No início de 2013, quando o então chanceler brasileiro Antonio Patriota comentou publicamente que estava em curso uma negociação com Cuba para vinda de médicos, o Ministério da Saúde apressou-se em dizer que o governo estudava abrir oportunidades para profissionais brasileiros e estrangeiros, de qualquer país, que quisessem ampliar a rede de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). O governo Dilma omitiu que já tinha negociado com os cubanos. A negociação prévia também não consta do processo que está arquivado no Ministério da Saúde, ao qual O GLOBO teve acesso, também pela lei de acesso.
- Não existe da parte do Ministério da Saúde nenhuma preferência, mas nenhuma restrição ou preconceito em relação a qualquer país. Médico formado em qualquer país, com qualidade, reconhecido no seu país, interessa ao Ministério da Saúde. Desde que seja um médico formado com qualidade. Vamos desenhar ainda critérios para a avaliação dessa qualidade, mas interessa ao Ministério da Saúde atrair - afirmou Padilha, em maio de 2013.
Segundo os telegramas, Padilha esteve em Cuba em dezembro do ano anterior. Foi ele quem apresentou aos cubanos a possibilidade de assinar um acordo com a Organização Panamericana de Saúde (Opas) porque não havia um acordo bilateral entre Brasil e Cuba para sustentar a vinda dos médicos daquele país. O representante da Opas no Brasil, o cubano Joaquín Molina, estava presente.
O governo cubano ficou preocupado com a forma como o pagamento seria feito, porque as contas bancárias da Opas transição por Washington. Por conta do embargo dos Estados Unidos à Cuba, o dinheiro poderia ser bloqueado. A delegação chefiada por Padilha sugeriu usar a conta bancária da Opas em Brasília. O diplomata que participou da reunião contou que comentou com o secretário de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mozart Sales, que estava em Havana, sobre problemas no pagamento. Isso porque a conta corrente da Opas em Brasília era no Citibank, e ainda havia o risco de bloqueio de recursos no processo de remessa à Havana. Em 2013, quando o termo foi assinado entre o governo brasileiro e a Opas estava registrado em um aditivo: a conta bancária da entidade passou a ser no Banco do Brasil.
Os telegramas diplomáticos trazem ainda um detalhe que expõe a contradição entre o discurso oficial do governo e as tratativas com os cubanos. No dia 23 de abril de 2013, três dias antes de assinar o acordo com a Opas, uma missão brasileira estava em Havana. Segundo relato do embaixador brasileiro José Eduardo Felício, foi acertado com o governo cubano o envio de 6.602 médicos em 2013. O mesmo número aparece escrito no projeto básico sobre o programa Mais Médicos, elaborado por Mozart Sales, como sendo a necessidade de profissionais para atingir "100% de cobertura da população sem plano de saúde" no Brasil. Não há no documento, referência a cubanos.
Na solenidade em que lançou o programa, em julho de 2013, a então presidente Dilma não citou Cuba e insistiu que a ideia principal não era trazer profissionais do exterior
- Eu faço questão de começar corrigindo um conceito. O Programa Mais Médicos, que é um dos braços importantes desse pacto, não tem como principal objetivo trazer médicos do exterior, mas, sim, levar mais saúde para o interior do Brasil. Levar mais saúde para o interior do país, levar mais saúde para o interior das grandes cidades brasileiras - discursou Dilma.
Telegrama de abril de 2013, três meses antes do discurso da presidente, informava que autoridades brasileiras informaram aos cubanos que a presidente Dilma esperava assinatura do acordo para maio daquele ano.
No ano anterior, mensagem de 2 de julho de 2012 informa que, num encontro de servidores do Ministério da Saúde com autoridades cubanas, os brasileiros apresentaram o que seria o futuro programa com Cuba. Segundo relato do diplomata brasileiro, o "nome provisório" seria "Mais Médicos para o Brasil".
Por nota, Mozart Sales disse que é "infundado" que a ideia do Mais Médicos partiu de Cuba. E disse que, ainda em 2011, o Ministério da Saúde diagnosticou a falta de profissionais. Como não era possível para ampliar oferta rápida de médicos formados no Brasil, optou por buscar uma cooperação internacional para levar atendimento a regiões "como as 700 cidades que não havia nenhum profissional".
Padilha também enviou nota afirmando que o Mais Médicos foi "elaborado e decidido com gestores municipais e estaduais, técnicos do Ministério da Saúde e Congresso Nacional, tendo desenho diferente das informações das sondagens preparatórias que existiu com dezenas de países, entre eles Austrália, Canadá, Inglaterra, Portugal, Espanha, Cuba e órgãos internacionais".
Segundo o ex-ministro, a demanda de médicos do programa foi definida a partir da chamada feita às prefeituras. "O número de 6.602 médicos foi o primeiro parâmetro para sondagens de missões técnicas com dezenas de países, naquele momento, baseado nas vagas não preenchidas pelo PROVAB 2012/2013, sendo completamente diferente da demanda definida pelo Programa Mais Médicos", diz a nota.
A seguir a íntegra da nota de Padilha :
“Com relação às perguntas solicitadas, o Ministro da Saúde (2011 – 2014) Alexandre Padilha esclarece:
O programa Mais Médicos foi elaborado e decidido em conjunto com o gestores municipais e estaduais, técnicos do Ministério da Saúde e Congresso Nacional, tendo desenho diferente das informações das sondagens preparatórias que existiu com dezenas de países, entre eles Austrália, Canadá, Inglaterra, Portugal, Espanha, Cuba e órgãos internacionais. Este projeto e as missões internacionais foram absolutamente públicos bem como as decisões decorrentes deste desenho.
A demanda de médicos para o Programa foi definida com a abertura do edital para os municípios, chegando ao número de déficit de 14.462 médicos. De acordo com os critérios da lei e do edital do Mais Médicos, as vagas foram preenchidas primeiro por 1.846 brasileiros formados no Brasil e 1.187 brasileiros formados no exterior e estrangeiros formados fora do Brasil. Só então o restante das vagas foi ocupado por médicos da cooperação com a OPAS, 11.429, exatamente nas áreas mais vulneráveis.
O número de 6.602 médicos foi o primeiro parâmetro para sondagens de missões técnicas com dezenas de países, naquele momento, baseado nas vagas não preenchidas pelo PROVAB 2012/2013, sendo completamente diferente da demanda definida pelo Programa Mais Médicos.
O número de mais de 11 mil médicos cubanos revela, claramente, que não houve negociação para vinda de 6.602 médicos e sim, uma sondagem, exatamente por ser a demanda e necessidade do preenchimento do cadastro de vagas pelos municípios. Com os primeiros critérios de participação: brasileiros com CRM do Brasil, brasileiros formados fora e estrangeiros.
As declarações do ministro à época foi exatamente o que sucedeu: prioridade para brasileiros, depois estrangeiros e só depois, através da cooperação com OPAS, vieram médicos cubanos. O que revela que as comunicações anteriores tratavam de sondagens e não negociações ou definições.
O programa Mais Médicos possui diversas ações que foram aprovadas em 2013 e reaprovadas em 2016 publicamente pelo Congresso Nacional, STF em 2017, TCU, OMS e pelo governo Temer, sendo que os médicos cubanos participam de apenas uma parte delas, reforçando o caráter de sondagens e missões técnicas com dezenas de outros países preparatórios".
Francisco Leali, O Globo