sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

'Profissões em extinção', por Cristyan Costa

 

Cena do filme As Telefonistas . No Brasil, essa profissão era indispensável até a década de 1980. Hoje, diante da automação da telefonia, está praticamente extinta | Foto: Divulgação


Os perfis de um consertador de canetas, um engraxate e um alfaiate mostram virtudes raras hoje em dia: disciplina, persistência e paciência


Num mundo cada vez mais apressado, ainda há pessoas que insistem em preservar tradições de um tempo que aparentemente já passou. É o caso de Cícero Cristiano, Agnaldo “Alemão” e Alexandre Mirkai. O consertador de canetas, o engraxate de sapatos e o alfaiate têm em comum virtudes raras hoje em dia: a disciplina, a persistência e a paciência. Inerentes à profissão de cada um, essas características transformaram esses três personagens em exemplares de espécies em risco de extinção.

A seguir, o perfil de cada um deles.

O médico das penas

O médico das canetas Cícero Cristiano, durante o ‘exame’ de uma caneta-tinteiro da década de 1940 | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

A viagem ao passado começa já na entrada do prédio localizado em uma das ruas que margeiam a Praça da Sé onde está, três andares acima, o “médico das canetas”. O edifício, na Barão de Paranapiacaba, conhecida como a Rua do Ouro, pela variedade de joalherias, ainda ostenta escadas de mármore branco, com parapeito de ferro e corrimão de carvalho que exalam cheiro de coisa antiga. Subi-las é como entrar num túnel do tempo que leva de volta à década de 1940.

A portaria dispensa os visitantes de apresentações de documentos pessoais, fotografias computadorizadas, catracas e crachás. No hall apertado, o porteiro sexagenário com roupas folgadas e semblante cansado informa a novatos o caminho que conduz à “oficina do doutor Roberto”. Ao chegarem à loja, uma placa de aço escovado avisa que ali funciona o negócio que tem mais de cinco décadas.

Armários onde Cícero guarda peças de canetas | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

A sala com paredes brancas tem várias prateleiras de vidro com todos os tipos de canetas que se possa imaginar. A organização minuciosa das peças lembra uma exposição de museu, e a boa iluminação do ambiente faz os objetos reluzirem como joias. Parker, Montblanc e Crown são algumas das inúmeras marcas expostas. No canto direito da sala, perto de uma galeria de quadros com notícias de jornal estampando o rosto de Roberto, fica Patrícia. A mulher de cabelos loiros e olhos verdes, escancara um largo sorriso ao falar sobre o pai. Ela assumiu o negócio depois de ele ter falecido, em 2017. Como os irmãos não quiseram tocar a empresa, ela “manteve o legado”, diz.

Patrícia Marques, a filha do ‘doutor Roberto’ e herdeira da icônica loja no centro de São Paulo, posa ao lado de reportagens contando a história do pai | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Ao chegar uma encomenda, ela pede à secretária que entregue a Cícero Cristiano, que fica em uma sala no fundo da loja. Ali, uma luminária sobre a mesa bagunçada revela os primeiros contornos de uma oficina escura, com armários antigos que guardam peças e ferramentas de trabalho. Em uma cadeira de couro surrado, senta-se o homem de 48 anos, tímido e compenetrado nas canetas. Ele acaricia a barba com alguns fios brancos enquanto examina as “pacientes” em cima de um pano branco sujo de tinta. Cícero começou a trabalhar com Roberto aos 12 anos, como motoboy. Depois, tornou-se consertador de canetas. Ao longo de 36 anos, aprendeu tudo com o mestre. Em razão da morte do mentor, herdou o título de “médico das canetas”.

“Perco a noção do tempo quando estou na oficina”, disse, ao manusear uma caneta-tinteiro de colecionador, de quase cem anos. Cícero remove a pena com facilidade e logo identifica o problema. “Está quebrada na parte interna da ponta, mas já sei o que fazer nesse caso.” Ele separa algumas ferramentas, a centímetros de distância, e põe a caneta perto delas, para arrumá-la depois. Na sequência, pega uma esferográfica antiga e vê que o problema está no bocal. “Vai precisar de uma ferramenta nova que terei de fazer”, observou, ao mencionar que também cria seus instrumentos de trabalho.

Além de consertar, Cícero também faz o trabalho de restauração, que vai do desentortar de penas (operações que chegam a durar cinco horas) à básica substituição da haste das tampas (não mais que dez minutos). Ele não pensa em largar o ofício, apesar de saber que sua profissão corre o risco de deixar de existir. Indiferente a isso, diz que “faz tudo com gosto” e segue como mantra um dos ensinamentos do mestre: “Não enganar o cliente jamais”.

O mestre dos sapatos

‘Alemão’ coloca fogo em um sapato de couro, para a tinta penetrar melhor | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Em um tablado com duas cadeiras de couro, no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, fica Agnaldo, conhecido como “Alemão”, 82 anos. Ele trabalha como engraxate há 60 e está no mesmo lugar há 57. “Já me tornei patrimônio aqui”, brinca o senhor de estatura baixa, acanhado, de olhos azuis, ao mesmo tempo em que organiza seis pares de escovas, buchas e tintas. Conhecidos passam ao redor, o cumprimentam e dizem sempre quase a mesma coisa a novos visitantes: “Esse aí tem história para contar”.

“Leva mais tempo que para formar um médico e, infelizmente, nem todos estão dispostos a isso”

Um cliente chega com um par de sapatos sociais marrom, surrados e sem brilho. “Pode voltar daqui a meia hora”, avisou Alemão, enquanto tateia o couro com as mãos calejadas sujas de graxa. O homem abre uma gaveta, na parte inferior do tablado, separa alguns frascos de tinta e pega um pano branco. “O primeiro passo é limpar”, ensina Alemão, ao derramar um pouco de tinta, na sequência, e atear fogo com um isqueiro. As chamas logo se apagam. “As pessoas se assustam, porém, não deveriam. Da mesma forma que os poros do corpo dilatam, assim é com o couro. Ao colocar fogo nele, consigo fazer a tinta penetrar melhor.”

Oficina de trabalho do “Alemão”, no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Clientes que preferem o serviço na hora estranham o procedimento num primeiro momento. “Contudo, de tão rápido que é, a pessoa mal sente os pés ficarem quentes”, tranquiliza Alemão. Um dos que experimentaram essa sensação foi o então juiz da Lava Jato, Sergio Moro, “que gostou muito do serviço quando foi atendido ali”, conta. Alemão também presta serviço para pessoas famosas que frequentam o tablado e “políticos safados”, como ele mesmo diz, sem citar nomes e sem rodeios. O engraxate orgulha-se de já ter cuidado dos sapatos de figuras de sucesso na década de 1970, como Agnaldo Timóteo e Odair José.

Após “rejuvenescer” o couro, Alemão faz o filete do sapato, ao redor da sola, passando um pouco de graxa. Depois, hidrata, passa uma escova e coloca a mão na parte de dentro do calçado, para tirar o aspecto de “amassado”. Alemão aprendeu essas técnicas antes de se tornar engraxate, quando trabalhou num curtume (local onde ocorre o tratamento químico de couro cru ou pele animal) em uma fazenda, no Rio Grande do Sul. Alemão também restaura bolsas e já fez até sofás.

Sapato de couro, antes e depois | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Ele também já serviu como militar e teve uma banca de jornal. Mas se deu bem mesmo como engraxate. “Trabalho há muitos anos nesse ramo e vou morrer fazendo isso”, assegura. Para ele, “a vida é uma brincadeira” e é preciso aproveitá-la fazendo o que se gosta, “antes que ela acabe”.

Um artesão sob medida 

O alfaiate Alexandre Mirkai, ao lado do filho, na loja em Indianópolis, zona sul de São Paulo | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Tirar a medida do cliente, desenhar o modelo no papel, cortar o tecido e costurar na máquina e à mão, resume o alfaiate Alexandre Mirkai, sobre o processo de criação de um traje social. Aos 84 anos, ele atua há 60 nesse ofício, numa loja em Indianópolis, bairro da zona sul da capital paulista. O ateliê funciona no mesmo local desde 1961. Mirkai chega às 6 horas, uma hora antes dos funcionários, faz e serve o café da manhã. Depois, começa a cortar as peças e prepará-las para a costura. Só vai embora às 17h30.

“O tempo que dura para um terno ficar bem-feito é de 50 horas”, afirmou o homem de estatura baixa, cabelos grisalhos e voz calma, enquanto acaricia os botões da camisa social branca feita sob medida, contrastando com a calça preta e o par de sapatos social de couro da mesma cor. “Dificilmente, encontra-se gente interessada em se aperfeiçoar nisso. Hoje em dia, com a digitalização, os jovens querem aprender as coisas em dois tempos e já sair ganhando muito dinheiro. Ser alfaiate requer bastante paciência, algo que praticamente não se tem mais.”

Prateleiras da loja de Alexandre Mirkai, em Indianópolis, zona sul de São Paulo | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Prateleiras da loja de Alexandre Mirkai, em Indianópolis, zona sul de São Paulo | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Segundo Mirkai, precisa-se de dez anos para um alfaiate adquirir “maioridade” na profissão. “Leva mais tempo que para formar um médico e, infelizmente, nem todos estão dispostos a isso”, observou, ao mencionar que, em 2005, chegou a abrir uma escola de alfaiataria, fez propaganda, mas os alunos não apareceram. Hoje, vê-se obrigado a assistir, com pesar, a seus concorrentes da indústria têxtil, do e-commerce e das roupas vindas da China “vencerem” a batalha contra o bom gosto e a elegância. Mirkai aprendeu desde cedo com dois de seus ídolos: o alfaiate Vicente Farina, que costurava para a cantora e atriz Carmen Miranda e para o ex-presidente Getúlio Vargas, e Kalman, seu pai.

De origem húngara, o patriarca da família também era alfaiate. O homem abriu a primeira loja na Vila Isabel, zona leste de São Paulo. Com 12 anos, Mirkai já mostrava interesse por agulhas, máquinas de costura e tecidos. Aos 15, iniciou na profissão, um ano depois já conseguia fazer um traje completo. Quando chegou aos 18, no Exército, passou a cuidar da roupa de um capitão, para ganhar folga aos sábados e domingos. Casou-se, aos 22, com uma professora de piano. “Nunca pensei em fazer outra coisa, se não ser alfaiate”, garantiu.

Enquanto observava as prateleiras cheias de tecidos dobrados de várias cores no térreo da loja, Mirkai recordou-se das roupas inusitadas que já fez. Uma delas foi uma fantasia de rei, encomendada por um cliente para participar de um concurso de Carnaval. “Foi um barato”, disse. “A filha dele até trouxe a pedraria para pôr naquela longa capa”, recordou, ao sorrir e ajustar a armação dos óculos que quase desaparecem em seu rosto longo e fino. Mirkai também fez uma batina idêntica à de um padre franciscano para um amigo, o vice-presidente da Transbrasil, usar numa festa em um cruzeiro.

Embora não se considere um saudosista, os olhos de Mirkai brilham ao se recordar de como as pessoas se vestiam antigamente. “Para ter ideia, usava-se terno para ir ao cinema”, conta. “Meu sogro era metalúrgico. Saía de casa usando terno, gravata e chapéu. Eu fazia ternos até para servente de pedreiro. Infelizmente, o hábito de andar com classe está acabando. Não sei o que vai acontecer com a alfaiataria no futuro. Sei que vou continuar trabalhando com o que amo: fazer roupas.”

Leia também “Vidas suspensas”

Revista Oeste