Foto: Trevor Cokley/U.S. Air Force/Wikimedia Commons
“Sendo a base do nosso governo a opinião do povo, nossa primeira tarefa deve ser mantê-la livre; e se me incumbissem de escolher se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria por um momento em preferir a última opção”.
Carta de Thomas Jefferson a Edward Barrington (Thomas Jefferson: political writings, Cambridge University Press, 1999, p.153)
Um juiz de uma corte constitucional – cuja missão deveria se limitar a examinar a constitucionalidade de leis e atos, somente quando provocada e sempre atuando em um número bastante reduzido de casos – impôs a toda a população brasileira uma proibição. Falando em juridiquês, é uma obrigação de não fazer – de não acessar uma rede social que tinha 21 milhões de usuários no Brasil.
Em casos como esse, o indivíduo que sofre a proibição precisa ser formalmente notificado. Nenhum dos milhões de brasileiros afetados pela proibição foi notificado como manda a lei. Aliás, nenhum desses milhões de brasileiros sequer faz parte do processo. É como se dois moradores da vizinhança estivessem brigando na Justiça e o juiz do caso determinasse que você, que nada tem a ver com a história, está proibido de fazer uma coisa que tem o direito de fazer.
Os guerreiros da liberdade que sempre lutaram contra a censura mudaram de opinião, e agora consideram a censura um instrumento importante de defesa do Estado de Direito
Meus amigos juristas dizem que esse caso é um exemplo de censura somada à violação do devido processo legal. Eu não sou jurista, mas achei essa decisão terrível – e o fato dela ter sido posteriormente referendada por 5 magistrados foi mais terrível ainda. Como não sou jurista, apenas li o artigo 220 da Constituição Federal que, na minha interpretação, proíbe censura no país.
Aliás, durante muito tempo esse era o consenso. Havia até um slogan, que era repetido por intelectuais, ativistas e jornalistas, que dizia: censura nunca mais. Curiosamente, esse slogan agora foi substituído por outro que diz que “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”.
Essa frase me inspirou uma reflexão. Eu acredito, como diz meu amigo Roberto Rachewsky, que a liberdade de expressão é um direito absoluto. Isso significa que não cabe nenhum limite ou restrição prévia. Evidentemente, com a liberdade de expressão vem a responsabilidade por aquilo que se expressa. Por isso a lei prevê os crimes de injúria, calúnia e difamação, que devem ser tratados de acordo com o devido processo legal.
O Estado não pode decidir que certas coisas, das quais ele não gosta, são proibidas e outras, que o agradam, são permitidas. A censura não se justifica só porque alguém se sente agredido, ou criticado injustamente – mesmo que esse alguém seja o Estado.
Se alguém abusou da liberdade de expressão para cometer um crime, essa pessoa pode e deve ser punida. Mas ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa, ou a deixar de fazer, a não ser em virtude de lei – é o que diz a constituição e os fundamentos do Direito. É possível que, ao exercer minha liberdade de expressão, eu agrida alguém. Isso pode ser considerado um crime. Se for, o remédio é um processo judicial. O processo pode ser por injúria, calúnia ou difamação, que são crimes tipificados no código penal. Também pode caber um processo civil por perdas e danos, se meu ato causar prejuízo a alguém.
Esses processos têm que obedecer ao devido processo legal e à regra do juiz natural – o que significa que é ilegal escolher arbitrariamente o juiz ou o tribunal que vai julgar um caso particular. O juiz também precisa ser imparcial e por isso não pode ser, ele próprio, a vítima ou interessado no processo.
Basta lembrar esses fundamentos para perceber que é jurídica e moralmente injustificável a decisão de censurar milhões de cidadãos brasileiros. Não cabe ao Estado decidir o que faremos com nossa liberdade. O cidadão é livre para fazer o que quiser. Certas condutas são consideradas criminosas pela lei. É dever do Estado atuar para prevenir e impedir essas condutas, e investigar e punir os que cometem crimes. Mas ter uma opinião não é crime, tampouco criticar uma autoridade.
O fato de alguém se sentir agredido ou injustamente criticado não significa que um crime foi cometido – isso só pode ser decidido através do devido processo legal, respeitando todos os direitos e garantias do réu. Essa é a regra que sempre vigorou no Brasil no tratamento a criminosos violentos, inclusive os mais perigosos, como chefes de facções. Essa doutrina é conhecida como garantismo penal, e por trás dela está a criação de dispositivos como a audiência de custódia, que libera mais de 50% de todos os criminosos presos em flagrante.
Aparentemente, quando se trata de liberdade de expressão, o garantismo ficou guardado na gaveta. Os guerreiros da liberdade que sempre lutaram contra a censura mudaram de opinião, e agora consideram a censura um instrumento importante de defesa do Estado de Direito. Como diz o advogado André Marsiglia em seu excelente livro Censura Por Toda a Parte, “chegamos a um ponto em que a censura, quando identificada, é aceita como um instrumento de ordem”.
O livro de Marsiglia mostra que a decisão contra a rede social X não é um evento isolado, mas sim a extensão de um processo que começou com a abertura, em 2019, do inquérito 4.781, conhecido como inquérito das Fake News ou, mais carinhosamente, como Inquérito do Fim do Mundo.
Diz André Marsiglia: “O inquérito 4.781 aos poucos foi se transformando em um polvo gigante e indigesto, com tentáculos infinitos. Investigava Fake News contra membros da corte, depois passou a investigar possíveis milícias digitais, e por fim foi ampliado para alcançar atos democráticos. Atualmente, além do 4781, são mais oito inquéritos. Todos são sigilosos e de autoria do mesmo ministro”
É possível observar que há três tipos de decisões judiciais que podem ser consideradas injustas. O primeiro tipo é a decisão que segue todas as leis, normas e ritos, mas que não faz justiça. Por exemplo, uma decisão que libera um criminoso, preso em flagrante, na audiência de custódia, em nome da redução da “superlotação carcerária”.
O segundo tipo de decisão injusta é aquele que viola a Constituição, a lei, o Direito ou a jurisprudência. Um bom exemplo é o magistrado que julga um processo no qual ele também figura como vítima.
O terceiro tipo de decisão judicial injusta é aquele que está tão fora do ordenamento jurídico a ponto de ser considerado uma decisão antijurídica, alienígena à legalidade. Esse tipo de decisão não pode mais ser descrito ou analisado utilizando-se o vocabulário do Direito. É necessário recorrer à política, à história ou às narrativas distópicas como os livros 1984 e a Revolução dos Bichos.
Para que o Brasil volte à normalidade é preciso muito trabalho. Discursos em cima de carros de som nada resolvem. Reclamações não adiantam, postagens indignadas e lacração produzem resultado nulo. Não há saída milagrosa nem solução fácil ou rápida.
Soluções só serão possíveis quando a maioria dos formadores de opinião estiver consciente da gravidade do que está acontecendo. Mas ainda há muitos pessoas e entidades aplaudindo os eventos recentes. Aplaudindo a censura.
Eu sempre defendi a autocontenção dos poderes como a única estratégia sustentável para saída da crise institucional. O secretário de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, Fábio Prieto – que foi presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região –aponta um caminho.
Fabio diz que o Poder Judiciário e o Sistema de Justiça deram grandes contribuições ao Brasil, mas que chegou a hora de ambos renunciarem a algumas de suas competências para que elas sejam assumidas pelos cidadãos. Segundo Fabio Prieto, a pacificação do país só poderá ser alcançada se o Judiciário der mais responsabilidade e mais poder de crítica e de escolha ao eleitor.
“O Judiciário fez um trabalho relevante ao longo dos anos e deu a sua contribuição”, diz Fábio, que continua: “Mas agora é hora de concluirmos essa caminhada. E como se conclui? Dando poderes cívicos ao cidadão. E responsabilidade. Se o poder vai ser bem ou mal exercido, essa é uma responsabilidade do cidadão”.
Roberto Motta, Gazeta do Povo