terça-feira, 2 de outubro de 2018

"Não é possível convocar uma Constituinte", editorial de O Globo

Proposta do PT, que não é nova, fere a própria Constituição e teria de ser derrubada pelo Supremo


Os dias têm sido intensos, e continuarão assim nesta reta final para o primeiro turno, devido à polarização radicalizada entre direita e esquerda. É parte do jogo eleitoral, mas desde que a democracia seja respeitada, não se ameacem a Constituição e a estabilidade política.
No debate de domingo à noite, promovido pela TV Record, um choque entre os candidatos Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT) expôs um risco de fratura na ordem constituída na defesa feita por Haddad da criação de “condições” para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, com a finalidade de realizar reformas tópicas, ideia, segundo Haddad, do ex-presidente Lula. De fato.
O candidato pedetista, com acerto, retrucou, dizendo ser impossível, do ponto de vista legal, o presidente da República encaminhar ao Congresso proposta neste sentido. Sequer o Congresso tem este poder. Promulgada a Carta em 1988, foi estabelecido o prazo de cinco anos para que ela pudesse ser alterada sem a necessidade do quórum qualificado de emenda constitucional, e, depois, não mais. Como em qualquer democracia representativa que mereça o nome, a Constituição só pode ser alterada — exceto as cláusulas pétreas — por emendas submetidas a dois turnos de votação em cada Casa do Congresso e aprovadas por quórum especial de três quintos (60%). Este é um pilar da segurança jurídica de uma nação democrática. Constituinte originária, em que o quórum é de maioria simples, só em rupturas institucionais. Ela é pactuada na sociedade, negociada pelas forças políticas, como foi em meados dos anos 1980, na transição para a volta à democracia.
A proposta colocada no programa de Haddad deriva da antiga obsessão petista, inspirada no chavismo, de sepultar a democracia representativa a partir de uma Constituinte extemporânea. Se vingar, terá de ser extinta pelo Supremo. Chame-se a atenção para o fato de a defesa desta Constituinte de ocasião ter sido feita depois da publicação pelo jornal espanhol “El País” de entrevista do ex-ministro José Dirceu — solto com tornozeleira eletrônica, por liminar concedida pela Segunda Turma do STF —, em que afirma que é questão de tempo o PT “tomar o poder”. E acrescentou: “o que é diferente de ganhar uma eleição.”
A declaração de Dirceu, também condenado por corrupção como diversos companheiros, remete à resolução aprovada pelo Diretório Nacional do partido, em 2016, no impeachment de Dilma, em que a legenda faz sugestiva autocrítica. Lamenta o fato de que,enquanto era poder, não haver interferido no currículo das escolas militares e na promoção de oficiais. Nem controlado a Polícia Federal e o Ministério Público. O qual, se depender da vontade de Dirceu, segundo declaração feita há pouco, perderia seu poder de investigação, reconhecido pelo Supremo.
Há ataques à democracia desfechados também no campo oposto, de Bolsonaro, embora ele tenha, em boa hora, recuado na inaceitável suspeição sobre o resultado do pleito, caso não seja o vencedor. Houve, ainda, a proposta autoritária, também descabida, de seu vice, general Mourão, de uma Constituinte de “notáveis”. Tão ilegal quanto a do PT. Mourão também discorreu de maneira míope sobre os lares chefiados por mulheres. Bolsonaro pediu ao general para suspender sua agenda de campanha .
Ainda haverá um debate, na quinta-feira, na TV Globo. É preciso que candidatos e partidos deixem claro que entendem que a democracia brasileira é um patrimônio fundamental da sociedade. Não se concebe a existência de projetos autoritários, à esquerda e à direita.