terça-feira, 29 de janeiro de 2019

"A hora do safanão", por Fernão Lara Mesquita

No início, fresco ainda dos seus 28 anos de lobby para obter vantagens para militares e policiais no Congresso, Jair Bolsonaro não sabia se jogava no ataque ou na defesa na questão da previdência. O assunto foi cuidadosamente evitado na campanha. Ficou soterrado nas emoções do debate comportamental, na cumplicidade entre a direita, a esquerda e o centro contra a reforma e na inapetência da imprensa pelo tema.
Brumadinho, “rachid”, privilégios. Qualquer tapete levantado revela um monte de sujeira; qualquer arranhão olhado com lente confirma extensa infecção. Quem quiser focar nas diferenças entre a “esquerda” e a “direita” brasileira desta boca de 3.º milênio, que as há, tem todo o direito. Mas o País só apontará para o fim do túnel quando focar no que há nelas de idêntico e partir para a reforma democrática (a política) que porá o povo no poder.
Por enquanto vamos de previdência sem o rearranjo da qual não sobrará nada para ser reconstruído adiante.
O “governo de transição” é uma avalanche de números que faz qualquer sonhador despencar até do céu que protege Brasília para uma aterrissagem de emergência na calamidade geral que governadores e prefeitos estão encontrando. A verdade foi aos poucos contaminando o governo e, por meio dele, extravasando para a imprensa e dela para o País. A fase de alienação teve um ponto final quando Paulo Guedes encerrou “o baile” que a parcela Brasília do governo Bolsonaro ameaçou dar-lhe em público. 
Ali o presidente teve a primeira oportunidade de provar o quanto se comove com fatos, coisa a que o país das “narrativas” há muito tempo se desacostumara. E confirmou: a melhor qualidade de Jair Bolsonaro é sua capacidade de voltar atrás e corrigir o rumo. 
A ficha caiu com tanta clareza que os militares, sempre os primeiros a incluir-se fora de toda e qualquer tentativa de reforma anterior, espicaçados nos brios diretamente pelo comandante-em-chefe, declararam sua disposição de contribuir com um sacrifício para o esforço de salvação nacional.
É a primeira vez nos 519 anos de Brasil que alguma corporação da privilegiatura se dispõe a dar um passo atrás, gesto que pode ter consequências telúricas. Mas o problema para desencadear o terremoto ainda é a conclusão do despertar do presidente. Bolsonaro saiu do Congresso, mas o Congresso ainda não saiu de Bolsonaro. Ele continua se dirigindo tão somente ao País oficial para tudo quanto extrapola as picuinhas da turma do excesso de salivação com escassez de raciocínio das redes sociais. 
Apesar da firmeza com que corroborou a ordem para o realinhamento do governo à Prioridade Zero da previdência, ele ainda subestima a capacidade de discernimento do povo. Segue dimensionando sua reforma pela expectativa da sua receptividade pelo Congresso, e não pela real necessidade do País ou interesse do povo.
O Congresso não tem de ser o primeiro, deve ser o último a ser consultado. Ele pode tudo, até derrubar governos “inderrubáveis”, mas só faz isso quando o impulso vem da rua. Para levar os políticos a atos como esse, que não são de coragem, são de sobrevivência, é preciso que a população passe antes pelo mesmo banho de informação que fez o próprio governo mudar de atitude. Dar à privilegiatura o conforto de uma negociação anônima, de bastidores, para, no final, apresentar como sua uma reforma que dê conforto a ela seria uma grossa traição aos 58 milhões de votos recebidos. 
É o contrário. Os mais altos representantes da privilegiatura têm de ser convocados todos à boca do palco, com o resto da Nação, colocados de frente para os números pelos quais cada corporação é responsável – Judiciário, Ministério Publico, Legislativo e o resto –, e então serem instados a se manifestar encarando o público como os militares já se manifestaram. 
Tem de ser um ônus para quem quiser assumi-lo recusar contribuir ou impedir a aprovação de alguma coisa que o País inteiro estará perfeitamente consciente de que se não for feita nos mata.
O Congresso, assim como toda instituição encarnada em seres humanos, age sempre em função dos imperativos de sobrevivência dos congressistas. Por isso mesmo é que a democracia, depois de alguns ensaios românticos fracassados, foi redesenhada para pôr diretamente nas mãos do povo a condição de sobrevivência dos congressistas. Mas como aqui falta entregar o cetro ao povo, é ao presidente que, por exclusão, cabe essa função.
Esse roteiro não precisa ser encenado em tom de confronto. Convocar a Nação para apresentar-lhe a verdade dos fatos, medir as consequências de cada alternativa e pedir humildemente que ela indique a direção a seguir é a função por excelência do governante democrático. E cabe firmeza nisso. 
O general De Gaulle, que mais de uma vez ergueu do chão o orgulho nacional francês em frangalhos, disse numa dessas ocasiões o seguinte: 
“A democracia exige que a gente convença as pessoas. Quando as circunstâncias permitem, essa é a forma preferencial de agir. Então deve-se trabalhar para fazer evoluir as consciências. Mas há circunstâncias em que não é possível dar-se esse luxo e então é preciso comandar. É como na educação das crianças. Se a gente tem tempo o melhor é argumentar. Mas se não tem, para o bem delas, a gente vai lá e dá um safanão”.
A reforma da previdência – que vai definir o que será do governo Bolsonaro, do Brasil e dos brasileiros nos próximos 30 anos – está, obviamente, precisando desse “safanão”.
Post scriptum – Cansado de ouvir a baboseira em torno do desarmamento nos jornais e nas televisões, peço licença ao leitor para enfiar aqui este lembrete: Bolsonaro e seus opositores não têm tocado no essencial da questão do desarmamento. A discussão NÃO É em torno de saber se armar a população “resolve” ou não (e é claro que não resolve, nem para melhor, nem para pior) o problema da segurança pública. É o princípio que é inegociável, pois, se o Estado pode proibir o cidadão de defender sua vida sob pena de prisão, como faz hoje no Brasil, nenhum dos seus outros direitos vale nada.
JORNALISTA

O Estado de São Paulo