terça-feira, 18 de dezembro de 2018

"A corte é a corte, é a corte...", por Fernão Lara Mesquita

O 'rachid' entre membros das 

famílias Bolsonaro e Queiroz

 é a regra, não a exceção


Quando algum acidente de percurso permite que se ponha um olho sobre a vida que realmente leva o funcionário público brasileiro da baixa nobreza para cima, para além do que consta no seu holerite, você fica certo de que está sendo roubado.
E está mesmo. Só que por dentro da lei.
O que se desvia de dinheiro público para bolsos privados por fora da lei é um troco comparado ao que "o sistema" nos toma usando a Constituição, a lei, as "medidas administrativas" e as decisões judiciais que todos os dias e cada vez mais escreve para si mesmo. Dia 8 passado Modesto Carvalhosa, velho guerreiro do povo brasileiro, expôs nesta página alguns desses recursos no detalhe. O artigo 37, inciso XI, da Constituição, que estabelece que o teto do funcionalismo é o que ganham "por dentro" os juízes do STF, fura ele próprio, no parágrafo 11, o dique que foi escrito para erguer ao afirmar que esse teto não vale quando for de "verbas indenizatórias" que se tratar. Para estas não há limite e - suprema cara de pau! - "não incide Imposto de Renda". Não demorou nada e o rabo passou a abanar o cachorro. O Impostobot que, com algumas interrupções, apresentava-se no Twitter nos últimos dois ou três anos expondo, dia após dia, um salário por dia dos marajás dessa nossa República de araque, mostrou que saques mensais de 300, 400, 500 mil e mais ocorrem a granel e, com frequência acachapante, também os de plurais de milhão. Modesto apontou ainda, no mesmo artigo 37, o "dever de eficiência" que deve ser "exigido com rigor" do funcionalismo... que, no entanto, é indemissível, quer dizer, não pode ter sua eficiência cobrada. Mas só por conta da menção proliferaram como praga os "adicionais de eficiência" para funcionários do País inteiro, pagos até mesmo - pode crer o otário leitor! - aos aposentados. E as vendas de férias? Punidas com prisão aqui fora, são a norma na corte onde essa "conversibilidade" levou a uma explosão. Há quem tenha quatro meses por ano para vender ao Estado, o que rende 16 proventos a cada 12 meses, fora o 13.º, que, no caso, passa a ser o 17.º...
Agora, depois de revelado o "rachid" entre membros das famílias Bolsonaro e Queiroz, vemos exposta mais uma modalidade das práticas que, todos sabemos, são a regra, e não a exceção, desde pelo menos o translado da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro. São centenas os dispositivos do gênero que, mortos o 1.º e o 2.º Reinados, o Império, a República Velha, a ditadura Vargas, a "ditadura militar", a República Nova e seis Constituições inteiras, enfiaram-se com descaramento inédito nesta sétima, de que os nossos mais doutos juízes e tribunos proprietários de "dachas" nas capitais europeias ou nas praias do sul dos Estados Unidos dizem que dependem a liberdade, a segurança e essa cada vez mais palpitante "felicidade" do povo brasileiro.
Os holerites do serviço público não passam de álibis emitidos pelo próprio Estado para enganar o povo e aquela mesma Receita Federal que, tonta e docinha com eles, responde ao contribuinte plebeu sempre com um rugido do mesmo implacável supercomputador que a Nasa usa para pôr um homem em Marte e com que eles vigiam a nossa miséria.
Tudo isso se congela, na sua expressão mais aguda, nas contas da Previdência, porque o funcionário se aposenta no primeiro minuto da idade limite de 50 anos com o último e maior dos salários da carreira - frequentemente um que nunca chegou a receber na ativa, porque é de bom tom entre "colegas" se darem mutuamente promoções de última hora para colher esse efeito. De 36 a 1 surram os nédios senhores de meia-idade do Brasil Oficial os velhinhos paupérrimos do Brasil Real que não se aposentam nunca. E mesmo assim hesita o presidente Bolsonaro, que se elegeu brandindo "a verdade", em sequer afirmar a necessidade de uma reforma da Previdência profunda o bastante para pôr no horizonte a igualdade de direitos entre nobres e plebeus do país cujo Estado patrocina a mais violenta distribuição de dinheiro de pobres para ricos de que o mundo tem notícia hoje. Sobre as boladas que nos arrancam pelo caminho com a lei, então, nem se fala. Contra essas nem mesmo o paladino Sergio Moro e seus indignados mosqueteiros do Ministério Público têm qualquer coisa a opor. É que eles são a corte e a corte não vive no Brasil. Suas diferenças com as dinastias anteriores estão no glacê, e não no bolo. Nem a imprensa de herdeiros, sem direção nem foco, está empenhada em iluminar essa cegueira. E o liberalismo embarcado na boleia do governo, se permanecer emudecido como segue, vai apenas gerenciar a procrastinação para no final ser culpado pelo que não vai ser feito.
O Brasil nunca rompeu com a velha ordem aristotélica na qual o senhor e o escravo estão previstos, cada um "no seu devido lugar". Nunca passou à ordem iluminista em que todos nascem e permanecem iguais perante a lei. O sistema corporativista, em que o Judiciário assume o lugar do imperador para atribuir a cada um os seus "direitos especiais" (a negação em termos do conceito de direito democrático), é a criação diabólica do gênio português para "mudar sem que nada mudasse" diante da onda democrática que varreu a Europa no século 19. A nossa revolução democrática está por ser feita. A "democracia direta", que está longe de ser a que Bolsonaro imagina deter com suas manipulações do WhatsApp e seus críticos tratam de exorcizar brandindo a ameaça de uma "ditadura da maioria" em plena vigência da miserabilizante ditadura da minoria de sempre, ainda está por se instalar aqui com o povo armado de recall, referendo, iniciativa e eleições de retenção de juízes mandando e o governo inapelavelmente constrangido a obedecer.
Se algo não fizer cair a ficha da falência iminente do "sistema", Jair Bolsonaro, que surfou a onda de uma "libertação" que a censura não permite que o povo brasileiro chegue a definir com precisão, entrará para a História apenas como o protagonista de mais uma troca de dinastias no nosso anacrônico sistema feudal.
FERNÃO LARA MESQUITA É JORNALISTA

O Estado de São Paulo