Ao recorrer ao Supremo para que os procuradores continuem recebendo o bolsa-moradia de R$ 4,3 mil por mês, a procuradora-geral da República Raquel Dodge enveredou por uma trilha que leva a instituição sob seu comando para o lodo. Insurgiu-se contra decisão do ministro Luiz Fux, que revogou o pagamento do privilégio para todas as carreiras jurídicas. Alegou que a revogação só vale para juízes, não para procuradores. Tomou o caminho do brejo ao menosprezar as leis e, sobretudo, a Constituição. .
Escreveu Raquel Dodge em seu recurso: “Sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento de auxílio-moradia, fato é que esta ação restringe-se ao pagamento ou não do benefício em causa para os juízes, nos termos da legislação que rege a magistratura judicial brasileira, limitando-se o julgado àquelas carreiras.”
A doutora pode não ter notado. Mas seu raciocínio é assustador e desmoralizante. Assusta porque quem a admira por seu esforço para salvar o país da corrupção não esperava vê-la enrolada na bandeira da salvação da conta bancária da corporação. Desmoraliza porque não fica bem para a zeladora da ética e dos bons costumes dar de ombros para a moralidade.
O benefício reivindicado por Raquel Dodge só faz sentido nos casos em que o procurador é transferido para outra cidade. A coisa virou escárnio em 2014, quando uma liminar concedida por Fux estendeu o bolsa-residência para todos os magistrados e procuradores —até mesmo os que trabalham na sua cidade, morando em casas próprias.
Na prática, o que deveria ser uma expecpcionalidade tornou-se uma vulgaridade. O bolsa-descalabro virou puxadinho do contracheque —livre de impostos. Encostado na precariedade de uma decisão liminar (provisória) e monocrática (individual), vigorou por quatro anos. E não se viu nenhuma queixa dos procuradores por receber o mesmo mimo e o mesmo tratamento dispensado aos juízes.
Esquecido por conveniência, esse privilégio remuneratório voltou à cena no meio de um balé de elefantes, no qual a cúpula do Supremo executou uma coreografia de toma-lá-dá-cá em parceria com Michel Temer. Trocou-se a liminar do bolsa-tunga pelo aval do presidente a um reajuste de 16,38% para os ministros da Suprema Corte e para a procuradora-geral —com direito a efeito cascata orçado em R$ 4 bilhões.
Até ontem, quando se estava numa reunião ou numa roda de amigos e alguém falava em corrupção, era inútil tentar mudar de assunto. Podia-se, no máximo, mudar de corrupto. Ao reivindicar o restabelecimento do bolsa-moradia “sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento”, Raquel Dodge como que se oferece como assunto alternativo. Nessa batida, a viagem da Procuradoria em direção ao brejo logo será tema obrigatório nas esquinas e nos botecos.
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