VEJA teve o azar de nascer às vésperas do Ato Institucional Nº 5 mas a sorte de viver a maior parte dos cinquenta anos agora completados sob o regime mais democrático que o Brasil já conheceu. A edição nº 1 da revista chegou às bancas na segunda semana de setembro de 1968, com data de capa do dia 11 daquele mês, quarta-feira. A lâmina liberticida do AI-5 desabou sobre o país três meses depois. Fechava-se o Congresso, suspendiam-se as garantias de liberdade de expressão e reunião, retomava-se a temporada de cassações de mandato e demissões sumárias, abria-se a possibilidade de confisco de bens e impedia-se o habeas-corpus para os “crimes políticos”. A foto de capa escolhida para a ocasião mostrava o presidente Costa e Silva sozinho no Congresso, sentado entre cadeiras vazias. Só ele agora mandava, era o recado. A revista teve toda a sua edição apreendida nas bancas, por ordem do Exército, inaugurando oito anos em que a convivência com a censura prévia se alternaria com a violência das apreensões de exemplares nas bancas.
O período ditatorial conheceu o seu ocaso com a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, em janeiro de 1985. A revista escreveria, na edição que precedeu a votação no chamado Colégio Eleitoral:
“Pela primeira vez em 21 anos, um civil ocupará a chefia do governo brasileiro, encerrando o único ciclo duradouro de poder militar da história do país. Saído do PMDB e apoiado por uma dissidência do partido do governo, Tancredo será também o primeiro oposicionista a ocupar o Palácio do Planalto depois do mais longo período de monopólio do poder ocorrido em toda a vida nacional. Com ele deverá começar o que com suas palavras chamou, em dezembro de 1984, uma ‘Nova República’ ”.
Democracia e seu reverso, a ditadura. Democracia e sua construção. Seus êxitos e seus tropeços, suas virtudes e suas deficiências. A democracia foi, nos últimos cinquenta anos, e possivelmente continuará sendo, nos próximos cinquenta — no Brasil e no mundo —, um tema recorrente e incontornável. Discutiu-se a democracia em teoria e viveu-se a prática de seus avanços e retrocessos.
A democracia chilena, junto com a uruguaia a mais estável da América do Sul, conheceu o seu armagedom na data ominosa de 11 de setembro de 1973. A revista completava exatos cinco anos de vida, e tinha uma enviada especial, Dorrit Harazim, em Santiago. Ela assistiu à brutalidade com que os jatos da Força Aérea Chilena destruíram o Palácio de La Moneda, onde se entrincheirava o presidente Salvador Allende, e escreveu: “ ‘Pela razão ou pela força’, ensina a divisa do emblema nacional do Chile. ‘Como é claro e azul teu céu’, canta o Hino Nacional. (…) Na manhã da última terça-feira, o céu brilhava claro e azul em Santiago, e a razão nada mais podia. Restava a força, e ela foi empregada com uma severidade inédita na América Latina”.
Apenas sete meses depois a gangorra na qual se sacudiam, mundo afora, a liberdade e a opressão, a treva e a luz, a democracia e a tirania experimentava outro movimento brusco, em sentido contrário ao vivenciado no Chile. A ditadura portuguesa, tão consolidada que parecia eterna, responsável pelo arbítrio e pela mediocridade em que o país se arrastava havia 41 anos, conhecia morte súbita em 25 de abril de 1974. O relógio marcava 0h20 daquela quinta-feira quando a rádio Renascença, de Lisboa, levou ao ar a canção Grândola, Vila Morena, em que o compositor Zeca Afonso louvava as virtudes de um vilarejo do Alentejo, “terra da fraternidade”, em que “o povo é quem mais ordena” e em que reina, “em cada esquina, um amigo, em cada rosto, igualdade”. A música era a senha para que as unidades militares comprometidas com o movimento iniciassem o cirúrgico processo de extirpação do regime inaugurado por Antônio de Oliveira Salazar e então custodiado por seu sucessor, Marcello Caetano.
“Ainda no início da semana passada eles (os portugueses) formavam aos olhos do mundo um povo envelhecido de emigrantes, sem planos para o futuro”, escreveu Pedro Cavalcanti, correspondente de VEJA em Paris, deslocado a Lisboa para cobrir o histórico evento. “Mas, antes que a semana acabasse, o povo estava plenamente entregue à experiência inédita de manifestar livremente seus sentimentos — e o país revelou feições absolutamente inesperadas.”
O movimento português seria apelidado de Revolução dos Cravos. Em contraponto às bombas em Santiago, oferecia flores à população. Portugal estava em festa. As festas coletivas mais comoventes dos últimos cinquenta anos foram as que saudavam a chegada da democracia — a do fim do apartheid na África do Sul, a da queda do Muro de Berlim. Inversamente, alguns dos momentos mais dramáticos foram aqueles em que a força bruta decapitou o sonho da democracia — os tanques a invadir a Checoslováquia da efêmera Primavera de Praga, a repressão ao movimento dos estudantes na Praça da Paz Celestial, em Pequim. Nas seções que se seguem abordaremos (1) o processo de reconquista da democracia no Brasil; (2) as ameaças e fragilidades da democracia, no Brasil e no mundo; (3) o futuro da democracia.
ÁRDUA CONQUISTA
A reconquista da democracia no Brasil foi resultado de um laborioso processo. Comecemos por um paradoxo: em poucas situações se fala tanto em democracia quanto na vigência de uma ditadura. Às vezes aos sussurros, é verdade, porque os ouvidos da polícia secreta podem estar atentos. Era o que ocorria em Portugal, onde a famosa Pide não descansava. Ou mesmo no Brasil, em certos momentos mais intensos do regime militar. Mas a escorregadia palavra democracia pode frequentar também a fala de quem acaba de ascender ao poder por força de um golpe. Em seu discurso de posse na Presidência da República, em abril de 1964, o marechal Castello Branco descreveu como objetivos do movimento sob seu comando “restaurar a legalidade, revigorar a democracia, restabelecer a paz e promover o progresso e a justiça social”. Democracia é palavra sedutora demais, em nosso tempo, para ser descartada, mesmo em atos inaugurais de uma ditadura. Inversamente, “democracia” era também invocada pelos grupos de esquerda que, a partir de 1966, recorreram à luta armada para combater o regime. Até hoje, veteranos da aventura guerrilheiro-terrorista apresentam-se como combatentes da democracia. Eram tempos da Guerra Fria entre o capitalismo e o comunismo e o combate era na verdade pelo comunismo. Não se conhece até hoje regime comunista democrático, entendida a democracia por sua mais corriqueira e fundamental acepção — um regime em que os dirigentes são eleitos pelo povo e em que as liberdades essenciais são garantidas.
A redemocratização do Brasil decorreu da ação conjugada de três fatores: o projeto do governo, as manifestações da sociedade civil e os azares do processo eleitoral. O governo Geisel pôs na mesa o que então se chamava de distensão, um substantivo que, quando atrelado aos adjetivos “lenta, gradual e segura”, completava a fórmula em sua mais reveladora embalagem. Tratava-se de liberalizar o regime, no limite até de dissolvê-lo, mas nada de pressa. Quem ditaria o ritmo eram os próprios detentores do poder, passo a passo, e o fariam de forma segura o suficiente para não deixá-lo escorrer às mãos descontroladas do vulgo. Não se pôs a distensão a andar por favor. O milagre econômico do governo Médici se esvaíra. A crise do petróleo de 1973, com consequências planetárias, refreara os horizontes do Brasil e nos legara uma carga que nos acompanharia por anos a fio, a da dívida externa.
A tais fatores, juntava-se a peculiaridade de que desde o início a ditadura brasileira se impusera que, uma hora, tinha de acabar. No discurso de posse já citado, o marechal Castello Branco dizia esperar que, “ao iniciar-se o ano de 1966”, viesse a entregar o poder ao seu “sucessor legitimamente eleito pelo povo, em eleições livres”. Não era como o regime de Franco, na Espanha, de Salazar, em Portugal, ou dos países comunistas, que se imaginavam definitivos, assim como mais recentemente se imaginou definitivo, aqui na vizinhança, o regime inaugurado na Venezuela por Hugo Chávez. Na expressão precisa do brasilianista Alfred Stepan, o Brasil vivia uma “situação” autoritária, palavra que conduz à ideia de provisório, e não um regime com vocação para institucionalizar-se. Entre os militares mais lúcidos, e Geisel estava entre eles, impor-se um termo era necessário até para salvaguardar o Exército. Quanto mais a instituição o retivesse, mais sofreria a usura do poder.
A “distensão lenta, gradual e segura” seria atravessada por percalços, alguns dos quais gestados no interior do próprio sistema, como então se chamava a complexa, e frequentemente contraditória, máquina do poder. Em outubro de 1975 o jornalista Vladimir Herzog foi morto, sob tortura, em dependência do Exército em São Paulo. Três meses depois, nas mesmas circunstâncias e no mesmo local, foi morto o operário Manoel Fiel Filho. Geisel enxergou nos dois casos a ação de provocadores em sua retaguarda, e enxergou certo. Os porões do regime se moviam em desafio a seus propósitos liberalizantes. Teve de agir com firmeza, e demitiu o comandante do II Exército, com jurisdição em São Paulo, general Ednardo D’Ávila Melo. Na edição em que tratou do assunto, VEJA falou longamente do sucessor de D’Ávila Melo, o “sorridente” general Dilermando Monteiro, e nada do demitido. Os leitores ficaram sabendo que Monteiro tocava piano e acordeão de ouvido, que seu repertório incluía A Jardineira e O Teu Cabelo Não Nega, e que estava em dúvida entre torcer para o Palmeiras e para o Corinthians, agora que moraria em São Paulo, mas nada do motivo da troca de comando. A revista encontrava-se sob censura.
O “lento, gradual e seguro” estava virando “aos trancos e barrancos”. A oposição dentro das Forças Armadas cresceu a ponto de cristalizar-se no próprio ministro do Exército, Sylvio Frota. Lideranças paralelas, encrenqueiros e provocadores desde o início povoaram os intestinos do regime, configurando o que o jornalista Elio Gaspari, autor da melhor história do período, chamou de “anarquia militar”. Frota, representante máximo da então chamada “linha-dura”, amealhou apoios e arvorou-se em candidato à sucessão de Geisel. Acabou demitido, na mais arriscada manobra do presidente, e na mais audaciosa investida contra os anarquistas, em 12 de outubro de 1977. Geisel estava livre para conduzir a sucessão a seu modo, instalando o chefe do SNI, João Baptista Figueiredo, na cadeira presidencial, e para perpetrar o seu maior feito: a revogação do Ato Institucional Nº 5, em vigor à zero hora de 1º de janeiro de 1979. O comandante de oposição, Ulysses Guimarães, aparece na edição de VEJA daquela semana dizendo: “É como se a nação fosse informada de que, afinal, o câncer tem cura”.
Na gestão de Figueiredo vai se manifestar com mais força a pressão de baixo, da sociedade civil, pela redemocratização. Movimentos pela anistia, greves, livre debate pela imprensa e, por fim, a campanha pela eleição direta do presidente tiveram, tudo somado, o efeito de atropelar a tentativa do governo de ainda manter o processo sob seu controle, gradual e seguro. Aos reclamos de anistia “ampla, geral e irrestrita”, o governo respondia com um projeto restrito, mas já não havia AI-5 nem liderança forte, no Planalto, para segurá-lo. Em junho de 1979, VEJA saiu com capa em que a palavra “anistia”, em grandes letras, se repetia cinco vezes. A reportagem respectiva reproduzia um apelo de Nelson Rodrigues, um anticomunista e defensor do regime, agora engajado na campanha: “Solte esses rapazes. Meia dúzia de obras gigantescas não colocam um presidente na história. Você é o único brasileiro que tem essa oportunidade na mão. Solte esses moços, Figueiredo. Por favor, Figueiredo, solte meu filho”. O filho, preso havia nove anos, acusado de integrar a luta armada, foi solto, e com ele os outros todos. E voltaram ao país os exilados ilustres, Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes.
Ainda no governo Geisel irrompera com estrondo no país o que então se chamou de “novo sindicalismo”, com sede preferencial na região do ABC paulista. Seu líder era um metalúrgico ao qual a imprensa se referia como “Luiz Inácio da Silva, o Lula”. As greves se repetiriam até 1980, escancarando de vez a tampa com que o regime pretendeu sufocar a questão social. Nada se compara, no entanto, em mobilização popular, com a campanha das Diretas Já, em favor da aprovação da emenda constitucional do deputado Dante de Oliveira, que propunha a eleição direta do presidente da República. Em sua edição com data de 1º de fevereiro de 1984, VEJA publicou na capa uma foto aérea da Praça da Sé, em São Paulo, coalhada de gente. “Eu quero votar pra presidente”, aparecia escrito em cima da foto, em letra cursiva, como se fosse o recado de um popular. “A história das manifestações políticas da sociedade brasileira ganhou na quarta-feira passada um novo marco de grandiosidade”, dizia a reportagem nas páginas internas, informando que 200 000 pessoas estiveram presentes na manifestação. Os comícios que se seguiram, em diferentes cidades do país, podem hoje ser considerados, com a distância do tempo, uma festa antecipada pela reconquista da democracia. Ainda que a emenda Dante de Oliveira tenha afinal sido derrotada no Congresso, não foi em vão que se assistiu a uma das maiores, se não a maior, mobilizações populares da história do país.
O terceiro fator a determinar a democratização do país, os azares do processo eleitoral, tem seu ponto de partida na eleição parlamentar de 1974. Uma das bizarrias do regime era permitir a existência de um partido de oposição. A bizarria, inerente à condição de “situação autoritária”, para retomar Alfred Stepan, gerava o benefício de ganhos de imagem, internos e externos, sem oferecer maiores ameaças, dada a desproporção entre as regalias da Arena, o partido do governo, em nacos do poder e consequente influência eleitoral, e a penúria do oposicionista MDB. Em 1974 a mágica do bipartidarismo e das eleições com resultados previsíveis sofreu um tropeço, e o MDB ganhou dezesseis das 22 cadeiras em disputa no Senado. Eleições de senadores eram as únicas disputas majoritárias permitidas pelo regime. As de governador, assim como a de presidente da República, eram decididas em conciliábulos e depois sacramentadas nos colégios eleitorais em rituais de cartas marcadas.
O projeto de eleições controladas sofreu forte abalo, e precisou ser corrigido três anos depois, com o chamado Pacote de Abril, conjunto de medidas que, além de fechar temporariamente o Congresso, por não ter aprovado uma reforma do Judiciário imposta pelo governo, incluiu novas regras eleitorais, entre as quais a nomeação por via indireta de um em cada três senadores. Com a introdução dessa esdrúxula figura, logo apelidada de “senador biônico”, seria afastada a ameaça de em 1978, quando estariam em jogo duas cadeiras por estado, repetir-se o revés de quatro anos antes.
Os artifícios do Pacote de Abril retardaram mas não estancaram o processo de desgaste do partido do governo nas urnas. A partir de 1974, segundo escreveu o cientista político Bolivar Lamounier no livro Tribunos, Profetas e Sacerdotes, “ganha corpo a percepção de que o regime poderia ser batido nas urnas”. Em 1982, permite-se pela primeira vez a eleição direta dos governadores e a oposição elege os seus candidatos em dez dos 22 estados, inclusive nos três mais populosos — São Paulo, com Franco Montoro, Minas Gerais, com Tancredo Neves, e Rio de Janeiro, com Leonel Brizola. “Um cenário plausível”, escreve Lamounier, “era o de que uma progressão de vitórias oposicionistas acabaria por encantoar o regime em seu último reduto, o Colégio Eleitoral.” Foi o que ocorreu em 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves ganhou de Paulo Maluf por 480 a 180 votos. VEJA noticiou que Figueiredo costumava referir-se ao mineiro como “Tancredo Never”. Teve de engolir o Tancredo Neves.
SOBRESSALTOS
Falar mal abertamente da democracia já foi moda. “Nos períodos de crise, como o que atravessamos, a democracia de partidos, em lugar de oferecer segura oportunidade de crescimento e de progresso, dentro das garantias essenciais à vida e à condição humana, subverte a hierarquia, ameaça a unidade da pátria, e põe em perigo a existência da nação, extremando as competições e acendendo o facho da discórdia civil.” As palavras são do presidente Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, dia da instalação do Estado Novo, nome copiado do regime de Salazar. Assim como aconteceria com o AI-5 no regime militar de três décadas depois, o Estado Novo inaugurou a fase mais dura do período de Vargas. Mas, ao contrário dos generais de 1964-1985, Vargas não tinha pejo em denunciar as liberdades. O “sufrágio universal”, disse ele no mesmo discurso, tornara-se “instrumento dos mais audazes e máscara que mal dissimula o conluio de apetites pessoais e de corrilhos”. E o Poder Legislativo revelara-se um “aparelho inadequado e dispendioso”, a tal ponto que mantê-lo seria “obra de espírito acomodatício e displicente”.
Viviam-se anos de desprestígio das democracias. O futuro parecia estar com os regimes fortes, fossem de direita, como os de Hitler e Mussolini, fosse o comunismo soviético, sob o tacão de Stalin. Um e outro tinham adeptos de peso no país. Em junho de 1940, Getúlio voltaria ao mesmo diapasão num discurso a bordo do encouraçado Minas Gerais, no dia da Marinha. “Passou a época dos liberalismos imprevidentes, das demagogias estéreis, dos personalismos inúteis e semeadores de desordens”, disse. O tempo seria “das nações fortes, impondo-se pela organização baseada no sentimento da pátria, e sustentando-se pela convicção da própria superioridade”. A Europa já estava em guerra. A França acabara de ser ocupada pelos nazistas. Nosso ditador estava a pique de se engajar no lado do conflito que se revelaria errado.
Ataque tão direto e explícito aos valores democráticos soa hoje estranho, mas um olhar alongado pela história diminui a estranheza. A democracia nasceu na Grécia, como sabem todos. O que não sabem é que já nasceu contestada, e pelos melhores espíritos do tempo. Platão propugnava por um governo de sábios. E seu discípulo Aristóteles, ao ranquear as diversas formas de governo, punha a democracia entre as piores. Ambos pela mesma razão: o fato de o governo ser conduzido “pelo povo ou pela massa, aos quais foram habitualmente atribuídos os piores vícios da licenciosidade, do desregramento, da ignorância, da incompetência, da insensatez, da agressividade, da intolerância”, nas palavras do filósofo e cientista político italiano Norberto Bobbio. A democracia ateniense expressava-se com o povo na rua. Hoje o símbolo maior da democracia é a eleição, lembra Bobbio, no livro Teoria Geral da Política. E a cabine eleitoral, ou, no caso brasileiro, a urna eletrônica, é o símbolo da democracia em ação. Para os gregos, o símbolo da democracia era o povo reunido na praça para deliberar, os braços erguidos para aprovar as propostas, inertes para desaprová-las.
Há uma diferença capital entre a democracia ateniense e a moderna. A moderna é uma democracia representativa; o povo elege representantes, e estes decidem pelo povo. A ateniense era direta. Aos cidadãos reunidos na praça em assembleia (a ekklesia) eram propostas as questões da cidade (a polis) e ali mesmo decididas. Bem entendido que entre os cidadãos aptos a deliberar não se incluíam as mulheres, os escravos e os estrangeiros, mas mesmo assim a assembleia atraía milhares de pessoas, e em tese todos tinham o direito de se manifestar. Outra diferença era o método de preencher os cargos de governo: mais se valiam os gregos do sorteio do que da eleição. Preenchiam-se por sorteio, entre cidadãos que se voluntariavam para participar, as vagas do Conselho dos 500 (grosso modo, encarregado de elaborar a pauta para a ekklesia) e vários cargos que hoje seriam chamados de “executivos”. Apenas 10% dos cargos eram preenchidos por eleição, um deles o de general. Não por acaso, eram os cargos mais sensíveis. O resultado da eleição era controlável, ao contrário do sorteio. Daí por que Aristóteles considerava que o sorteio era um método democrático, enquanto a eleição era aristocrática.
Nos tempos modernos a democracia, em baixa no período que antecedeu a II Guerra Mundial, recuperou seu prestígio com o desfecho do conflito. No Brasil, a Constituição de 1946 proporcionou um interregno democrático que não chegaria a vinte anos — interrompeu-se em 1964 — e foi salpicado de conúbios entre políticos e militares e tentativas de golpe. Basta lembrar a célebre invectiva de Carlos Lacerda, às vésperas da eleição de 1955, um modelo do desprendimento com que os políticos descartavam a Constituição: “Juscelino não será candidato. Se for, não se elege. Se se eleger, não toma posse. Se tomar posse, não governa”. Progredimos. É notável como todos, de um lado a outro do espectro político, falam hoje com carinho da “nossa democracia”, embora da sinceridade de alguns se possa desconfiar. Tanto progredimos que ao longo da construção de um ideário democrático durante o período militar, ocorrida na surdina em certos períodos, abertamente em outros, entre intelectuais, jornalistas e políticos, consolidou-se o conceito de democracia como “um valor em si”, não como escada para objetivos outros, à esquerda ou à direita. Não é pouca coisa, por mais que ultimamente se sinta o cheiro de desafios a tal consenso.
A queda do Muro de Berlim propiciou um renovado surto de prestígio à ideia da democracia. Os países comunistas entregaram os pontos e não tiveram alternativa senão uma atabalhoada corrida ao regime de liberdades reclamado por seus povos. Na euforia da vitória o cientista político Francis Fukuyama decretou “o fim da história”. Não poderia haver ousadia maior. Mesmo que, ao longo de seu livro, ele suavizasse o tom peremptório do título, a ideia central era aquela mesmo: a de que os tempos da procura pela melhor maneira de governar os povos tinham encontrado a forma definitiva. Não fosse essa a ideia, o livro não teria pegado. O título era forte como um slogan publicitário.
E hoje… que estaria acontecendo hoje? Um refluxo momentâneo dos ideais democráticos? Ou o anúncio de uma era sombria como a dos anos 1930? Na França, a Frente Nacional, anti-imigrante, para não dizer racista, nacionalista, para não dizer xenófoba, e até pró-nazista em manifestações de seu hoje afastado fundador, Jean-Marie Le Pen, já foi duas vezes ao segundo turno em eleições presidenciais. Na Itália, a Liga Norte, hoje rebatizada apenas “Liga”, igualmente anti-imigrante, nacionalista, xenófoba e até separatista (surgiu defendendo a separação do país entre Norte e Sul), tornou-se, na eleição de março, a força predominante no Parlamento, e legenda mais influente na coalizão governamental. Partido semelhante também participa do governo na Áustria, enquanto movimentos aparentados vêm crescendo na Alemanha e na Suécia. Na Inglaterra, o entrincheiramento exclusivista e xenófobo traduziu-se na vitória do Brexit. Os Estados Unidos nos presentearam, a todos os cidadãos do planeta, com Donald Trump.
Um dos livros de maior impacto lançados neste ano é Como as Democracias Morrem, dos professores da Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, (no Brasil foi publicado agora). A tese central dos autores é que, cessada a era dos golpes, as democracias hoje morrem pelo voto. Os atuais governos de Turquia, Polônia, Hungria e Venezuela foram todos legitimamente eleitos para, uma vez vitoriosos, solapar instituições, perseguir adversários e abrir terreno para perpetuar-se no poder. A liberdade de imprensa é alvo preferencial de tais regimes.
Duas organizações que medem o estado da democracia e das liberdades ao redor do mundo, a revista inglesa The Economist (por meio de sua Intelligence Unit) e a ONG americana Freedom House, acusaram um declínio global nas percepções e nas práticas desses valores, em seus últimos relatórios. Numa escala de 1 a 10 a Economist aponta para a democracia uma queda da média de 5,52, em 2016, para 5,48, em 2017, considerados todos os 165 países e dois territórios pesquisados. Um total de 89 países retrocedeu, 51 permaneceram estagnados e apenas 27 registraram avanços no período. Os critérios para a avaliação dos países são cinco: processo eleitoral e pluralismo; liberdades civis; funcionamento do governo; participação política; cultura política. No final, os países são divididos em quatro blocos: democracias plenas; democracias falhas; regimes híbridos; regimes autoritários.
Algumas das novidades destacadas no ano foram a mudança da Venezuela de regime híbrido para autoritário e a da Espanha para o último lugar entre as democracias plenas, quase escapando para as democracias falhas, por causa da condução da questão catalã. O bloco das democracias plenas, com notas entre 10 e 8,01, é liderado pela Noruega (nota 9,87), que puxa o pelotão escandinavo, e contém ainda os mais que esperados Nova Zelândia, Canadá, Austrália, Suíça e Holanda. Como surpresa aparece nosso vizinho Uruguai (8,12), o único latino-americano a figurar na turma. O Brasil, sem surpresa, é uma “democracia falha”, mas, para nosso consolo, temos a companhia, no mesmo bloco, dos Estados Unidos, ainda que com notas relativamente distantes para um e o outro — 7,98 para os Estados Unidos, que estão a apenas 0,03 ponto das democracias plenas, e 6,86 para o Brasil. A justificativa para a posição dos Estados Unidos é um “severo declínio da confiança pública nas instituições”. Para a do Brasil, é a corrupção. As investigações, diz o relatório, evidenciaram “as malfeitorias entre políticos e muitas das maiores empresas do país, conduzindo a subornos em troca de contratos governamentais e favores políticos”.
A Freedom House tem escopo vizinho, mas não coincidente, com o daEconomist. Seu foco são as liberdades, não propriamente a democracia, e os critérios de avaliação derivam dos princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Daí decorre que a investigação avalia “os direitos e liberdades gozados por indivíduos, mais que governos ou o desempenho de governos em si mesmos”. A instituição investigou 195 países e catorze territórios, em 2017, e concluiu que 45% deles são “livres”, 30% são “parcialmente livres” e 25% “não livres”. O Brasil está entre os livres. Não há notas, e nosso país não merece apreciação individualizada. Importa destacar a conclusão geral, explícita na primeira frase do relatório: “Direitos políticos e liberdades civis ao redor do mundo deterioraram-se em 2017 para seu mais baixo ponto em mais de uma década, ampliando um período caracterizado por revigorados autocratas, ameaçadas democracias e o recuo dos Estados Unidos de seu papel de líder na luta global pela liberdade humana”.
Na avaliação que os próprios brasileiros fariam do estado de sua democracia entrariam a desordem nas instituições, a ilegitimidade da representação política e a disfuncionalidade da ação governamental. Tudo isso é arquissabido. A última novidade é um candidato a presidente que louva a passada ditadura e faz pouco dos direitos humanos.
E O FUTURO?
O futuro pode esperar dois parágrafos. Antes, voltemos ao passado. Havia durante a ditadura dois tipos de censura a atenazar a imprensa brasileira. O primeiro consistia num comunicado às redações, sob a forma de um bilhete ou um telefonema, de que estava proibido tal ou qual assunto. Era a censura branca, para usar a nomenclatura de Maria Fernanda Lopes Almeida, autora do livro Veja sob Censura. O segundo era a censura prévia oficial, exercida seja na própria redação, por um censor nela instalado, seja por meio do envio das matérias ao órgão policial ou militar designado, antes de serem baixadas às oficinas. A censura por telefonemas ou bilhetinhos atingia virtualmente a totalidade da imprensa e resultava por vezes na ironia de informar os jornalistas de assunto de que não tinham conhecimento. Entrou para o folclore das redações que só vieram a saber de um movimento de guerrilha em curso na região do Araguaia quando chegou um bilhete estatuindo que era proibido mencioná-lo.
Enquanto a censura branca dos bilhetes era dirigida virtualmente a todos os meios noticiosos, a outra dirigia-se a certos órgãos selecionados. VEJA foi um dos premiados. O período mais longo em que a revista esteve sob esse regime começou em maio de 1974, e foi desencadeado por uma charge de Millôr Fernandes, então colaborador da revista. Um prisioneiro miseravelmente desmilinguido, pendurado no teto de sua cela pelos braços, e com uma bola de ferro amarrada aos pés, merecia da autoridade de passagem o comentário: “Nada consta”. A partir do número seguinte, os jornalistas passaram a contar com a companhia de um censor que só se retirou da redação em maio de 1976, exatos dois anos depois. Ao saudar, então, a retirada da censura, a revista fez na Carta ao Leitor um balanço que acusou mais de 10 000 linhas de textos suprimidas, só nesses últimos dois anos, sessenta reportagens cortadas na íntegra e 64 ilustrações.
Voltamos ao passado para perguntar, com relação ao futuro: é isso que se quer? Um mito alimentado por saudosistas da ditadura quer fazer crer que a mão pesada do regime só atingia os contestadores, a esquerda de preferência. A censura ilustra que a vítima era a população em geral, em um direito tão líquido e certo, nestes tempos de democracia, como o de se informar. Contra a crise da democracia, ou as crises, pois a atual não é a primeira nem será a última, o remédio mais eficaz, segundo os melhores pensadores que se têm debruçado sobre o assunto, é: mais democracia. A alternativa é a tirania e a barbárie. Por “mais democracia”, deve-se entender, principalmente: (1) maior participação da população nas decisões governamentais; (2) a construção de uma sociedade mais igualitária, em que todos estejam capacitados a participar do jogo.
O Brasil tem sido um campeão na multiplicação do título de eleitor. Em 1960, quando da eleição presidencial vencida por Jânio Quadros, o eleitorado de 15,5 milhões representava 22% da população de 70 milhões de habitantes. Os analfabetos estavam impedidos constitucionalmente de votar. Em 1982, eleição que, no período militar, restabeleceu a votação direta para governador, o eleitorado de 58 milhões já representava 50% da população de 119 milhões. Os analfabetos ainda não podiam votar, mas eram menos — 26%, contra 40% em 1960. Em 1989, na primeira eleição presidencial sob a Constituição de 1988, que acabara com a proibição do voto para os analfabetos, o eleitorado de 82 milhões, comparado à população de 147 milhões, subiu ao patamar de 55%. Hoje, para uma população de 208 milhões, temos um eleitorado de 147 milhões — 70% dos habitantes do país.
Nesse quesito vamos bem. Falta ampliar a democracia para além do ato de votar. Ao voltar às origens da democracia, percebe-se que a participação, no sistema ateniense, era mais ampla do que nas democracias modernas. Escreve Norberto Bobbio, no livro já citado: “Nas duas formas de democracia, a relação entre participação e eleição está invertida. Enquanto hoje a eleição é a regra e a participação direta a exceção, antigamente a participação direta era a regra, e a eleição a exceção”. Não deixa de ser participação, nas democracias de hoje, a militância dentro de partidos, dos movimentos sociais e das ONGs. A intercomunicação global propiciada pela internet criou no entanto, ou recriou, uma voz mais insistente que a dos grupos a reclamar participação — a voz dos indivíduos. O que se tem hoje nas chamadas mídias sociais ainda está longe de ser uma forma organizada de expressão política. É antes uma algaravia, em que se confundem sensatos e histéricos, vozes abalizadas e ignorantes. Umberto Eco radicalizou, e chamou a internet de território dos imbecis.
Mas o instrumento está aí. A internet gerou a possibilidade, concebível apenas na ficção científica, até poucos anos atrás, de comunicação direta e instantânea de todos com todos, no planeta. Não se concebe que as populosas sociedades modernas venham a tomar decisões coletivas reunidas numa praça, como nas pequenas sociedades gregas. O instrumental oferecido pela internet nos acena no entanto com a viabilidade, em tempo talvez mais próximo do que imaginamos, de recuperação pela via digital de algumas formas de democracia direta, se não da própria democracia direta. Não se concebe ainda como isso poderia ser organizado, nem como poderiam ser evitados as fraudes e os abusos, mas até há pouco também não se concebia como o GPS poderia indicar os caminhos e ajudar a enfrentar o trânsito.
Tampouco se vislumbra se, nesse quadro, sobraria lugar para os partidos políticos, que lugar seria esse, e, caso não sobre lugar algum, se é possível haver democracia sem partidos. Para os gregos, era; seu sistema prescindia deles. Há autores que chutam mais alto e pregam a volta do preenchimento de alguns cargos de governo por sorteio, como em Atenas. É o que faz o belga David Van Reybrouck, no livro Contra as Eleições, publicado no ano passado no Brasil. Sendo a reeleição proibida ou limitada, como entre os gregos, muito mais cidadãos seriam convocados a participar do processo, e a figura do político profissional daria lugar a cidadãos que alternariam as condições de governante e governado.
A construção de uma sociedade mais justa, outra condição para a ampliação da democracia, é — vá lá o truísmo — o maior desafio do Brasil. Escreveu Fernando Henrique Cardoso em seu mais recente livro, Crise e Reinvenção da Política no Brasil: “Ela (a desigualdade) afeta o próprio exercício da liberdade. Não é livre, nem sequer para ir e vir, o morador da favela que se sujeita às regras arbitrárias do crime organizado. Os níveis de desigualdade existentes no Brasil, além de moralmente inaceitáveis, são uma ameaça concreta à democracia e à convivência civilizada”. O acesso a um bom sistema de educação — vá lá outro truísmo — é condição sem a qual não se melhorará a desigualdade — e o Brasil tem dormido um sono eterno nesse capítulo. Rui Barbosa, na década de 20, já denunciava a conexão entre um bom sistema de educação e a saúde da democracia. A democracia, escreveu ele, “não existe entre nós senão nominalmente, porque as forças populares, pela incapacidade relativa em que as coloca a ausência de sistema de educação nacional, estão mais ou menos excluídas do governo”.
Se em nosso país a desigualdade é antiga, em outras partes ela ressurge, dolorosa como doença que se acreditava erradicada. Do pós-guerra até outro dia, por obra sobretudo dos governos social-democratas, a Europa construiu sociedades que conciliaram exemplarmente progresso, liberdade e justiça social. De algumas décadas para cá, as crises fiscais e o afluxo de massas de migrantes abalaram as estruturas do Estado de bem-estar social e aumentaram a distância entre ricos e pobres. Estava posto o caldo de cultura do qual se alimentam a xenofobia e os partidos inimigos da democracia. Trabalhar por um constante aperfeiçoamento das instituições, que garanta a permanência da democracia, é um dos mais cruciais imperativos que desafiam a nós, brasileiros. Nosso consolo é que, como ficou claro nestes últimos anos, é um imperativo igualmente para o resto do mundo.
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