segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Recebi ameaças de morte por defender Bernard Madoff, autor do maior esquema de pirâmide do século, diz advogado Ira Sorkin

NOVA YORK
Aos 80 anos, Bernard Madoff passa suas horas livres na prisão federal de segurança média Butner, em Durham, Carolina do Norte, estudando o sistema prisional americano, conta o advogado Ira Sorkin, 75, que representou o autor do maior esquema de pirâmide do século.
Madoff tem bastante tempo para se aprofundar no assunto. O financista foi sentenciado, em junho de 2009, a 150 anos de prisão por uma fraude de US$ 20 bilhões (R$ 82,9 bilhões) --os US$ 65 bilhões (R$ 269,5 bilhões)"inicialmente divulgados, na verdade, foram forjados com a ajuda de documentos falsos.
Sorkin, um dos primeiros advogados a se aprofundar no uso de informações privilegiadas para manipular preços de ações, avalia que faltou empenho dos reguladores do mercado de capitais americano para investigar as atividades do financista.
O advogado Ira Lee Sorkin
O advogado Ira Lee Sorkin - Michael Nagle/Bloomberg
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"É muito triste, a SEC [Comissão de Valores Mobiliários americana] podia ter detido isso anos antes", afirma.
Antes de atuar no caso de Madoff, Sorkin defendeu outro famoso criminoso do mercado financeiro: Jordan Belfort, o lobo de Wall Street.
Por representar clientes acusados de desviar dinheiro de investidores, o advogado diz ter recebido ameaças de morte. "As pessoas que criticam os advogados só criticam se não precisam de um advogado. Quando eles precisam, não são tão críticos. Há um certo nível de hipocrisia."
A entrevista com Sorkin abre série de reportagens da Folha sobre os dez anos da crise.

Como o sr. conheceu Madoff? Eu o conheci nos anos 1980. Minha empresa investiu em um plano de aposentadoria, eu tinha uma pequena parte, uns US$ 16 mil [R$ 66,33 mil]. Então quando eu fui para o [banco] Nomura, em 1994, eu fechei a conta e meu escritório de advocacia me deu o dinheiro do plano.
Meu pai tinha uma conta com ele. Ele morreu em 2001, a conta de aposentadoria individual era de US$ 900 mil [R$ 3,7 milhões]. Ele deixou para minha mãe, e ela usou os juros até morrer, em 2007. Minha mãe deixou o principal para meus dois filhos.
E depois eles [os responsáveis por recuperar o dinheiro desviado pelo financista] tiraram o dinheiro dos meus dois filhos, porque ela estava usando, sem a gente saber, dinheiro que pertencia a outras pessoas. Aí meus filhos disseram: não é nosso, não queremos. Então devolvemos o dinheiro.
O sr. desconfiava que ele poderia estar por trás de um esquema fraudulento? Nada podia despertar dúvidas sobre o que ele prometia aos investidores. Ninguém sabia. Ele escondeu da esposa [Ruth], dos filhos [Mark e Andrew]. Eles não tinham conhecimento do que ele fazia.
Houve pessoas no 17º andar [onde a fraude efetivamente ocorria] que sabiam. O braço direito [Frank DiPascali, morto em 2015] sabia, e algumas outras pessoas que trabalhavam no 17º andar, onde ele conduzia esses negócios.
Os filhos não tinham permissão de ir até lá. Havia um cadeado na porta, e ele mantinha os dois longe dali.
Eu acho que ele fez isso porque, no fundo, sabia que ia acabar algum dia.
Como ele convencia as pessoas a investir com ele? Era interessante, porque ele nunca pediu às pessoas. Ele disse que as pessoas chegavam até lá e davam seu dinheiro. Ele nunca pediu. Ele foi presidente da Nasdaq [Bolsa de valores eletrônica], era cogitado para ser presidente da SEC [Comissão de Valores Mobiliários americana]. Havia pessoas que não confiavam nele, mas, de uma maneira geral, estava no topo da pirâmide.
Como o sr. ficou sabendo que ele estava sendo acusado de fraude? Ele me ligou em 1º de dezembro de 2008 para me visitar. Eu não sabia sobre o que era, concordamos em nos encontrar em uma sexta-feira, 12 de dezembro.
Na manhã de 10 de dezembro, eu estava a caminho de Washington DC, ele me ligou e pediu para adiar a visita para o dia 15. Eu disse que sim, ainda sem saber do que se tratava.
Em Washington, eu tinha que discursar em um evento de caridade. No dia 11 de manhã, eu estava sentado na sala da pré-escola da minha neta, em Kensington [Maryland], e eles estavam falando de fazenda, fazendo sons de animais. E meu telefone toca.
Era o Bernie, dizendo que estava algemado a uma cadeira na sede do FBI [polícia federal americana]: "Eu preciso da sua ajuda", disse. E eu não fazia ideia do que se tratava.
Aí, eu fui para o corredor, pedi para ele colocar o agente do FBI na linha e falei que ele não podia mais fazer perguntas. O problema é que ele tinha confessado.
Eu o encontrei pela primeira vez na manhã de 12 de dezembro. Eu estava com alguns sócios, e falamos com ele. Mas estava acabado já. A mulher dele estava em choque. Ele estava, em um certo grau, resignado.
Como o FBI ficou sabendo? Ele havia contado para os dois filhos no dia anterior, e eles falaram com o FBI e com outras autoridades. Quando o FBI foi ao apartamento dele, ele abriu a porta. Eles perguntaram: "Há alguma explicação inocente?" A resposta dele foi: "Não, é tudo uma fraude". E foi o fim.
Quando ele decidiu confessar o esquema? Ele sabia que ia terminar quando as pessoas começaram a pedir o dinheiro de volta, no começo de 2008.
Os pedidos estavam na casa de US$ 7 bilhões [R$ 29 bilhões]. E não tinha jeito de ele pagar essas pessoas de volta.
Ele começou a se mexer para tentar levantar esse dinheiro. Ele conseguiu levantar US$ 250 milhões [R$ 1,03 bilhão], o que é muito dinheiro, mas não são US$ 7 bilhões. E depois ele só desistiu e falou: acabou.
E depois disso? Ele entregou o passaporte, a casa era cercada por repórteres. Não tinha como ele fugir. Então, ele pagou a fiança. A mulher dele deu joias a uma irmã ou a uma nora, e o governo disse que ele estava tentando se desfazer de ativos, e pediu para revogar a fiança dele.
Nós fomos ao tribunal e lutamos. Mas, depois que ele se confessou culpado, ele perdeu a presunção de inocência. Então foi para a prisão.
O sr. achou a sentença dura? Era só uma mensagem. Eles queriam dar uma pena de prisão perpétua, mas não há prisão perpétua no sistema federal. Pode ter para assassinato, não tenho certeza, mas certamente não para fraude com ativos. Então o juiz combinou todas as acusações.
Muita gente perguntou: por que você não tenta reduzir a sentença? Para quê? 75 anos? Mesmo se reduzíssemos para 25 anos, ele teria 95 anos quando saísse. Nós tentamos conseguir para ele uma sentença de 12 anos. Fizemos análises como seguradoras fazem. Com 12 anos, ele sairia com 83 anos, e então poderia pelo menos ver a luz do dia. Mas não tinha como isso acontecer.
Por US$ 20 bilhões, milhares de pessoas que perderam o dinheiro, não tinha jeito de qualquer juiz dar 12 anos. Tentamos, fizemos o melhor. Mas o juiz não comprou. E eu acredito que ele sabia que ia morrer na cadeia.
Os reguladores foram muito criticados por não terem investigado com afinco as suspeitas contra Madoff. Como o sr. avalia a atuação da SEC [órgão que supervisiona o mercado] no caso? A SEC não viu isso. Eu tenho muita afeição pela SEC, eu tive uma posição sênior na SEC [Sorkin tem duas passagens pelo escritório de Nova York do regulador]. Mas os funcionários simplesmente não viram.
Eles nunca fizeram perguntas como: "se você está negociando em países estrangeiros, bilhões de dólares, nos dê o nome dos bancos com os quais você faz negócios. Onde estão os ativos? Você tem a custódia deles".
Há uma entidade que compara ordens de compra e venda de ações, e isso gera protocolo. Madoff passou isso para a entidade, ele estava muito nervoso ao fazer isso.
DiPascali disse para não fazer, porque estaria tudo acabado. Ele deu o protocolo. Eles nunca seguiram. Se tivessem feito, teriam visto que ele comprou 5.000 ações da IBM e que não tinha vendedor. Ele criou documentos falsos para mostrar que tinha comprado.
A SEC não viu isso. É muito triste, a SEC podia ter detido isso anos antes.
O sr. tem conversado com ele? Desde a sentença, eu não o represento. Mas eu mantenho contato de tempos em tempos. Ele me manda cartas, eu respondo. Eu falei com ele da última vez em abril.
Ele está interessado no sistema prisional. Os prisioneiros o respeitam por sua idade. Eles também respeitam a inteligência e o fato de ele ter sido um criminoso bem-sucedido por um tempo.
Ele não está em uma prisão de segurança máxima. É de segurança média, na Carolina do Norte. Ele é livre para andar, tem um emprego, trabalha na cozinha, acho.
Há duas contagens de preso, uma às 11h e outra às 16h, e ele tem de estar na cela.
Há arame farpado, paredes, mas podia ser pior, ele poderia estar em uma prisão de segurança máxima, em que os prisioneiros ficam confinados 23 horas por dia.
Sabe se ele fala com a mulher dele? Eu não sei se eles mantêm contato. Eu não sei se ele fala com ela.
A família foi devastada. Um dos filhos [Mark] cometeu suicídio dois anos depois que o pai foi preso. Ele estava mandando uma mensagem para o pai.
O outro, Andrew, morreu de câncer em 2014. E Andrew disse para a mãe: "Se você continuar a falar com meu pai, você não vai ver seus netos de novo". Então ela não teve escolha. Ela escolheu os netos.
O sr. também defendeu o lobo de Wall Street [Jordan Belfort, condenado por fraude com ativos e lavagem de dinheiro]. Como lida com as críticas? Você tem de ignorar. No meio do caso, eu recebi vários emails perguntando "como você pode representar um bandido?". A resposta é: ele tem direito de ser representado. E nós não fazemos julgamento sobre se ele deveria ou não ser representado.
As pessoas que criticam os advogados só criticam se não precisam de um advogado. Quando eles precisam, não são tão críticos. Há um certo nível de hipocrisia.
O caso de Madoff gerou muita raiva, você não tem ideia. Eu recebi algumas ameaças de morte. Uma pessoa escreveu que lamentava profundamente que minha família inteira não tivesse morrido nos campos de morte nazistas.
Ele pode ser um bandido, mas ele tem direito a proteção pela Constituição.
O que deveríamos fazer? O que alguns países fazem? Ah, ele fez isso, vamos atirar nele agora. Como o que acontece nas Filipinas, em que traficantes são presos e fuzilados?

Ira Sorkin, 75, é sócio do escritório de advocacia Mintz & Gold. Ele concluiu o bacharelado na Universidade Tulane e recebeu o grau de advogado pela George Washington University Law School. Atuou no escritório de Nova York da SEC (regulador do mercado de capitais americano), foi procurador-assistente na Procuradoria de Nova York, diretor do escritório de NY da SEC de 1984 a 1986, entre outros.

Danielle Brant, Folha de São Paulo