“O Passado Promete”, de Guilherme Fiuza: leia para não ser escravizado pela realidade.| Foto: Divulgação
Acabei de virar a última página de “O Passado Promete”, de Guilherme Fiuza. Não faz nem cinco minutos. Ter lido o romance foi um prazer que me manteve ocupado nas últimas duas semanas. Tempo demais, mas isso não tem a ver com o ritmo ligeiro e fluido do romance. É que minha capacidade de concentração está prejudicada e hoje em dia leio a conta-gotas mesmo. Mas agora vem a parte mais difícil: explicar ao leitor, você, por que vale a pena ler “O Passado Promete”. Afinal, nestes tempos de fadiga da informação, tenho certeza de que você é bem criterioso quanto ao tempo que “desperdiça” com essa tal de literatura. Né?
Pois começaria, aliás, começarei dizendo que você será surpreendido com a leitura de “O Passado Promete”. Pelo menos eu me surpreendi, e não foi pouco. Acontece que vivemos tempos hiperpolitizados, como você bem sabe, e o autor (um tal de Guilherme Fiuza, já ouviu falar nele?) é indissociável desse conflito que é a marca do nosso tempo. Aí você pega um livro cuja capa emula a diagramação da capa de um jornal, cheia de notícias políticas, faz um cálculo mental rápido e.
E se engana achando que “O Passado Promete” é um livro político, no sentido mais medíocre do termo. Não é – e ainda bem! Aliás, se eu fosse ditador por um dia (e já que está na moda), proibiria sumariamente a publicação e circulação de livros com alegorias óbvias sobre a situação política atual do Brasil. E, no embalo, proibiria também a circulação de tudo o que cheirasse a identitarismo e crítica social. Só para ver escritor dando chilique.
Voltando à surpresa, porém. Talvez o autor, ocupado que está em torcer para o seu Fluminense, não tenha se dado conta da generosidade que é oferecer a um público escravizado pela realidade e avesso à fantasia uma história como a que ele narra: a de um Carlos Lacerda que se recusou a morrer e se juntou a uma turma do barulho para aprontar altas confusões. Mas a mim, que sou perspicaz como... como... um caçador de borboletas (!), a generosidade do Fiuza não passou despercebida. E por ela vou agradecer.
Cotidiano metafísico burlesco (ó que chique!)
Obrigado, Fiuza. Andava precisando de um pouco de fantasia e se fosse só por isso o livro estava mais que recomendado. Mas não é. Outra qualidade de “O Passado Promete” é reduzir vultos políticos como Juscelino Kubitschek, Brizola e o próprio Carlos Lacerda à sua dimensão humana, em tudo o que ela tem de simplória, brejeira e, vá lá, tragicômica. E neste momento, pedindo desde já perdão ao leitor, vou me permitir ser contraditório e dizer que há uma associação possível entre o romance e com a política atual.
(Putzgrila. Nem acredito que vou me contradizer assim na cara dura. Mas aqui vai).
Acontece que por trás dos nomes da política brasileira contemporânea, de Lula a Bolsonaro, passando por Lira e Pacheco, e sem se esquecer daqueles que são políticos, mas não deveriam, como Alexandre de Moraes e Flávio Dino, há mães autoritárias e casamentos instáveis e amantes e ambições e sonhos e segredos e caprichos. Há até paixões futebolísticas. Enfim, há todo um cotidiano metafísico burlesco que nos escapa. Aliás, vou cometer a ousadia de dizer aqui que o fato de esse cotidiano metafísico burlesco nos escapar é o que explica a insanidade do debate público.
Por fim, vou falar uma coisa que talvez irrite os engenheiros, bacharéis, diplomatas (referência a um quadro dos Trapalhões), scholars, eruditos e literatos. Mas não é para essas pessoas que escrevo, e sim para você. Então lá vai: leia “O Passado Promete” e consuma ficção para expandir o seu imaginário. Porque, se você não ler ficção (tem que ser ficção!), vai acabar escravizado pela realidade. Pela superficialidade do noticiário. Vai limitar a sua vida à experiência do concreto. Pior! Vai limitar a sua vida à experiência cafona e opressora do abstrato político, jurídico e acadêmico.
Sei que em algum momento do texto eu deveria ter feito uma sinopse. Mas não sou muito bom nisso. Também deveria ter incluído aí uma opinião pessoal sobre o livro. Mas é claro que gostei. Se não tivesse gostado, não teria escrito. Que mais? Posso chamar “O Passado Promete” de thriller? Acho que disse tudo o que tinha para dizer e agora vou encerrar com uma reflexão rápida e enigmática (menos para os leitores de “O Passado Promete”): promulgar uma Constituição assim, com base no ódio e nojo da ditadura, e cheia de promessas irrealizáveis, jamais poderia ter dado certo mesmo. Vai ver faltou um tio Benjamin para esfregar a sua “sobriedade etílica” na cara do dr. Ulysses & Cia.
Aqui você lê o primeiro capítulo de “O Passado Promete”, de Guilherme Fiuza.
Gazeta do Povo