Uma das líderes da Revolução Sandinista, ela hoje é crítica feroz de Daniel Ortega, o presidente que celebra as conquistas revolucionárias, mas reprime com violência a oposição a seu governo
1. A senhora era muito próxima de Daniel Ortega durante a Revolução Sandinista. O que pensa de seu comportamento agora?
Já temos centenas de presos, milhares de feridos e mais de 30 mil nicaraguenses somente na Costa Rica, num verdadeiro exílio em massa. É um momento grave por causa da repressão, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem exaltadamente reconhecido. O país encontra-se numa encruzilhada: há uma maioria que quer avançar à democratização com justiça, mas a ditadura rechaça a opção de diálogo que se abriu com respaldo internacional. Ortega vem, desde 2007 (quando reassumiu a Presidência), subordinando todos os poderes do Estado, perseguindo liberdades, eliminando forças políticas, cometendo fraudes eleitorais e aliando-se à polícia e ao Exército. Em grande medida, o que acontece agora é produto de uma conduta restritiva da sua ditadura, cujo autoritarismo ofende o povo. E a resposta à reação popular tem sido ainda mais repressão.
2. Como crítica do governo, sente-se ameaçada? A senhora é acusada pelas autoridades de liderar os protestos...
Todos estão ameaçados na Nicarágua. Os 30 mil nicaraguenses no exílio são pessoas que saíram porque sentiram que sua vida estava em risco. Todos nós, que integramos a oposição contra Ortega, somos gravemente ameaçados por esta ditadura. Há muitos jornalistas e promotores de direitos humanos no exílio, por exemplo. No último 23 de agosto, o regime tentou tomar um canal de televisão privado para impor sua linha editorial. O dono do canal não permitiu e teve de se refugiar na embaixada de Honduras, porque está sendo perseguido simplesmente por não acatar a vontade do regime. Também o sacerdote da paróquia de Monimbó (bairro indígena da cidade de Masaya, bastião rebelde sob forte repressão de policiais e paramilitares nos últimos meses) teve de sair do país porque fora ameaçado de morte: colocaram uma pistola em sua boca e o agrediram fisicamente a ponto de fraturar suas costelas. Não há ninguém que esteja fora do âmbito da repressão. Estamos todos na mira.
3. A ocupação do Palácio Nacional em Manágua, da qual a senhora foi a Comandante Número 2, faz 40 anos. Vê semelhanças daquele momento com o presente?
Sim, claro. Em primeiro lugar, falamos agora da reedição de uma ditadura familiar que responde a turbulências com repressão brutal. A ditadura Somoza tinha controle sobre tudo e usava seu poder contra o povo nicaraguense. Agora, a família Ortega-Murillo (Rosario Murillo, mulher de Ortega e vice-presidente) também controla as instituições e as utiliza contra a população. A diferença é que, naquele momento, havia um setor engajado numa luta armada: era o que nós fazíamos. Já a ditadura de Ortega se lança contra um povo totalmente desarmado, o que é uma distinção importante. As semelhanças entre o somozismo e o orteguismo são enormes, contudo, e claramente aqui estamos observando, vivendo ou sendo protagonistas dos protestos sociais mais importantes que a Nicarágua teve nos últimos 40 anos. Nunca houve uma manifestação tão gigantesca e unânime em seu objetivo como a que acontece agora. Estamos diante de uma crise total do modelo ditatorial, que somente pode ter uma saída: abrir a porta à democratização do país.
4. As marchas começaram em oposição a uma proposta de reforma previdenciária. Havia algo mais por trás dessa centelha?
Há milhares de razões. Pouco antes de abril (no dia 18 de abril começaram as manifestações nas ruas), uma camponesa havia denunciado o assassinato de seus dois filhos adolescentes, menores de idade. A menina foi torturada, violada e morta; e o menino, esfaqueado. As autoridades os retrataram como delinquentes e não entregaram seus corpos à mãe até hoje. Essa e muitas histórias foram se acumulando e mostrando a situação atual no campo. Há também milhares de camponeses ameaçados pelo projeto de construção de um canal interoceânico que Ortega concedeu a uma empresa chinesa, com uma fatura altíssima. Essas pessoas nunca foram ouvidas, nem mesmo uma vez, já com a liberdade de expressão limitadíssima na Nicarágua. Trata-se de uma lista de queixas que a população tem dos últimos 11 anos: humilhações nas favelas, discriminação no mercado de trabalho e repressão. Isso se voltou contra a previdência social, e as demandas por justiça foram aumentando depois que começaram os assassinatos logo no segundo dia de manifestações.
5. Ortega tenta personalizar a memória sandinista ao redor de seu nome. E, mesmo sob tantas críticas, celebra as conquistas de 1979. Essa postura ainda tem chances de funcionar durante uma crise desta magnitude?
Francamente, a primeira coisa que Daniel Ortega perdeu foi o patrimônio sobre o sandinismo. Há milhares de sandinistas incorporados a essas marchas cívicas e são alvo de perseguição tremenda. Se há gente que é ameaçada ferozmente e assassinada são ex-militares, ex-combatentes que lutaram contra a ditadura de Somoza, pessoas que defenderam a revolução e outras que tiveram cargos na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Já se vão mais de 120 dias desde que sequestraram o ex-major do Exército e ex-secretário político da FSLN Tomás Maldonado Pérez, de quem não se sabe absolutamente nada. Existem apenas os depoimentos de como foi o sequestro, mas ninguém sabe como está, onde se encontra ou mesmo se está preso. Ou seja, provavelmente foi assassinado. Ortega não pode mais dizer que é o dono da Revolução Sandinista, e essa é uma perda que sofre também diante da comunidade internacional. Está claríssimo que este Ortega já não tem nada a ver com a revolução e muito mais se parece com Somoza do que com os guerrilheiros.
6. Esta crise prejudica ou impõe desafios a outros partidos de inspiração sandinista, como seu Movimento Renovador Sandinista (MRS)?
O MRS foi fundado em 1995 justamente em oposição a essas tendências de Ortega e com um compromisso sólido com os direitos humanos e a justiça social. E foi perseguido por isso: de lá para cá, fomos ameaçados de morte e nos tiraram a personalidade jurídica, ou seja, o partido não tem registro legal. Quando tentamos participar de eleições, nos retiram do processo. Mas vamos seguir persistindo como força política. Temos de sair com uma plataforma de unidade que permita priorizar a reconstituição democrática do país. Isso é fundamental para que possam ser ouvidos os movimentos sociais, os camponeses e todos mais, trocando a fórmula do medo pela capacidade e possibilidade de expressão.
7. Como avalia a reação da comunidade internacional, sobretudo dentro da América Latina?
Sinto muita gratidão pela solidariedade da maioria dos governos com o povo da América Latina, com exceção de Venezuela, Bolívia e Cuba, obviamente. O regime de Ortega está totalmente isolado, e o continente americano se reuniu para demandar a democratização da Nicarágua e o fim da repressão. O mais particular é que tanto governos de esquerda como de direita ou de centro foram unânimes na mesma demanda, dizendo que Ortega não desfruta de sua companhia. Os únicos que o apoiam são governos de nostalgia stalinista, que estão dispostos a respaldá-lo independentemente das violações de direitos humanos e matanças cometidas por ele. Lamento por isso, mas o resto do continente ficou ao lado das demandas do povo nicaraguense.
8. A senhora cogita deixar o país e ir para o exílio?
De maneira nenhuma. Estou na Nicarágua. E aqui vou permanecer a qualquer custo.
Heloísa Traiano, Epoca