Neil Young, que no passado já foi contra a ciência, opta pela intolerância em sua cruzada contra o podcaster Joe Rogan.| Foto: Agência EFE
Na semana passada, o lendário cantor canadense Neil Young deu um ultimato ao serviço de streaming musical Spotify. “Quero que o Spotify saiba HOJE que quero todas as minhas músicas fora da plataforma”, escreveu ele numa carta aberta publicada em seu website. “Eles podem ficar com [Joe] Rogan ou Young. Não os dois”.
Young estava furioso por causa das “informações falsas sobre vacinas” dita no podcast de Rogan, o The Joe Rogan Experience, que tem em média 11 milhões de ouvintes por episódio, de acordo com as estimativas. Recentemente, Rogan estrevistou vários cientistas e especialistas em saúde, e alguns deles foram céticos quanto às vacinas contra a Covid-19.
Young tirou rapidamente a carta do website, mas parece que o ultimato era sério. O serviço de streaming já começou a excluir as músicas de Young.
De certa forma, aqui vemos o mercado funcionando. Young chegou à conclusão de que não queria estar no Spotify com Rogan. O Spotify ficou ao lado de Rogan. Cada um dos envolvidos fez sua escolha: Rogan pôde manter a independência e Young agora não se sentirá mais incomodado por dividir a plataforma com alguém cujas opiniões ele repudia. Não é uma vitória da censura.
Mas se você ainda acha que “censura” talvez não seja a melhor palavra para descrever aqueles que pressionam o Spotify a se livrar de Rogan, pense nisso: a plataforma é o maior serviço de streaming do mundo, com avassaladores 31% de participação nesse mercado. Quando uma empresa privada controla uma porção tão grande do ecossistema, suas decisões são mais do que meros atos de moderação: é como se a empresa estivesse estabelecendo os limites do debate público. Por isso é que Young acredita que as opiniões de Rogan não deveriam ter no Spotify uma plataforma.
Isso nos traz ao detalhe surpreendente desta história. Desde quando Young se tornou o tipo de gente que defende que se cale um oponente ideológico? O artista fez fama como personagem da contracultura nos anos 1960, manifestando-se contra o establishment cultural e político e trabalhando com Crosby, Stills, & Nash para lançar “Ohio”, uma poderosa música de protesto lançada depois do assassinato de manifestantes na Kent State University em 1970. A música se tornou um hino do movimento contrário à Guerra do Vietnã. Algumas estações de rádio, temerosas da letra que falava em “soldados nos matando”, baniram a música, mas as rádios alternativas ajudaram a fazer dela um sucesso. Young continuou sendo um nome importante da contracultura nas décadas seguintes. Em 2006, ele voltou a tocar com Crosby, Stills, & Nash, cantando músicas contra a Guerra do Iraque e George W. Bush. Era a chamada “Turnê da Liberdade de Expressão”, que deve início na Filadélfia, berço da Constituição.
A transformação de Young, antes um defensor da liberdade de expressão e agora um defensor da burocracia e da censura, não ocorreu num vácuo. Os progressistas se tornaram cada vez mais censores nos últimos anos. A maioria dos democratas hoje acredita que tanto as empresas privadas quanto o governo norte-americano deveriam “agir para restringir as informações falsas online”.
Muitos esquerdistas antes militavam pela liberdade de expressão porque acreditavam que opiniões equivocadas e até ofensivas eram dignas de manifestação. Quando a Universidade de Yale convidou o segregacionista George Wallace para uma palestra, a famosa ativista dos direitos civis Pauli Murray (que cursava direito em Yale) defendeu a liberdade de expressão.
“Essa controvérsia me afeta de duas formas, porque sou uma advogada comprometida com os direitos civis, incluindo a liberdade, mas também sou uma negra que sofreu com os males da segregação racial”, escreveu ela. Murray, contudo, não via sentido em impedir que Wallace tivesse a mesma liberdade que ela defendia para todos.
“A possibilidade de violência não basta para impedir um indivíduo de expressar seu direito constitucional”, disse ela. “Esse é o princípio por trás da ideia de garantir o direito de muitos que queriam frequentar escolas segregadas, mesmo diante de uma comunidade hostil e ameaças de violência. Temos de agir da mesma forma no caso do governador Wallace”.
Esse ponto de vista não tem muita semelhança com o que defendem os ativistas da esquerda contemporânea e que agora correm para chamar os discursos com os quais não concordam de “mentira” e “discurso de ódio”, a fim de justificar a censura.
A cruzada de Young contra as desinformações científicas também é irônica porque ele próprio já disseminou desinformações desse tipo. O músico há tempos se opõe ao uso de alimentos transgênicos. Em sua música “A Rock Star Bucks a Coffee Shop”, de 2005, ouvimos “Sim, quero uma xícara de café, mas não quero café geneticamente modificado/ gosto de começar o dia sem a ajuda da Monsanto”. Quando o apresentador Stephen Colbert mostrou a Young pesquisas dizendo que não havia nenhum problema com os produtos transgênicos, o cantor contra-argumentou: “Essa pesquisa deve ter sido feita pela Monsanto! Ela não fala das doenças horríveis e outras coisas que estão acontecendo”. Se falar bobagem sobre uma tecnologia científica que salva vidas é motivo para censurar alguém, será que o próprio Young não deveria ter sido censurado?
Refletindo sobre a perseguição à liberdade de expressão na cultura política norte-americana, me lembrei de uma conversa que tive com um amigo paquistanês na faculdade. Ao contrário de mim – nascido e criado nos Estados Unidos – ele nascera no Paquistão. Assim como eu, ele era jornalista. Discutíamos por que os paquistaneses pediam que o governo fechasse uma estação de TV que exibia matérias antigoverno. Para minha surpresa, ele defendia o fechamento da TV, apesar de ter saído às ruas para protestar contra a ditatura de Musharaff. Ele me disse que eu só defendia a liberdade de expressão porque morava nos Estados Unidos, um país estável e que podia se dar ao luxo de tais liberdades, e que no Paquistão era diferente.
Os norte-americanos hoje têm de decidir que tipo de país são os Estados Unidos. Queremos nos ver como um país frágil e incapaz de gozar de um luxo como a liberdade de expressão? Ou será que ainda temos autoestima o bastante para defendermos um dos nossos princípios basilares? Não precisamos acompanhar Neil Young e outros por esse caminho sombrio.
Zai Jilani é jornalista e já trabalhou para o UC Berkeley’s Greater Good Science Center e o Center for American Progress.
Gazeta do Povo com City Journal