quarta-feira, 3 de abril de 2019

"Ai de ti, Jerusalém: até o papa fecha os olhos a realidades", por Vilma Gryzinski

A criação de Israel e seus desdobramentos, as camadas milenares de história no pequeno e complicado espaço de Jerusalém, como serão acomodados os habitantes árabes, a incômoda convivência das três religiões de raiz abraâmica, o que vai acontecer no Oriente Médio.
Como se não fosse pouco a infinita complexidade dos temas que envolvem a cidade triplamente santa, agora ela foi arrastada para uma discussão sobre as exportações de carne brasileira para países árabes, aparentemente à beira da extinção pelas iniciativas do atual presidente.
Jerusalém continuará a ser discutida até o Juízo Final, e talvez até depois dele considerando-se o pendor deliberativo de seus habitantes. Mas alguns pontos merecem esclarecimento, inclusive pelo teor de alta ironia de alguns. A eles:
1. A visita de Jair Bolsonaro a Israel tem zero importância em termos eleitorais para Benjamim Netanyahu. No clima atual de vale-tudo, com espionagem, escutas secretas (até que sejam divulgadas), acusações de traição à pátria e de incitação a assassinatos políticos, uso maciço de truques digitais sujos e outras armas de destruição eleitoral em massa, a visita de um político desconhecido de um país de pouca projeção geopolítica fazendo gestos de reconhecimento ao direito de Israel sobre Jerusalém, mal tem algum registro.
2. O que contou e o que vai contar: Netanyahu ser recebido por Donald Trump nessa época de alta volatilidade (tendo que voltar às pressas por causa de outro início de conflagração em Gaza). E Netanyahu partir para Moscou apenas cinco dias antes da eleição da próxima terça-feira.
Por mais que os antipatizantes de Netanyahu, o que inclui praticamente toda a humanidade (fora os eleitores israelenses que podem muito bem lhe dar mais uma vitória) detestem admitir, ele realmente dá nó em pingo d’água e consegue equilibrar-se entre Trump e Vladimir Putin.
Considere-se que Rússia e Israel fazem operações militares em campos opostos na Síria, o que poderia degenerar rápida e catastroficamente em um desastre bélico. Já chegou perto.
E os eleitores “russos”, reconhecidos ou não como judeus, adoram Putin. Dos que foram votar na última eleição presidencial russa, uma minoria, mais de 70% cravaram em Putin.
Internamente, a maioria vota no Likud, o partido de Netanyahu.
3. Transferir embaixada para Jerusalém já saiu da linha de frente como assunto. O atrito atual é o reconhecimento das Montanhas de Golã como território legítimo de Israel.
É claro que a iniciativa foi de Donald Trump, é claro que contraria posições da ONU e é claro que a Liga Árabe condenou a anexação.
Como Jerusalém Oriental, a região montanhosa foi conquistada em 1967, quando Israel chegou muito perto de ser varrido do mapa pelos exércitos do Egito, da Jordânia e da Síria.
No contra-ataque, capturou Jerusalém e outros territórios árabes. Vários foram devolvidos em negociações de paz ou unilateralmente, como o Sinai, a Faixa de Gaza e, sob administração com graus variados de autonomia, partes da Cisjordânia.
Nem um único metro quadrado de Jerusalém, com raízes levando aos antigos reinos de Israel e de Judá, aos dois templos judaicos destruídos e ao coração da narrativa religiosa e nacional, jamais poderia ser devolvido sem um acordo de grandes proporções. Todas as vezes em que isso esteve perto de acontecer, o falecido Yasser Arafat refugou.
Para o nacionalismo palestino, a cidade ganhou uma dimensão simbólica parecida com a quem tem aos olhos dos judeus.
Outra região que foi anexada é a área montanhosa de Golã que pertencia à Síria. Pesaram aí argumentos estratégicos de natureza existencial.
Permitir aos sírios “descer” de uma posição privilegiada no alto dos morros ou simplesmente detonar os centros habitacionais israelenses no pé do vale seria equivalente a entregar aos inimigos o queijo, a faca e a tábua.
Entre a realidade estratégica e a diplomática, onde é insuportável admitir, pelo caráter de exemplaridade, que territórios conquistados pela força sejam anexados, mesmo quando em legítima defesa, existe uma grande distância.
O que farão os países árabes – com a irônica exceção da Síria de Bashar Assad, um regime isolado que vários deles tentaram derrubar subvencionando grupos armados jihadistas – diante do reconhecimento americano a Golã como território israelense?
Se o precedente da transferência da embaixada americana para Jerusalém for usado, nada. Reúnem-se, protestam, esperneiam e tocam a vida. Estão mais preocupados com a ameaça representada pela ascensão do Irã, com Síria e Líbano no pacote. E com a própria sobrevivência, claro.
Em ambos os quesitos, dependem dos Estados Unidos.
4. Muito mais vulnerável, o Brasil pode ser alvo de retaliações pela nova proximidade com Israel? Pode. Interessa aos países árabes, excetuando-se obviamente os palestinos? Não. Interessa ao Brasil? Vamos debater, e muito.
O argumento de “quebra de protocolo diplomático” vem em último lugar na fila de arrazoados. Desde quando isso é um mal em si? Se Anuar Sadat não tivesse “quebrado o protocolo diplomático” e aparecido de surpresa em Israel em novembro de 1977, não teria havido o acordo de paz entre os dois países (mostrando sua famosa capacidade de falta de visão, a Liga Árabe suspendeu o Egito durante dez anos).
É também uma boa hora para anotar a quantidade exuberante de aliados que a indústria pecuária brasileira subitamente encontrou entre insuspeitos simpatizantes.
Acusados, com razão parcial, de destruírem o Cerrado, a Amazônia e o que mais sobrar de floresta em pé, sem contar seu reacionarismo natural e o monumental esquema de corrupção política montado pelos mais famosos entre eles, os pecuaristas de repente viraram heróis nacionais.
Até vegetarianos estão defendendo a indústria que produz “150 mil empregos” e abate em massa animais segundo as exigências do sistema halal, um dos mais cruéis existentes, sem insensibilização, pior até que o kasher.
5. Política externa soberana e independente só valia para comprar brigas infantis com os Estados Unidos?
O que dizer de uma instituição nacional que dirige ao país uma nota nos seguintes termos: “Exigimos que o Brasil recue de imediato dessa política”? E ainda acrescenta, ao que parece sem ironia voluntária, que a visita ao Muro das Lamentações na companhia de Netanyahu não ajuda em nada “a estabilidade e a segurança” da região.
Os termos partiram do Hamas, o grupo islamista que domina a Faixa de Gaza depois de ter fuzilado, torturado ou expulsado seus bons irmãos da Autoridade Palestina.
Anote-se que o Hamas realmente conta com apoio de uma parte significativa dos palestinos, embora sem ter que se submeter a algo tão vulgar quanto eleições, mesmo que fraudadas.
Ideologicamente, o Hamas tem a mesma matriz que a Irmandade Muçulmana, de quem se afastou no papel para não entrar em choque com o regime do Egito, do qual depende até para a movimentação.
No papel, o Hamas também deixou de pregar a destruição imediata de Israel e aceita a criação de um Estado palestino em territórios divididos. Pelo menos até a “libertação” final.
Os ataques com mísseis, as tentativas de infiltração para matar judeus de qualquer maneira possível e o estado de constante beligerância insuflado pelo Hamas são alguns dos principais motivos que levam a maioria da população de Israel a apoiar partidos de direita inimigos de concessões territoriais.
O pessoal mais à direita de Netanyahu, incluindo moradores de áreas fronteiriças onde caem os foguetes inimigos, costuma criticá-lo por contenção excessiva nas represálias e liberação de dinheiro do Catar para pagar funcionários públicos em Gaza.
Indiretamente, Hamas negocia indiretamente com Israel, em especial por pressão do Egito e outros países árabes, para não precipitar outro conflito, entre outros temas.
6. Os palestinos que moram em Gaza só entram em Israel depois de longas revistas. Uma cerca em várias etapas impede a passagem. Isso quando o trânsito não está completamente suspenso.
Os que moram em territórios da Autoridade Palestina, isolados na maioria pelo muro de segurança, podem ter permissão para trabalhar em Israel. Os que têm nacionalidade israelense têm livre trânsito.
Todos podem enfrentar restrições, nos momentos de alta tensão, para acessar a Esplanada das Mesquitas. Quando a coisa está feia, com múltiplos ataques a facadas ou outras agressões, só mulheres, meninos e idosos passam pelas barreiras. O mais frequente é o acesso generalizado, sob controle estrito, claro.
A Esplanada é administrada por uma junta de autoridades religiosas jordanianas. Devolver a Esplanada, onde outrora se ergueram os dois templos judaicos, foi uma decisão tomada por Moshe Dayan depois da quase miraculosa conquista de Jerusalém em 1967.
O general de tapa-olho sabia da veneração de todo o mundo muçulmano pelo local onde ficam o maravilhoso Domo da Rocha, a construção de cúpula dourada, e a mesquita de Al-Aqsa, onde os fieis do Islã acreditam que Maomé, montando uma mula alada branca, veio de Meca numa viagem mágica, ascendeu aos céus e voltou à Terra.
Judeus mais religiosos ficam revoltados com a situação na Esplanada, onde podem circular, sob restrições, mas não fazer orações (alguns fazem assim mesmo, fingindo falar ao celular).
O Muro das Lamentações, considerado a base dos templos, fica numa área separada, mais baixa. Os muçulmanos não têm acesso. Embora o reivindiquem como parte de Jerusalém Oriental e pelo valor religioso, na época em que a Jordânia ocupava Jerusalém, cavalos e camelos da famosa Legião Árabe eram amarrados no pé da muralha.
Nesse período, de 1948 a 1967, toda a população judaica radicada há séculos na cidade santa foi expulsa e 58 sinagogas foram destruídas ou profanadas.
Cidades como Jerusalém e Belém tinham , desde o início do cristianismo, uma grande população de árabes cristãos, descendentes de convertidos e resistentes à expansão muçulmana.
As restrições impostas durante a administração jordaniana levaram uma grande parte dessa população a emigrar.
7. Chegamos assim ao papa Francisco e as declarações que fez na viagem na semana passada ao Marrocos.
O papa argentino e o rei Mohamed VI divulgaram um comunicado apelando a “preservar Jerusalém/Al Qods Acharif como patrimônio comum da humanidade” e que “na cidade santa sejam garantidos a plena liberdade de acesso aos fieis das três religiões monoteístas e o direito de cada uma a exercer seu próprio culto”.
Problemas: o representante máximo da cristandade, pelo menos no papel, usa a denominação alternativa, em árabe, para Jerusalém. Por quê? Acredita que é um gesto de abertura em direção aos muçulmanos? Ou não entende que isso é interpretado como um gesto de fraqueza ou até submissão?
Com todas as restrições decorrentes de atentados e outros ataques praticados por palestinos e por mais que judeus ultra-religiosos não gostem, a liberdade de culto é garantida em Israel de uma forma incontestável, O papa preferia o quê? Um retorno à época da administração jordaniana?
Apesar de ser um aliado firme do Ocidente, ter medo do fundamentalismo que o arrancaria de seu local privilegiado e promover uma linha muçulmana branda, o rei Mohamed permite apenas um espaço limitado a remanescentes da outrora grande comunidade judaica e à pequena comunidade católica.
Pois falando a esta última, o papa Francisco avisou: “Nada de proselitismo”. Ou seja, não tentem pregar a religião católica.
É uma inversão espantosa de valores. Difundir a palavra de Cristo é a própria definição da Igreja. Obviamente, nos tempos atuais ninguém esperaria que Francisco desse uma de Urbano II ao convocar a Primeira Cruzada, em 27 de novembro de 1095, para reconquistar Jerusalém tomada pelos muçulmanos.
“O que desgraça seria se uma raça tão vil e desprezada, de adoradores do demônio, conquistasse um povo que tem fé no Deus onipotente e se glorifica com o nome de Cristo”, o papa poderoso.
No caso de Francisco, a situação é pior ainda porque os católicos marroquinos frequentemente são muçulmanos convertidos que vivem com medo de ser acusados de heresia e sequer vão a igrejas.
8. Finalizando, uma explicação sobre o rei Mohamed VI e suas roupas tradicionais, o djelaba com capuz. A família real marroquina, no poder desde o século 17, se considera descendente direta de Ali, o primo e genro do profeta Maomé. E, através dele, do próprio criador da religião islâmica.
Ali é o mesmo califa que os xiitas passaram a considerar originador da linhagem legítima do profeta, mas a linha no Marrocos é de uma das escolas sunitas. Ainda por cima, a monarquia é alauíta, nome da seita minoritária da Síria. Um pouco confuso mesmo.
Foram os marroquinos muçulmanos que dominaram durante séculos partes de Espanha e Portugal. Reconquistar a Andaluzia é considerado um dever pelos ultrafundamentalistas.
Mohamed VI (M6 para os íntimos) está fora desses radicalismos, mesmo tendo de berço o título de comandante dos muçulmanos, cobiçado por jihadistas como Osama Bin Laden ou o desaparecido Abu Bjakr Al-Baghdadi, do Estado Islâmico.
Em cerimônias públicas, segue estritamente as tradições. Na vida particular, usa roupas extravagantes e frequenta baladas gay em Amsterdã.
Não há confirmações de que tenha se divorciado de Lalla Salma (lalla é uma forma de tratamento para mulheres da nobreza, como lady ou dona), que produziu o obrigatório herdeiro e uma menina. Mas Salma, com sua exuberante cabeleira ruiva, não é vista em público desde 2017.
Nada como uma história de princesa banida para amenizar as batalhas, os conflitos e as escolhas difíceis que Jerusalém evoca há mais de três mil anos.

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