A morte é sempre alguma coisa que foi; ela vem buscar o que não mais existe. Mas eu estava ali, existindo. Janaína olhou séria: “Ninguém vai levar meu homem”. Me puxou: “Vamos agora para o hospital”. Eram 6 e meia da tarde. O duelo começara. A morte sorriu seus dentes amarelos. Janaína travou o maxilar mordendo a raiva. E acelerou o carro. Hospital repleto. Há 36 horas eu lutava contra uma infecção crescente, a mão direita sem movimentos, o braço inchando. Morfina na veia. Efeito zero. A dor seguiu em frente. A morte gargalhou alto. Janaína não deu bola. Arrumou outro hospital. Repetiu: “Não vou entregar meu homem!”
Outra enfermaria, mais morfina, mais dor. Já passava da meia-noite quando a enfermeira plugou no meu braço a 1ª dose de antibiótico. A mão igual a 1 pão Petrópolis na cor e no tamanho num braço de Popeye. 15 horas e muito sofrimento depois, desembarquei no centro cirúrgico a bordo de uma cadeira de rodas. Por cima da máscara, os olhinhos do cirurgião me contavam em detalhes todos os riscos –absolutamente todos. Uma coleção de tragédias e sofrimentos; 1 catálogo de horrores. Anestesia, sedação, tudo soava como despedida.
A morte estava ali de sentinela. Firme e paciente como urubu diante do novilho picado de cascavel, agonizante, estirado no pasto, prestes a virar banquete. Mas Janaína continuava no jogo, o duelo seguia firme. Jogar a toalha? Nem pensar. “Não dou nem entrego meu homem. Nosso amor é maior que qualquer sofrimento”, repetiu mil vezes. A morte olhava para Janaína e ria: inútil como 1 besouro de pernas para o ar, aflito e vulnerável. Foi seu 1º erro. Subestimou a mulher movida a coragem, determinação e espiritualidade. Dona de uma imensa capacidade de enxergar o mundo através do coração das pessoas.
Muito tempo depois abri os olhos. Sentia muito frio, mas não sentia o braço nem a mão. Inertes, não respondiam aos meus comandos. Na parede do centro cirúrgico, 2 relógios: 1 deles parado. A vida e a morte. Os que ficam e os que seguem. Janaína na cabeça e no coração. Uma intensa sensação de pertencimento percorreu meu corpo, sentidos, minha alma. Fiquei naquele estado de transparências latejantes do poema de Fernando Pessoa até o padioleiro iniciar a viagem de volta ao meu quarto.
Ela me esperava. Emocionada. Forte. Altiva. Cheia de vida e lágrimas. Me abraçou e beijou como se minha dona fosse desde sempre. Vencera o duelo. A morte saiu daquele quarto completamente derrotada, cabisbaixa, praguejando, a soberba esfolada. Repleta de energia, beleza, iluminada de dignidade e inteligência, Janaína deu à senhorinha de negro o pior dos castigos: a ineficiência. Morte ineficiente não serve pra matar, nem pra morrer. Junto com o duelo, Janaína ganhou minha gratidão, lealdade, meu amor, minha vida.
Poder360