Não vai ser fácil. Enquanto a pandemia do novo coronavírus se arrasta e implode os planos de companhias e indivíduos neste 2020, aqui e ali já surgem conversas na tentativa de pensar as relações comerciais depois da catástrofe. Isso vai além das medidas de estímulo à economia, conforme prometido por vários governos mundo afora, inclusive o brasileiro. Muito embora não exista projeção segura para a retomada da atividade econômica nos moldes pré-março deste ano, tem havido a busca por uma alternativa que se impõe a partir da seguinte pergunta: e se a economia global não fosse tão dependente assim da China?
A resposta está longe de ser simples porque, hoje em dia, não apenas a produção industrial está ancorada em território chinês, mas, também, a própria dinâmica de trabalho forjada naquele país se tornou a referência, que parece se impor de um jeito que foge à compreensão do Ocidente. Quem assistiu a American Factory, documentário disponível no Netflix e que contou com a bênção do casal Obama, sabe do que se trata: mais do que ser voltada para o lucro, a mentalidade chinesa do trabalho enxerga no modus operandi um fim em si mesmo de como os negócios devem ser tocados. Sob o risco de apresentar algum spoiler, a mensagem no final do documentário soa inexorável: o mundo fabril será totalmente substituído por máquinas; e o modelo chinês, enfim, sairá vencedor.
Ocorre que mesmo aquela projeção já parece datada, pouco mais de dois meses após a cerimônia do Oscar. A pandemia do novo coronavírus escancarou o que já se sussurrava nos gabinetes políticos do mundo rico, incomodando estrategistas que observam o cálculo geopolítico e motivando campanhas eleitorais como a de Donald Trump.
Qualquer crítica era vista como argumento antiglobalização, sobretudo porque promover o outsourcing da produção industrial não era apenas mais lógico, como também mais rentável — o consumidor comum nos Estados Unidos não imagina o preço de um iPhone se o produto fosse montado em território norte-americano. Para efeitos de comparação, o salário inicial de um trabalhador da FoxConn, contratada da Apple com unidades na China, está na faixa de US$ 3,15 a hora, ante US$ 7,15 nos Estados Unidos.
O aumento de preço no produto final também seria notado em outros itens, caso a etapa fabril não fosse realizada na China. Há anos, marcas como Nike e Adidas terceirizaram os processos não criativos para empresas chinesas. O resultado pode ser visto no baixo custo de produção: em torno de US$ 28 (Nike) e US$ 27 (Adidas). Em 2019, por ocasião do frenesi em torno da guerra comercial entre Estados Unidos e China, a estimativa era de que o valor final de um tênis de corrida, por exemplo, passaria de US$ 150 para US$ 206.
A Asics, marca esportiva, cogitava mudar sua produção para o Vietnã e para a Indonésia. No mesmo mês, a japonesa Daikin Industries planejava transferir a montagem de ar-condicionado para a Malásia ou para outra parte distante da província de Hubei, que à época estava sob lockdown. No início de abril, o governo japonês anunciou um pacote de estímulos de US$ 2 bilhões em apoio para empresas que desejem levar a produção de volta para o Japão. E outros US$ 200 milhões para as que quiserem deixar a China e se mudar para outros países.
Em um movimento semelhante, alguns dos gigantes da tecnologia do Vale do Silício, como Microsoft e Google, têm se organizado para estabelecer plantas de produção longe do Império do Meio, informa o Nikkei Asian Review. Informações dão conta de que o próximo smartphone Google, o Pixel 4a, começaria a ser fabricado no Vietnã ainda em abril. A companhia também quer produzir na Tailândia uma linha de gadgets voltados para casas inteligentes, como assistente de voz. Já a Microsoft pretende desenvolver no Vietnã uma linha de PCs e notebooks. A Zoom, dona do aplicativo de conferências em áudio e vídeo que cresceu enormemente durante a pandemia de coronavírus, está revendo o tamanho da operação na China. A empresa tem no país um Centro de Pesquisa e Desenvolvimento com 700 funcionários, além de data centers.
Mas não só no mundo desenvolvido a questão se apresenta. No Brasil, a Ri Happy, rede varejista do setor de brinquedos que tem 284 lojas e importa 55% dos produtos comercializados, acendeu o sinal de alerta quando do avanço da pandemia ainda no começo de março — e já considerava a possibilidade de buscar mais fornecedores no mercado interno. Ao mesmo tempo, a WEG, fabricante de material elétrico, e a Marcopolo, que produz carroceria de ônibus, são exemplos de empresas brasileiras que sofreram impacto por conta da produção na China. Ambas tiveram fábricas fechadas em razão do lockdown.
Antes mesmo das extraordinárias incertezas econômicas que se estabeleceram com a pandemia, o pesquisador do Council on Foreign Relations Edward Alden chamava a atenção para a quantidade de operações fabris de empresas norte-americanas em território chinês. Especialista em comércio internacional, Alden alertava para a existência de forte pressão junto a muitas companhias para que diversificassem sua cadeia de produção para além da China, à medida que os custos e as taxas subiam.
A pandemia provocou um abalo que pode ter mobilizado especialistas de diversas áreas em torno das mudanças que deverão ser endereçadas a curto prazo. Todavia, a China vinha perdendo defensores no plano do comércio internacional, em parte em função dos desdobramentos da guerra comercial com os Estados Unidos, em parte por conta da pressão relacionada às mudanças climáticas.
Revenge shopping
Christopher Miller é professor assistente de história internacional na Fletcher School of Law and Diplomacy, da Universidade Tufts, nos Estados Unidos. Quando questionado se o movimento de saída das empresas da China é para valer, Miller apresenta reservas. Sim, ele reconhece que no Japão existe um programa oficial para que as companhias construam suas cadeias de suprimentos em outros territórios, que não a China, mas não tem tanta certeza de que os Estados Unidos consigam seguir o mesmo caminho. Nas palavras do pesquisador, que falou com exclusividade à Revista Oeste: “Penso que haverá uma preocupação crescente entre as empresas norte-americanas de que ter cadeias de suprimentos altamente expostas à China constitui um risco e um desejo de diversificação. Duvido que os Estados Unidos cheguem tão longe, embora as tarifas de Trump tenham um efeito semelhante”.
É preciso lembrar que parte significativa de seu discurso ecoava o argumento “America First”, em defesa de uma agenda considerada protecionista. Larry Kudlow, que está à frente do Conselho Econômico Nacional da Casa Branca, disse que tem a intenção de auxiliar no retorno de empresas norte-americanas que estão na China.
Tudo somado, resta saber se os norte-americanos estarão dispostos a adotar novos padrões de consumo daqui para a frente, caso se mostrem dispostos a pagar mais caro por produtos made in USA. Em pesquisa recente, a consultoria McKinsey apurou a mudança no comportamento da população ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, 41% dos consultados se mostravam otimistas com a recuperação da economia — enquanto no Brasil apenas 25% apresentavam expectativa positiva.
De acordo com informações divulgadas no site WWD, uma loja da marca de luxo Hermès faturou em um único dia US$ 2,7 milhões.
A realidade dos demais países está distante desse cenário de retomada frenética do consumo. As projeções mais recentes do Fundo Monetário Internacional apontam para retração severa nos Estados Unidos, na Europa e nos países emergentes nos próximos meses.
Não, não vai ser nada fácil.
Revista Oeste