versão de golpe militar a mídia que se acredita “responsável” praticou jornalismo; houve apenas histeria. Nenhuma afirmação dos policiais, nem uma que fosse, foi contestada com alguma pergunta profissional dos jornalistas. Nenhuma “agência de checagem de fatos” checou absolutamente nada. Se os editores mandassem chimpanzés amestrados e equipados com gravadores para ouvir a PF, sairia a mesma coisa que saiu.
Batom é “substância inflamável”, dizem a PF e o ministro. Então é substância inflamável, repete a maior parte da mídia. Bola de gude é “arma branca”, dizem eles. Então é arma branca, repetem os jornalistas. Certificados de vacina estão ligados intimamente ao golpe; então fica tudo explicado nos jornais, na televisão e no rádio. É uma histórica pisada na jaca. Não pode nunca mais ser apagada — está escrita, gravada e assinada, e ficará como prova do momento em que a polícia virou imprensa e a imprensa virou polícia. É o funeral do Estado de Direito no Brasil.
É também uma humilhação nacional e internacional inédita para o país e para os brasileiros. Faça o seguinte teste: reúna uma banca examinadora de dez países civilizados e entregue a ela o inquérito do STF, da PGR e da PF. O que você acha que iria acontecer? Mandariam a coisa toda para a lata do lixo, por dez a zero.
Talvez chamassem a Interpol — que respeito pode querer um Brasil no qual empresas corruptas pagam multas de US$ 3,5 bilhões nos Estados Unidos por seus crimes e aqui dentro, por decisão exclusiva do STF, recebem de volta o dinheiro roubado? Por acaso isso é uma opinião? Ou um fato?
Eis aí, para resumir, o país que o STF está socando em cima dos cidadãos brasileiros. A única segurança jurídica que a “suprema corte” conseguiu criar é a segurança para os corruptos e corruptores; os ministros garantem que ninguém será punido, jamais, por roubar dinheiro público, sobretudo se o ladrão for do “campo progressista”. Em qualquer outra coisa o STF não garante rigorosamente nada, seja lá o que digam a lei, a lógica e a moral comum. O que os processos do ministro Moraes garantem sem dúvida nenhuma é que os culpados são sempre, e unicamente, os que ele diz que são culpados; já estão condenados antes do julgamento e da sentença. O mundo, provavelmente, vai ficar sabendo disso tudo em detalhes, a curto, médio e longo prazo.
Revista Oeste