Nos Estados Unidos há 16 anos, Fernando Kawai fez trabalho voluntário na favela carioca da Rocinha e atuou contra o coronavírus no Hospital das Clínicas, em São Paulo
“Saí da frigideira para pular no fogo.” Com essas palavras Fernando Kawai, médico brasileiro que há 16 anos trabalha nos Estados Unidos, define a ação que realizou nos últimos meses. Atuante em hospital no distrito nova-iorquino do Queens durante o epicentro do contágio pela covid-19, ele deixou o país norte-americano. Veio para São Paulo. A missão, contudo, seguiu a mesma: trabalhar na linha de frente do combate ao novo coronavírus.
Kawai trocou, assim, um epicentro do novo coronavírus por outro. Afinal, a capital paulista é a cidade do Brasil que mais registra mortes em decorrência da pandemia. Interessado em “devolver ao Estado de São Paulo um pouco do que recebeu”, isso porque é formado em medicina pela USP, ele se surpreendeu quando iniciou seus trabalhos no mês passado no Hospital das Clínicas (HC). De acordo com o médico, o HC estava mais bem estruturado do que o complexo em que ele dava plantão no Queens.
“Está movimentado, mas tem um fluxo de trabalho. Prepararam bem a equipe, tinha equipamento de proteção”, comenta Kawai em entrevista exclusiva a Oeste. Conforme detalhado pelo médico, o Hospital das Clínicas não apresentou o “oceano de macas” com que chegou a deparar em Nova York. “Dentro dos recursos, o pessoal estava atendendo a população do SUS superbem”, prossegue o médico, que é especializado em clínica geral, geriatria e cuidados paliativos. “Fiquei impressionado”, enfatiza.
Comparação com Nova York
Nos Estados Unidos, o médico enfrentou situação oposta. Diferentemente do HC, o hospital do Queens não o impressionou positivamente no combate à covid-19. Ele avalia, entretanto, que o distrito nova-iorquino não teve tempo de se preparar para receber o volume de pacientes. Isso porque, conforme lembra o médico brasileiro, a sensação era a de que todo mundo se infectara com o novo coronavírus no mesmo momento.
“Espalhou que nem fogo lá [no Queens]. Nosso hospital ficou completamente sobrecarregado. A gente tinha 610 leitos, sendo 150 de UTI. Mas todo dia estávamos recebendo centenas de novos pacientes. Chegou a existir um ‘oceano de macas’, formado por pessoas em estado grave esperando vaga [na enfermaria]”, lamenta. Ele, contudo, ressalta a estrutura e o investimento por parte dos governantes norte-americanos na área da saúde. “Não houve muito tempo [para se organizar]”, diz antes de voltar a fazer uma comparação. “Mas aqui [São Paulo] tiveram esse tempo para se preparar.”
Cuidando da família e de colegas
Mais do que atuar na linha de frente contra a covid-19 nos Estados Unidos e no Brasil, Fernando Kawai entrou para a lista de pessoas que venceram a doença. Antes de encontrar a situação calamitosa em Nova York, ele esteve no Rio de Janeiro em meados de março, pois tinha de cumprir agenda para lecionar e, sobretudo, realizar trabalho voluntário na comunidade da Rocinha. No retorno para casa, descobriu: estava infectado pelo novo coronavírus. Não sabe informar, entretanto, onde se contaminou.
Além de ter de encarar a doença, o médico brasileiro enfrentou outros dois desafios. Primeiramente, cuidou da própria família. Afinal, sua esposa e um dos dois filhos também contraíram a covid-19. Assim como ele, a mulher e o filho se recuperaram. O mesmo, infelizmente, não ocorreu com diversos pacientes atendidos no hospital do Queens. E, consequentemente, com colegas da área médica. “Teve o caso de um médico de 70 anos do nosso hospital. Ele estava atendendo, pegou o vírus, foi para a UTI, mas não resistiu.”
Diante da situação, sobretudo a que vivenciou em Nova York, Kawai pôs em prática uma de suas especializações. Dessa forma, dedicou-se à parte de cuidados paliativos. Ou seja: buscou métodos para amenizar a dor e o sofrimento de quem estava em estado grave ou em fase terminal. Trabalho, aliás, que não se restringiu aos pacientes. “Fazia reuniões virtuais com a família, pois o sofrimento não é tão somente do paciente. Os familiares sofrem junto. Ninguém quer perder a esposa, um filho ou o pai, por exemplo.”
Ficar em casa? Depende!
O número de mortes em decorrência da covid-19 poderia ter sido menor no Queens? Para o médico brasileiro, a resposta não é tão simples. Ciente de que é preciso tomar medidas para evitar o contágio pelo novo coronavírus, ele entende, no entanto, que há pessoas que não conseguem interromper suas atividades. Nesse sentido, Kawai explica que o distrito de Nova York está distante da imagem atrelada à Ilha de Manhattan. De acordo com ele, a região é composta de imigrantes do mundo todo que trabalham diariamente neste período.
“Pessoas em regiões conglomeradas estão sob imenso risco”
Situação que ocorre não apenas no Queens. O médico conta que visita o Brasil em média quatro vezes por ano para realizar trabalhos voluntários e compreende como é a vida em comunidades carentes. Além de ter recentemente ficado na Rocinha, ele já desenvolveu atividades na Amazônia e nas favelas paulistanas. Como resultado dessa experiência, ele avisa que não dá para simplesmente pedir à população dessas — e de outras — comunidades que fique em casa por tempo indeterminado.
Hotéis de campanha
Para ele, é preciso criar políticas para proteger a população vulnerável em favelas. “É um vírus perigoso, potencialmente letal e, sobretudo, pessoas em regiões conglomeradas estão sob imenso risco de ter a doença”, alerta. Nesse sentido, ele clama pela testagem em massa em comunidades carentes. Uma vez que o resultado do teste seja positivo, é preciso isolar a pessoa, além de monitorar quem convive com ela.
Não adianta, contudo, pedir que se cumpra isolamento em casa. “Não tem como, vai espalhar como fogo”, diz. “Tem que ter uma ajuda do Estado e da iniciativa privada.” É preciso criar “centros de isolamento”, explicando que seriam uma espécie de “hotéis de campanha”. Por fim, Kawai sugere até o fornecimento de uma ajuda de custo de R$ 500 para infectados de baixa renda cumprirem a quarentena nesses locais. “Não adianta dizer fique em casa e se vire. A pessoa não vai parar, pois precisa trabalhar para conseguir comer.”
Ciência, mas sem política
Médico formado pela USP e com estudos realizados nos Estados norte-americanos de Nova York, Massachusetts e Califórnia, Fernando Kawai se posiciona como um pleno defensor da ciência. Por isso, aproveita a entrevista a Oeste para reforçar que, mesmo diante de tantas pesquisas para o desenvolvimento de remédios e vacinas, a prevenção contra a covid-19 é o melhor a fazer no momento. “A ciência não se faz do dia para a noite”, comenta, pontuando que soluções contra a doença levarão meses para chegar à população.
Independentemente de trabalhos em prol de antídotos e medicamentos, o médico enfatiza que é preciso que a ciência caminhe de forma livre. Em outras palavras, não se pode associar a ciência à política. Na visão dele, contudo, isso vem ocorrendo mundo afora. “A gente tem que tomar cuidado para não politizar essa questão. É uma doença nova e, infelizmente, erros vão ocorrer”, afirma. Citou, nesse sentido, as idas e vindas dos discursos feitos pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em virtude de tal entendimento, ele destaca: “A própria cloroquina foi muito politizada. Eu quero saber, pela ciência, se algo funciona ou não funciona. Se funcionar, vou usar e não me importa se quem falou foi o Bolsonaro ou o Lula”. O médico Fernando Kawai mostra assim o olhar de quem já esteve na linha de frente no combate à pandemia nos Estados Unidos e no Brasil.
Anderson Scardoelli, Revista Oeste