segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Como a tecnologia salvou a economia da China

Ao aterrissar em Xangai recentemente, me encontrei em meio a uma revolução tecnológica notável por sua abrangência. O leitor automático de passaportes se dirige aos visitantes em seus próprios idiomas. Aplicativos de pagamento digital substituíram o dinheiro. Forasteiros tentando usar dinheiro vivo recebem olhares perplexos dos atendentes de estabelecimentos comerciais.

Nas proximidades, na cidade de Hangzhou, um hotel-piloto chamado FlyZoo usa reconhecimento facial para abrir as portas. Robôs fazem coquetéis e oferecem serviço de quarto. Mais ao sul, em Shenzhen, pilotamos os mesmo drones que já estão realizando entregas de comércio eletrônico na zona rural da China. O tráfego no centro da cidade fluía suavemente, orientado por semáforos sincronizados e controlado por câmeras da polícia.
Fora da China, essas tecnologias são vistas como prenúncios de um “autoritarismo automatizado”, que se utiliza de sistemas com câmeras de vídeo e reconhecimento facial para impedir a ação de criminosos e uma “pontuação de cidadania”, para classificar os cidadãos em termos de confiabilidade política. Uma versão avançada dessa tecnologia foi acionada na reação ao descontentamento entre os muçulmanos da minoria uigur, na região de Xinjiang, interior do país.
Na China como um todo, porém, pesquisas mostram que a confiança na tecnologia é alta e a preocupação com a privacidade, baixa. As pessoas podem até temer o "Big Brother" (Grande Irmão), mas falam a respeito isso. Nas nossas viagens ao longo da costa, muitos expressaram orgulho em relação à súbita ascensão da China como potência tecnológica.
A China deu início ao seu milagre econômico ao se abrir ao mundo exterior, mas agora está cuidando de seus gigantes de tecnologia locais barrando a concorrência externa. Visitantes estrangeiros são proibidos de acessar Google ou Facebook, uma estranha experiência de isolamento, e o acordo comercial anunciado em 15 de janeiro pelo presidente Donald Trump adia a discussão sobre essas barreiras.
Ao contrário da União Soviética, porém, que falhou aplicando uma estratégia similar, a China está criando com sucesso uma nova cultura de consumo por trás dos muros protecionistas, que funciona como ferramenta de controle político e motor do crescimento econômico.
Isso ocorre em um momento crucial. Voltemos para 2015, quando a China aparentava estar à beira de sua primeira recessão desde que começou a reformar sua economia, 40 anos trás. A renda média dos chineses tinha atingido um patamar de classe média, no qual economias em desenvolvimento frequentemente se estagnam. Sua população economicamente ativa acabava de começar a encolher. Pequim facilitou o crédito para afugentar a crise global de 2008, o que elevou o nível de endividamento privado de 150% do PIB para 230%.
Foi a maior onda de empréstimos já ocorrida no mundo em desenvolvimento, e excessos dessa ordem sempre ocasionaram crises profundas. Mas, ao mesmo tempo que o crescimento da China diminuiu da casa dos dois dígitos, em 2010, para meros 6%, de acordo com registros oficiais, sua primeira recessão ainda não ocorreu.
O que mudou foi uma inesperada e veloz ascensão de uma nova economia digital, estimada atualmente em mais de US$ 3 trilhões, o que equivale a um terço da produção nacional. Ancorado em gigantes da internet como Alibaba e Tencent, o setor de tecnologia não somente contrabalançou a queda de outras indústrias, como aço e alumínio, mas também estava livre de dívidas, em geral. Assim sendo, quanto maior a economia digital, maior a capacidade da China de administrar crescentes dívidas da antiga economia e manter vivo o crescimento.
Até 2017, o setor de tecnologia representava na China uma fatia da produção equivalente à do setor corresponde na Alemanha. Uma pesquisa da Universidade Tufts qualificou a China como a economia digital de crescimento mais rápido no mundo. O diretor executivo da Visa citou uma agência reguladora chinesa segundo a qual 18 meses antes as gigantes de tecnologia do país “eram pequenas demais para merecer atenção e, agora, eram grandes demais para que alguma coisa seja feita”.
Os estudos disponíveis têm como base dados de pelo menos dois anos atrás e, provavelmente, subestimam o tamanho do salto da China enquanto potência tecnológica rumo ao mundo desenvolvido. O país mais que triplicou o investimento em pesquisa desenvolvimento ao longo da década mais recente, para US$ 440 bilhões ao ano - mais do que em toda a Europa. Atualmente, nove das 20 maiores empresas de internet do mundo são chinesas.
A explosão da atividade financeira online está ajudando a alimentar um crescimento anual de 20% nos empréstimos ao consumidor e uma mudança há muito esperada, com o principal motor do crescimento econômico passando a ser o consumo doméstico, em vez da exportação de manufaturas. Estabelecido em 2015, o MYbank, que pertence à Alibaba, já concedeu empréstimos para 16 milhões de clientes.
automação está acabando com empregos. Nos balcões de refeições dos supermercados Hema, da Alibaba, pequenos robôs brancos servem os clientes, substituindo os garçons. As grandes academias de ginástica seguem o mesmo rumo, com grandes telas de vídeo instaladas no chão com as instruções necessárias, dispensando a presença de treinadores. Os moradores de Shenzhen afirmam que as câmeras de vigilância espantaram os criminosos.
Mas, no fim das contas, o setor de tecnologia provavelmente está criando mais profissões do que destruindo. Um estudo recente do Fundo Monetário Internacional estimou que, depois de subtraídos os empregos que elimina, a digitalização seja responsável por até metade do crescimento no número de empregos. Sozinhas, as plataformas da Alibaba hospedam milhões de pequenas empresas, que, ao longo da década mais recente, criaram 30 milhões de empregos - mais do que a China perdeu na indústria pesada.
A revolução tecnológica da China foi possibilitada por duas das forças que, esperava-se, desacelerariam a economia. A população pode estar envelhecendo, mas ainda constitui um vasto mercado no qual as startups de tecnologia conseguem florescer. E, apesar de o crescimento normalmente desacelerar quando os países atingem uma renda de classe média, na China, a nova classe média fornece os principais clientes para os novos serviços de internet móvel.
Nenhum outro país possui essa combinação. A China é, de longe, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo. O estudo do Fundo Monetário Internacional argumenta que a economia está fadada a desacelerar nos próximos anos, mas isso ocorrerá muito mais acentuadamente se a digitalização estagnar. Se mantido o atual ritmo intenso, esse processo será mais lento.
Nenhuma economia consegue crescer eternamente em um ritmo ininterrupto - e o endividamento crescente e a diminuição da força de trabalho ainda pesam na China. Ao tornar os empréstimos online tão prontamente disponíveis para as famílias chinesas, o setor de tecnologia poderá agravar o risco de crise financeira. Mas, por enquanto, parece que a revolução tecnológica apareceu no momento certo para adiar o ajuste de contas e resgatar a economia chinesa de um declínio mais profundo.

Ruchir Sharma, autor de The Rise and Fall of Nations: Forces of Change in the Post-Crisis World, é estrategista-chefe global do Morgan Stanley Investment Management. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ruchir Sharma, The New York Times