sábado, 25 de agosto de 2018

'Desprezo de Hitler pela Democracia é um aviso para os dias de hoje'

Com seu costumeiro didatismo, que o coloca entre os melhores historiadores do nazismo, o britânico Richard J. Evans, autor do recém-lançado Terceiro Reich: Na História e Na Memória, concedeu esta entrevista ao Aliás para explicar que Adolf Hitler se consolidou no poder por meio de uma combinação de encantamento e violência, que o governo nazista dependia da disposição radical de seus assessores de adivinhar a “vontade do Führer”, e que seu maior inimigo eram mesmo os judeus.
Livros alertam para as sombras do nazismo
'O Porta-Estandarte', pintura (1934/6) de Hubert Lanzinger: propaganda de Hitler 
Foto: Tusquets Editores
Muitos historiadores argumentam que a ditadura de Hitler foi, em certo sentido, “consentida”. Diz-se que a maioria dos alemães apoiou o regime, muitos entusiasticamente, pelo menos no início. Por outro lado, a máquina de repressão estatal agiu fortemente durante os primeiros anos do governo de Hitler. Afinal, qual foi o papel da violência e da repressão na consolidação do poder hitlerista?
A maior votação em eleições nacionais livres e justas obtidas por Hitler foi 37,4%, e nas últimas eleições livres, em novembro de 1932, os nazistas perderam um número substancial de eleitores. O partido foi então cooptado por conservadores para um governo de coalizão em 30 de janeiro de 1933, porque os conservadores pensaram que os nazistas estavam enfraquecidos, mas, como ainda constituíam o maior partido, dariam legitimidade ao plano dos conservadores de desmantelar a democracia de Weimar e estabelecer um regime autoritário, como era a Alemanha de antes da 1ª Guerra. A violência e a ameaça de violência foram usadas pelos nazistas entre janeiro e julho de 1933 para destruir a oposição – principalmente os socialistas e comunistas, mas também o grande Partido Católico do Centro – e estabelecer uma ditadura do partido. Opositores dos nazistas foram mortos, os sindicatos, tanto socialistas quanto católicos, foram fechados, cerca de 200 mil antinazistas foram colocados em campos de concentração e maltratados antes de serem libertados, e os que não eram nazistas foram forçados a se juntar ao partido ou demitidos de seus empregos, algo que, num país com 35% de desemprego, trazia consequências muito graves. Quase todas as organizações não-nazistas foram incorporadas ao Partido Nazista e seus vários ramos. Novas leis foram aprovadas, tornando ilegal criticar Hitler e o governo. Em 1935 havia 23 mil presos políticos nas penitenciárias. Assim, a ditadura foi criada por uma combinação de medidas pseudo-legais e novas leis. Algumas pessoas – protestantes de classe média, muitos dos jovens – apoiaram o regime, outras – socialistas, a minoria católica – não o fizeram. É preciso diferenciar. A política externa do regime era popular, porque restaurava a dignidade alemã sem derramamento de sangue, pelo menos até 1939, e também a recuperação econômica a partir de 1935, mas as políticas religiosas e educacionais do regime não eram nem um pouco populares.
O que o mundo sabe sobre Hitler hoje é suficiente para efetivamente conhecê-lo e entender seu papel na construção do Terceiro Reich? Será que o debate historiográfico da Alemanha na década de 1980, o chamado Historikerstreit, ainda faz sentido?
O assim chamado Historikerstreit era sobre a memória e sobre se a Alemanha e os alemães deveriam traçar uma linha sob o passado nazista e seguir em frente. Havia uma discussão paralela entre “intencionalistas”, que argumentavam que a vontade de Hitler determinava tudo o que acontecia no Terceiro Reich, e “funcionalistas”, que pensavam que Hitler não intervinha muito no governo, de modo que seus subordinados tinham que “trabalhar para o Führer” adivinhando o que ele iria querer, e sempre “adivinhou” aquele que optou pela política mais “nazista”, ou seja, mais radical, causando assim um processo de “radicalização cumulativa”. A maioria dos historiadores agora ocupa uma posição intermediária; Hitler estabeleceu as diretrizes ideológicas e dirigiu ele mesmo a política externa e a área militar, mas em áreas como a economia, a sociedade e a cultura, além da arte, ele deixou os detalhes para seus subordinados.
Seu livro aborda a questão da singularidade do Holocausto. Na sua opinião, o genocídio dos judeus é diferente dos outros massacres da história?
O genocídio dos judeus é diferente porque os nazistas consideravam que os judeus, em virtude de sua composição racial, estavam sistematicamente minando a Alemanha e o povo alemão. Eles eram o “inimigo mundial”. Os nazistas pensavam que o premiê britânico, Winston Churchill, o presidente americano, Franklin Roosevelt, e o ditador soviético, Josef Stalin, eram todos perseguidos pelos judeus. Os judeus eram, portanto, o verdadeiro inimigo e tinham que ser exterminados, sem exceção, onde quer que pudessem ser encontrados. Outros genocídios, mesmo em grande escala, foram motivados pelo ódio e pelo desejo de matar minorias raciais que são vistas como opressoras ou traidoras ou obstáculos no caminho de uma nação, mas elas não foram consideradas em escala global. Nem instalações de gás venenoso foram usadas para realizá-las. Finalmente, porque os nazistas temiam tanto os judeus quanto os odiavam, o genocídio foi acompanhado por um tratamento deliberadamente sádico e humilhante dos judeus.
Até que ponto o estudo do desenvolvimento da Alemanha nazista é relevante para a compreensão do mundo de hoje? Por outro lado, como vê a banalização do nazismo, tão bem capturada pela “Lei de Godwin”: “À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de uma comparação envolvendo Hitler ou os nazistas tende a ser 100%”? 

Hitler se apresenta na cultura contemporânea como o mal supremo, por isso é inevitável que ele também se banalize na cultura popular e seja usado em tópicos de comentários online como uma ferramenta de argumentação. Falando a sério, a maneira pela qual os nazistas destruíram a democracia de Weimar e estabeleceram uma ditadura, seu desprezo pela verdade, sua supressão da liberdade de expressão e de pensamento, sua supressão da independência judicial e seu racismo virulento servem como advertências contra desenvolvimentos políticos comparáveis em nosso próprio tempo.

Marcos Guterman, O Estado de S. Paulo