Foto: Revista Oeste/IA
Ao longo de todo o governo de Bolsonaro, houve uma percepção clara de que o Judiciário passou a atuar de maneira política e partidária
N a decisão expedida em 17 de novembro de 2024, que determinou a prisão preventiva de militares envolvidos numa suposta tentativa de golpe de Estado em favor de Jair Bolsonaro, Alexandre de Moraes baseou-se num relatório da Polícia Federal sobre a atuação pretensamente golpista de agentes das Forças Especiais do Exército, os assim chamados “Kids Pretos”. Possivelmente orientada pelo próprio magistrado — tendo em vista a constante intervenção de Moraes na fase de investigação dos processos políticos que ele comanda, tal como revelado pela Vaza Toga —, a Polícia Federal listou algumas ações criminosas dos Kids Pretos, que teriam adotado “o modus operandi da milícia digital para disseminar fake news sobre possíveis fraudes nas eleições de 2022 ataques sistemáticos a ministros do STF e do TSE [sic]”, com o objetivo de “incitar parcela da população ligada à direita do espectro político a resistirem à frente das instalações militares para criar o ambienta [sic] propício ao golpe de Estado”.
De acordo com os agentes policiais autores do relatório (ou com Alexandre de Moraes falando por seu intermédio), “tais fatos criaram o ambiente propício para o florescimento de um radicalismo que culminou nos atos do dia 08 de janeiro de 2023, mas que ainda se encontra em estado de latência em parcela da sociedade, exemplificado no atentado a bomba ocorrido na data de 13/11/2024 na cidade de Brasília/DF”. Por “atentado a bomba”, o documento referia-se ao suicídio de Francisco Wanderley Luiz, apelidado de “Tiu França”, que, na data especificada, explodiu a própria cabeça com um rojão de fogos de artifício na área externa em frente ao Supremo Tribunal Federal.
O corpo do homem identificado como Francisco Wanderley Luiz, em frente ao prédio do (STF) | Foto: Agência Brasil
A argumentação do relatório, que deveria ser um trabalho policial técnico, apenas reproduz a narrativa política e o vocabulário ideologicamente marcado da esquerda brasileira desde a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, tida por ilegítima e aberrante: a de que o radicalismo político no país é obra exclusiva da direita. No relatório, a Polícia Federal atua como porta-voz das teses de Alexandre de Moraes, o “grande parceiro” do governo lulopetista, como o descreveu recentemente a primeira-dama Janja da Silva. Mas será mesmo que o “florescimento de um radicalismo (…) que ainda se encontra em estado de latência em parcela da sociedade” é um fenômeno unilateral? Será que foram realmente as pretensas técnicas de manipulação e guerra psicológica adotadas pelos tais “Kids Pretos” a causa do pretenso radicalismo que levou alguns ao extremo de cogitar medidas de força contra o poder constituído? Será que esse alegado radicalismo surgiu do nada?
Obviamente que não. Ao longo de todo o governo de Bolsonaro, houve uma percepção clara por parte do campo liberal-conservador de que o Judiciário passou a atuar de maneira ilegalmente política e partidária, impedindo, mediante o uso cada vez mais recorrente de lawfare, que a agenda eleitoralmente vitoriosa pudesse ser implementada. A coisa piorou e muito durante o calendário eleitoral de 2022, quando o tribunal eleitoral passou a atuar de maneira escancaradamente parcial, tendo os seus representantes manifestado um truculento desprezo pelas demandas por isonomia e transparência por parte de, ao menos, metade do eleitorado nacional, invariavelmente referido como “imbecil”, “extremista”, “fascista” etc., ou seja, pelos termos com que a militância radical de esquerda sempre tratou os seus adversários.
Depois do casuísmo utilizado para livrar da cadeia o candidato petista e devolver-lhe a elegibilidade, a percepção de que não tivemos um processo eleitoral conduzido legitimamente foi reforçada, por exemplo, pela prática de censura sistemática em favor da candidatura de Lula, e por falas indecorosas sussurradas ou vociferadas por autoridades eleitorais.
Terão sido os “Kids Pretos” os responsáveis por fomentar o radicalismo na direita ou ele terá origem na revolta generalizada diante de uma cena como a de Benedito Gonçalves, ministro do TSE responsável por proibir Bolsonaro de usar as imagens dos atos de 7 de Setembro e por várias outras decisões sempre contrárias ao candidato de direita, recebendo tapinhas de Lula e assegurando-lhe que “tá tudo em casa”?
Ou da cena em que, na diplomação do petista, o mesmo ministro cochichou “missão dada é missão cumprida” nos ouvidos de Alexandre de Moraes, então presidente do TSE? Ou de quando Luís Roberto Barroso, em Nova York, respondeu a um apoiador de Bolsonaro que o questionava sobre o código-fonte das urnas eletrônicas: “Perdeu, mané, não amola”? Ou de quando o mesmo Barroso se gabou por haver “derrotado o bolsonarismo” (caso em que, fosse a declaração dada por um árbitro de futebol contra um dos times após uma final, certamente ensejaria a anulação do campeonato)?
Essas e outras manifestações indecorosas por parte de servidores públicos que se comportam como militantes partidários geraram, em boa parte da sociedade, a sensação de que o Judiciário brasileiro passara a agir com base na lógica do “aos amigos tudo; aos inimigos, sequer a lei”. Foi essa sensação de que já não vivíamos sob Estado de Direito, mas sob um estado de força bruta e imposição de vontade política, que levou um setor minoritário dentro de uma grande massa de indignados a cogitar medidas de força e ações radicais desesperadas.
O extremismo político que se abateu sobre o país decerto não surgiu com a direita, tendo se revelado, antes, na conduta imprópria, parcial e disfuncional de autoridades judiciais. Um exemplo claro que contribuiu com a sensação de que a Justiça Eleitoral passara a ter lado político foi dado no caso conhecido como “Radiolão do PT”. Para quem não se lembra do episódio, em 24 de outubro de 2022, faltando uma semana para o segundo turno das eleições presidenciais, a campanha de Jair Bolsonaro — representada no ato pelo ministro das Comunicações Fábio Faria e pelo ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social Fabio Wajngarten — denunciou um possível crime eleitoral: rádios no Norte e Nordeste teriam deixado de transmitir mais de 154 mil inserções de suas propagandas no rádio, favorecendo, em contrapartida, a propaganda eleitoral do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva.
Conforme noticiado à época pelo site O Antagonista, as rádios não estariam exibindo as peças da propaganda eleitoral encaminhadas pela campanha ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão responsável pela distribuição aos veículos de comunicação. Ainda segundo a notícia, em apenas uma semana e somente na Região Nordeste, a propaganda do PT para a Presidência tivera 6 mil minutos a mais, o equivalente a cem horas de exposição, que a do PL
Na mesma noite da denúncia, e com evidente má vontade, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, intimou a campanha de Bolsonaro a provar, em até 24 horas, a suposta fraude nas inserções de rádio. Mas, além de determinar um prazo tão curto, o servidor público do TSE ainda ameaçou a campanha bolsonarista, dizendo que, caso as provas não fossem apresentadas, a apresentação da denúncia poderia caracterizar crime eleitoral. Dentro do prazo estipulado, a defesa da campanha de Jair Bolsonaro apresentou uma petição contendo um relatório de auditoria de mídia realizada pela empresa Audiency Brasil Tecnologia.
No relatório, foram apresentados recortes amostrais de oito rádios de municípios da Bahia e de Pernambuco que teriam deixado de veicular até 730 inserções da chapa do Partido Liberal (PL) no período compreendido entre os dias 7 e 14 de outubro. Apenas dois dias depois de terem sido apresentadas as provas solicitadas, Alexandre de Moraes arquivou a denúncia, em decisão baseada num estudo elaborado por um professor da PUC-RJ, o engenheiro Miguel Freitas, que utilizou dados de um perfil apócrifo no Twitter, significativamente intitulado “Desmentindo Bozo”.
\Na decisão, Moraes elogiou a análise de Freitas e de “Desmentindo Bozo” como “direta e certeira”, afirmando ainda que, por não haver apresentado provas, a campanha de Bolsonaro teria por único objetivo “tumultuar as eleições”. Daí que, além de arquivar a denúncia sem examinar os fatos com um mínimo de seriedade e isenção, Moraes também tenha determinado que o procurador-geral eleitoral, Augusto Aras, abrisse um processo administrativo para apurar um eventual desvio de finalidade da utilização do fundo partidário pelos autores para subsidiar a denúncia.
Ocorre que, como mostra uma auditoria independente recémrealizada pela equipe do jornalista investigativo David Ágape e publicada em seu site A Investigação, as informações contidas no relatório da Audiency Brasil Tecnologia, encomendado pela campanha de Bolsonaro, eram consistentes, correspondendo no geral aos resultados auditados por Ágape e sua equipe. Diferentemente do processo automatizado de checagem adotado pela Audiency, no entanto, a auditoria de A Investigação procedeu a uma checagem manual das 168 horas de arquivos de áudio disponibilizados pela auditoria do PL.
Lê-se na matéria que resume os achados da auditoria coordenada por Ágape: “Através de análise focada em uma questão palpável e factível, buscou-se responder à seguinte pergunta: afinal, com base nos arquivos disponibilizados, o método da Audiency seria eficaz para auditorias? Até que ponto a denúncia de que há discrepâncias entre as inserções do PT e do PL se sustentaria? Os resultados obtidos pela força-tarefa foram contundentes:
• O PT teve 53 minutos e 30 segundos a mais que o PL, somados os sete dias de programação das sete rádios analisadas pelo site A Investigação; • O método automatizado utilizado pela Audiency, ao contrário do que foi afirmado pelo ministro do TSE, se mostrou viável para a realização de auditorias, com uma grande precisão em comparação com a audição humana; • Constatamos também graves falhas na metodologia e nos resultados obtidos pelo professor Miguel Freitas, algo que pode ter induzido Moraes a erro em sua decisão de arquivar a denúncia e posterior investigação sobre a discrepância nas inserções nas rádios.” Não houve nenhuma contestação formal aos resultados da auditoria realizada por Ágape e sua equipe.
Em vez disso, o que ocorreu foi um ataque hacker de grandes proporções contra o site A Investigação. “Ao longo das tentativas, os sistemas de proteção detectaram o uso de bots, acesso de usuários anônimos em massa e ataques do tipo DDoS” — lêse em matéria sobre a divulgação do relatório. “A maioria destas tentativas vieram dos Estados Unidos, mas também foram identificados ataques da Alemanha, Portugal e outros países da Europa.”
“Diante dos dados obtidos a partir da investigação de nossa equipe, facilmente auditáveis através das planilhas em nosso Drive, demonstramos que o método de captação de dados de áudio da Audiency é viável para a realização de auditorias, ao contrário do que foi afirmado pelo professor engenheiro Miguel Freitas — utilizado pelo ministro presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, para arquivar a denúncia. Concluímos, portanto, que deveria ter sido dado prosseguimento à investigação solicitada, dada a importância para a democracia e sociedade.”
Mas, como a missão aparente de Moraes à frente do TSE não era atender ao interesse da sociedade, e sim fazer o que lhe estivesse ao alcance para impedir a reeleição de Bolsonaro, seu inimigo político declarado, ele obviamente não cumpriu o seu dever de examinar séria e imparcialmente a denúncia. Adotando a tese preconcebida e irredutível de que a própria presença de Bolsonaro na vida política nacional era uma espécie de aberração, e imbuído do propósito de combater o que ele chama de “extrema direita” (algo obviamente incompatível com a função de um juiz), Moraes não apenas desprezou as alegações do PL como aproveitou a oportunidade para fazer aquilo que seria a sua marca, bem como a da maioria de seus pares de tribunal: a prática de lawfare, não apenas contra o presidente e candidato Jair Bolsonaro, mas também contra os seus aliados, apoiadores e cidadãos de direita em geral.
E reside aí a origem de todo o radicalismo político hoje observado no país.
Flávio Gordon, Revista Oeste