domingo, 1 de dezembro de 2019

"É irônico o petismo usar argumento similar ao dos militares para justificar década perdida", por Samuel Pessôa


"Conversa com Nelson"



Meu colega Nelson Barbosa apresentou neste espaço, na sexta (29), sua leitura da crise que levou à recessão de 2014-2016 e à lenta retomada posterior.
Para Nelson, metade da crise foi externa (queda dos preços das commodities) e a outra metade foi interna.
A parte interna é dividida em três. Erros de condução de política econômica entre 2012 e 2014; política contracionista excessiva em 2015; e os impactos da Operação Lava Jato sobre a construção civil.
Fazendo uma contabilidade simplista, os erros de política econômica do petismo "puro-sangue" seriam responsáveis por 1/3 de 1/2, ou seja, por 1/6 da crise.
Há exageros tanto na atribuição de parcela significativa da depressão à queda dos preços das commodities quanto na alegação de que a Operação Lava Jato responde pela integralidade da queda da construção civil.
Uma discordância que tenho com Nelson é localizar somente entre 2012 e 2014 os erros de condução de política econômica. Penso que todo o intervencionismo que começou em 2006/2007 cobrou seu preço alguns anos à frente.
O intervencionismo –em razão de ter estimulado um número enorme de projetos mal desenhados e mal executados– levou ao endividamento de diversos setores, sem gerar caixa. Os investimentos maturaram mal.
A evidência desse fato é claríssima. Os dados de taxa de retorno das empresas abertas e das principais empresas fechadas mostram queda acentuada a partir de 2009.
De maneira geral, a atribuição excessiva da crise à Lava Jato desconhece que o esgotamento fiscal do Estado brasileiro --Tesouro, caixa das estatais e bancos públicos– resulta de medidas e decisões tomadas bem antes de 2012.
A superestimação do peso da queda dos preços de commodities na crise atual me faz lembrar da defesa que os militares faziam da política econômica desenvolvimentista de Geisel: a "culpa" da crise dos anos 1980 era do governo americano, que resolveu subir os juros, e dos árabes, que elevaram o preço do petróleo.
Nós, da esquerda, respondíamos que ter tomado decisões –como contratar empréstimos a juros flutuantes e descuidar de fontes alternativas de energia– que expuseram a economia a esses riscos era responsabilidade do governo.
É irônico ver o petismo empregar hoje argumentos semelhantes aos dos militares para justificar a sua década perdida.
Certamente a crise seria muito menor: se não tivéssemos alterado o marco regulatório do petróleo; se não tivéssemos iniciado um ambicioso programa de substituição de importação no setor; se não tivéssemos endividado excessivamente a Petrobras; se não tivéssemos atrasado em cinco anos os leilões de petróleo; etc.
Finalmente, discordo da crítica à política de Joaquim Levy. Achar que o reajuste dos preços represados e o tímido ajuste fiscal de 2015 respondem pela crise é inverter causa e efeito.
A inflação estava muito elevada. Adicionalmente, havia hiperemprego, isto é, a taxa de desemprego estava abaixo da natural. Não fazer o dolorido ajuste de Levy seria aceitar a aceleração permanente da inflação.
Não havia alternativa: ou o ajuste de Levy ou a inflação. E esta, uma vez inercializada, custa muito mais a ser debelada. Dilma, em seu primeiro ano no segundo mandato, não foi Macri. Acertou. Sempre reconheci esse fato.
Fernández, na Argentina, enfrentará este dilema: ajuste ou aceleração da inflação. Penso que a Argentina escolherá a permanente aceleração inflacionária. O fim desse processo --pode demorar-- é a hiperinflação, como ocorre na Venezuela. 
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP
Folha de São Paulo